Projeto Sankofa: por dentro da segunda edição

Na edição N52 da SPFW, as grifes Ateliê Mão de Mãe, Meninos Rei, Naya Violeta, Santa Resistência, Silvério, Az Marias e Mile Lab ocupam as passarelas reivindicando seu espaço e ancestralidade.


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Mile Lab Foto: Agência Fotosite



O Projeto Sankofa foi criado pelos coletivos Vetor Afro-Indígena na Moda (VAMO) e Pretos na Moda. Com o objetivo de racializar a mais famosa semana de moda do Brasil, a iniciativa inseriu marcas geridas por pessoas negras na São Paulo Fashion Week, que contaram com mentorias de outras consagradas do line-up, como uma espécie de madrinhas. A primeira edição do projeto ocorreu na edição 51, em junho de 2021, e apresentou oito novas etiquetas: Ateliê Mão de Mãe, Meninos Rei, Naya Violeta, Santa Resistência, Silvério, Az Marias, Mile Lab e TA Studios. Desde vez, apenas a última não participa e todos os desfiles acontecem presencialmente a partir de hoje, 18.11, no Pavilhão de Culturas Brasileiras, no Parque Ibirapuera, em São Paulo. Confira o que cada uma delas apresentou nesta edição.

MENINOS REI

Ogãs tocando para Exu abriram caminho para mais uma coleção emocionante da Meninos Rei na SPFW. Na segunda apresentação da marca, os irmãos Céu e Júnior Rocha dão continuidade ao trabalho de alfaiataria que brilhou aos olhos na edição passada. Na estreia da dupla, em junho, Exu já havia sido homenageado na passarela. Sete anos atrás, quando a marca dava seus primeiros passos, os irmãos também pediram força e diretriz para o senhor das encruzilhadas, dos becos e vielas, das avenidas e sambódromos. Agora, na sua segunda apresentação no evento, os soteropolitanos dão continuidade ao movimento.

“Estamos reverenciado as Pomba Giras, os Trancas Ruas e outras entidades marginalizadas”, diz Júnior. “E junto com elas, outros corpos que também sofrem algum tipo de discriminação”. Por isso, um dos castings mais diversos do evento até agora, com direito aos atores Ícaro Silva e Rainer Cadete, o rapper Renegado, a modelo trans A MAIA, a militante Thais Carla e a modelo Amanda, sobrinha de uma das costureiras da dupla. Nesta coleção, as peças, feitas de tecidos coloridos, vindos de diferentes países africanos, ganham ainda mais apelo street. No intervalo de quase seis meses entre as coleções, a dupla aproveitou para aprimorar algumas modelagens, ajustando cavas, ganchos e deixando tudo mais oversized e menos estruturado.

ATELIÊ MÃO DE MÃE

Um mergulho profundo no mar e uma volta de quem sobe a superfície com novo fôlego para respirar. É assim que a Ateliê Mão de Mãe registra sua segunda apresentação na SPFW, via Sankofa. Se na N51 os sócio-fundadores soteropolitanos Vinicius Santana e Patrik Fortuna olharam para os céus e elementos marcantes da cultura de sua cidades natal, agora o elemento é o mar, o oceano e a misticidade das águas. ”A referência veio de rodas de conversa entre eu e Patrick. Como moramos no litoral, sempre falamos da volta das praia. É uma coleção mais sofisticada, minimalista e não tão regional, pois existes muitas coisas em Salvador”, explica o estilista.

A marca, que busca potencializar os saberes e fazeres manuais, surgiu no início pandemia como uma forma de sustento para as mulheres crocheteiras. Hoje, já amadurece e investe em tons mais fechados, cores frias e uma releitura do clássico estilo navy. O branco vira cru, o vermelho vira terra. O crochê, claro, continua o norteador de todas as criações e é feito pelas mãos de outras 10 artesãs, incluindo Luciene, mãe de Vinicius e inspiração constante que estará assistindo tudo ao vivo. Além disso, houve o investimento em peças de alfaiataria e uma aposta nova: vestuário masculino. Nos pés e mãos, mules e sandálias rasteiras de couro, e bolsas de palha de licuri produzidas no Recôncavo Baiano.

SANTA RESISTÊNCIA

image 23Mônica Sampaio, fundadora e diretora criativa da Santa Resistência, mora no Rio de Janeiro, tem sotaque carioquíssimo, mas suas origens estão mais ao norte, no Recôncavo Baiano. Ela é de São Félix, cidade próxima a Cachoeira. Lá também nasceram o samba de roda, grandes artistas da MPB, como Maria Bethânia, Gilberto Gil e Caetano Veloso, e os primeiros cultos afro, junção das nações Jeje e Nagô, trazidas com os escravizados ao Brasil.

