Roupas esculpidas: a moda parece pronta para a batalha

Peitoral, armadura ou seja lá como quiser chamar, as formas humanas estão na moda e só continuam a crescer.


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Foto: Getty Images



Quando Zendaya apareceu no tapete vermelho do Critics Choice Awards, em janeiro do ano passado, havia algo de especial no seu visual. Ela parecia biônica, com um top fúcsia perfeitamente moldado a seu busto. De Tom Ford, a peça era uma referência declarada aos peitoris criados por Issey Miyake e Yves Saint Laurent, em colaboração a designer Claude Lalanne, algumas décadas atrás.

Corta para 2021 e Law Roach, stylist da atriz, decidiu investir um pouco mais na peça que é meio roupa, meio acessório. Para o Festival de Veneza, em setembro, ela tomou os feeds do Instagram em um vestido escultural da Balmain. No mês seguinte, fez tudo de novo, dessa vez, vestindo um Loewe recém-saído da passarela.

Ainda não havia completado nem uma semana desde o desfile da etiqueta espanhola, e lá estava Zendaya com a peça cinza, que até poderia ser chamada de minimalista não fosse a estrutura dourada projetada da silhueta. “Ela foi feita à mão, na França, por escultores de metal, com técnicas exclusivas de solda e martelo”, revelou o diretor criativo Jonathan Anderson, à época da apresentação.

Para a Loewe, durante a temporada de verão 2022, era (quase) tudo sobre o estudo do corpo humano. A partir de designs tridimensionais e aplicações engenhosas, a ideia da forma era impulsionada para fora, enquanto a silhueta era distorcida. Essa não é uma conversa exatamente nova. Não faltam exemplos na moda de experimentos com a anatomia humana. Rei Kawakubo, da Comme des Garçons, que o diga.

Porém, a ideia de uma roupa ou acessório que mimetiza ou simula partes do corpo é ainda mais antiga, remontando ao início das civilizações. Naqueles tempos, as couraças eram criadas como um instrumento de proteção para os combates ou destinadas a rituais sagrados ou espirituais. Mais tarde, despertaram o interesse de artistas, que dedicaram boa parte de suas obras ao estudo do desenho do corpo humano e de sua representação como ideal de beleza.

Na moda, o interesse pelo físico também é um assunto recorrente ao longo da história. E não foram poucas as vezes nem os nomes que olharam para estrutura rígidas de partes do corpo em busca de interpretações sobre a relação entre nosso corpo e aquilo que o cobra.

De Alexander McQueen a Thierry Mugler, todos aqueles que estreitaram a relação da moda com a forma física feminina, já concentraram os seus esforços nas peças esculturais. Havia uma tensão um tanto ilógica em jogo. Embora envolvessem uma parte frágil do corpo, os peitorais ganhavam estruturas rígidas, às vezes até mecânicas. O fascínio estava justamente na capacidade de investigar uma feminilidade que é realçada por sua dureza.

Hoje, o renascimento das peças metálicas ou esculturais ainda é pautado por esse mesmo pensamento – com algumas leves atualizações. “Há algo na alta-costura que é meio misógino, que exige ou espera que uma mulher pareça hiperfeminina e delicada”, afirmou Daniel Roseberry, diretor criativo da Schiaparelli, na apresentação do verão 2021 de alta-costura.

Quando se trata da ascensão das armaduras, o estilista estadunidense pode assumir grande parte da responsabilidade, seja pelo vestido com bíceps acoplados ou pelo bustiê com tanquinho tipo Hulk usado por Kim Kardashian, no último natal, e por Bruna Marquezine, na capa do Volume 4 da ELLE impressa.

Embora seja comum referências hiper digitalizadas quando falamos sobre as irmãs Kardashian, as peças de Daniel para Schiaparelli são influenciadas pelo passado. Elas partem de um par de manequins anatomicamente precisos que pertenceram à fundadora da casa, Elsa Schiaparelli.

