¡Mírame! Rafael Caetano recria brilho de La Veneno
Estilista estudou biografia da diva transexual espanhola para definir traço notívago de coleção e arriscar recortes ousados na Casa de Criadores.
Rafael Caetano andava pelas ruas do convulsivo distrito de Chueca, em Madri, quando parou em uma livraria. Obcecado por livros de moda e cultura queer, levou na mala aquele que se tornaria objeto da coleção apresentada no último dia da Casa de Criadores, o “Nem puta, nem santa” (em tradução livre), biografia da atriz e cantora espanhola Cristina Ortiz, a La Veneno.
A montanha-russa de tragédias e sucessos que cerca esse personagem obscurecido no imaginário brasileiro, mas ícone de resistência no espanhol, prendeu os olhos do estilista. E chegou à sua tesoura, que mistura o brilho noventista da noite madrilenha e a estética performática da diva transexual em um guarda-roupas essencialmente notívago.
As araras mantêm as cabeças de unicórnios que o estilista tornou reconhecíveis em seu trabalho, mas elas aparecem só nos forros das jaquetas de linhas gráficas, uma constante na trajetória de Caetano, e na face escondida do conjunto cavadíssimo da Veneno de mentirinha do vídeo. Algumas peças recebem pedaços de pelo na costura, como memórias das perucas para show.
Elas, no entanto, não resumem a mudança proposta pelo designer. Após várias temporadas apresentando uma moda fácil de deglutir, o designer do ABC Paulista arrisca quebrar o padrão, tanto das roupas, agora mais rebuscadas, quanto da imagem dos modelos, menos angelicais que os das temporadas anteriores.
Mesmo as sungas, vendidas como produtos de entrada para os clientes e que seguraram as pontas da marca durante a pandemia, tiveram a lycra e a modelagem apagadas nas cenas. Aparecem no lookbook, é claro, mas só de relance no vídeo em que a principal peça para o sol é um maiô de tricô rosa, com um arco-íris estampado.
Caetano nunca negou que sua história é rasgar seda – bem mais algodão, é verdade – para uma parcela “G” da sigla LGBTQIA+. Uma que frequenta boates, mas não necessariamente sai toda montada, que abraça a identidade queer, mas curte a provocação com paetês, listras e muito acabamento esportivo, sempre na corda bamba entre o ordinário e o choque.
Talvez impulsionado pelo estado de agonia ilustrado pelos números da transfobia brasileira e pelas agressões sofridas pela comunidade no Brasil, ele sai de uma certa zona de conforto e corta para outros corpos. E o faz com pompa, apostando em macacões de paetês, transparências e no resgate do figurino mínimo de La Veneno, dando-lhe nova vida e edição primorosa.
A trilha de Max Blum, feita a partir do hino “Veneno para sua pele”, cantada por Ortiz em disco homônimo de 1996, soa atual à luz da dicotomia de um país que é líder em assassinatos de travestis e transexuais, mas que explora como poucos esses corpos na madrugada. Os versos revelam a sacada de Caetano.
“Olhe para mim, olhe bem na minha cara e me diga… eu sou os beijos, sou a cama, e você vive escondido… eu sou a tentação proibida, que vai queimando sua alma.”
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