Ao revisitar o arquivo, o diretor de criação decidiu recriar as silhuetas em imagens surrealistas. A intenção é clara: subverter as noções tradicionais e previsíveis em torno da feminilidade. No entanto, não é difícil olhar para o resultado e se esbarrar em projeções sobre o tal corpo ideal.

 

Desde a era greco-romana, as couraças e armaduras metálicas protegem o torço enquanto criam a ilusão de músculos masculinos delineados. Não é à toa que, mais tarde, se tornou a favorita dos super-heróis do cinema. Em 2021, porém, nem tudo é sobre peitorais musculosos. Para Misha Japanwala, a responsável pela escultura usada por Cardi B no anúncio de sua gravidez, é mais sobre a recuperação do domínio de nossos próprios corpos.

Conhecida por seus moldes esculturais, desenhados às curvas de cada corpo que envolve, Misha chamou atenção da moda por seu projeto de conclusão de curso na faculdade. Chamada de Azaadi (liberdade em urdu), a coleção foi desenvolvida após uma viagem para o Paquistão, onde conversou com mulheres vítimas de violência doméstica. O resultado é uma seleção de peças esculpidas que juntam partes de seu próprio corpo com as delas.

Enquanto honra cada curva feminina, Misha está à frente de uma operação complexa e íntima. Ao questionar onde começa a roupa e onde termina o corpo, ela cria um jogo interessante entre interior e exterior. Nas formas das esculturas, em vez de uma construção idealizada ou contida, todas as especificidades e imperfeições estão ali. Misha ainda dribla os censores do Instagram, mantendo as fotos sem censura, já que as esculturas não podem ser consideradas nudez.

A designer, porém, não está livre de ataques online. Em suas postagens, os comentários vão de “arte pevertida” até aqueles que acreditam que o seu trabalho irá “afetar a moral e sociedade”. A reação é a prova de como as pessoas se sentem ameaçadas por mulheres que tomam conta de seus próprios corpos.

Além de Cardi B, fã confessa de Misha, há outras mulheres impulsionando as conversas sobre a subversão do corpo dismórfico. Lorde, Bella e Gigi Hadid, Gwyneth Paltrow e Zoe Kravitz são algumas das celebridades já vistas usando peças que reproduzem formas humanas nem sempre idealizadas. As variações são muitas e, agora, os acessórios também têm ganhado destaque, inclusive no Brasil.

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ARCO, inverno 2022.Roma Joana, Lucas Luz e OSEGOVIA

“A jóia propõe funcionalidades diversas. Estou interessada em pesquisar e projetar essas possibilidades para intervir na forma que experienciamos a joalheria”, diz Julliana Araújo. A designer, de 29 anos, é a diretora criativa da ARCO, marca carioca que concentra seus esforços em desbravar as técnicas não convencionais do mercado de joias. “As nossas peças expandem a relação com o corpo. Elas são feitas para contornar e se deslocar pelas formas.”

Na ARCO, se percebe o estudo minucioso entre peça, corpo e espaço. Esse, aliás, é o tópico guia quando se trata de moda esculpida que, aliás, já parece se misturar com a fantasia. No verão 2022 da Burberry, as orelhas das modelos ganharam um acréscimo realista: uma extensão tipo elfo com a exata textura da nossa pele. Para alguns, há uma relação com a desnaturalização da forma humana. Pense no A Cyborg Manifesto, ensaio escrito por Donna Haraway, em 1985. “Prefiro ser um ciborgue do que uma deusa” é o que diz a filósofa estadunidense. Ou seja, para ela, os limites entre humano, animal e máquina devem ser radicalmente rejeitados.

Daniel Roseberry, Misha Japanwala e Julliana Araújo talvez concordem. A questão, no entanto, é que, apesar das diferentes interpretações e perspectivas ao longo dos anos, uma coisa permanece a mesma: a impressão de proteção quase agressiva. Com sua sugestão de que o usuário é mais do que humano, seja ampliado pela ciência ou literalmente como um super-herói de capa, as reproduções das formas corporais possuem um apelo que parece óbvio. Para as mulheres então, as armaduras ganham o selo de combate e domínio, tomando de volta o que sempre foi nosso.

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