É esse o pano de fundo da segunda coleção da Santa. Resistência na SPFW. “É uma imersão nas minhas memórias afetivas”, fala a estilista. “Venho de uma família de mulheres muito forte, muitas fazem artesanato, fuxico. Nosso desfile faz uma homenagem a essas mulheres, além de um resgate de minhas próprias raízes.” A ideia, segundo Mônica, é narrar como mulheres pretas com fé mantiveram os laços familiares, construíram sua história e deixaram um legado cultural que hoje é patrimônio imaterial da humanidade.

Tudo isso é traduzido numa coleção mais leve e quente do que a que marcou sua estreia no evento. Os tecidos naturais ganham ainda mais destaque com alguns trabalhos manuais, como rendas Guipire. As cores se intensificam, num resgate à essência da marca, e a estamparia ganha ricos desenhos regionais.

NAYA VIOLETA

image 24A primeira marca do centro-oeste a pisar nas passarelas da SPFW, por meio do Projeto Sankofa, fez da sua segunda apresentação uma celebração de quem veio antes, quem está agora e quem virá depois. Naya Violeta, goiana a frente da sua etiqueta homônima, explica que as referências criativas se pautam em um country neon. Se na N51, a coleção Foguete era de contemplação, agora, a coleção Encante é de vibração. ”É um olhar para os anos 1990, década que passou pela minha trajetória de infância nesse cerrado”. Nos looks, peças mais pomposas e exuberantes com um styling primoroso.

Nas estampas, teve a colaboração dos Irmãos Credo, muralistas de Goiás, ”que trabalham com essa pegada de sagrado profano, que refletiu muito sobre nosso olhar”. Outra novidade são as peças em jeans, material que Naya ainda não havia explorado. São coloridos e vibrantes, como todas as demais, e isso é algo que a estilista se orgulha: “estou muito feliz, porque colocar axé no jeans não é fácil”, compartilha. Para presenciar ao vivo essa energia, amigos e pessoas do Brasil todo, que acompanham a marca, sentaram-se nos bancos do evento. Inclusive, quem faz parte de sua equipe de modelagem e costura, como Valdirene Martins e Washington Gomes.

Segundo a estilista, fazer parte da SPFW por meio do Sankofa é uma emoção. ”Fazer isso junto dos meus tem sido potencializador, reconheço a importância de estar fazendo isso junte e também o amadurecimento que o projeto me trouxe”, mas não deixa de assumir o quanto é um desafio. ”Só jogar você no espaço não é suficiente, angariar estrutura para estar nele é desafiador”. Seu desejo é que as grandes empresas consigam, finalmente, enxergar o potencial que as pequenas marcas têm.

SILVÉRIO

image 25O que perdoar significa para você? Em busca dessa resposta, Rafael Silvério, à frente da Silvério, apresentou uma coleção que fala sobre cura através do perdão, mas não de forma romântica. Ele fez um estudo profundo da literatura de como as diferentes culturas entendem o perdão. “Houve essa ideia do sari indiano, com um único molde, que vira do avesso, que vem de trás para frente. Pensamos na concessão de perdão e quando os sentimentos voltam”, explica.

O resultado, nas palavras do estilista, é um “streetwear com bossa de alfaiataria.” Nas cores, aparecem tons mais fechados de rosa, magenta e cereja. A estampa é uma só, com uma vibe anos 1990. “Queria uma coleção que traz ruído e reflexões, porque é esse meu papel enquanto cidadão e marca.”

AZ MARIAS

image 26“Estamos levando uma intelectual preta pra passarela, ao celebrar Lélia Gonzalez”, explica Cíntia Maria, sobre sua segunda coleção no projeto Sankofa. As referências estão na própria intelectual brasileira e na estética dos anos 1970, década em que as manifestações culturais pretas foram efervescentes. Na passarela, muita cor, brilho e manualidades. Isso porque, segundo a estilista, o guarda roupa de Lélia era repleto de peças de tricô, macramê e crochê, justamente por conta de suas viagens e diálogos com o Brasil todo.

Para compreender a vida e peculiaridades da intelectual, houve muito apoio da família de Lélia, que inclusive assistiu a apresentação. Desde memórias intensas até coisas do cotidiano: tudo foi referência para criar uma coleção que honrasse e potencializasse sua trajetória.

Segundo Cíntia, o Sankofa é um sucesso, porque ”dava para ver que o evento precisava desse refresh, desse respiro”, e vivenciar tudo isso é emocionante, mas nunca um processo individual: ”Não fiz nada sozinha, sou uma ponte para que outras pessoas acessem seus sonhos”, finaliza a estilista.

MILE LAB

image 27Na Mile Lab, de Milena Nascimento, a passarela da SPFW foi usada como espaço de resistência e protesto contra o próprio evento e o sistema de moda. A coleção Fluxo Milenar é pautada por algo que a estilista tem vontade de falar há anos: “pensar num baile do futuro, fundamentado no afrofuturismo, mas no que seria o afrofuturismo de rua. Daqui dez, vinte, trinta anos, como serão os bailes e as pessoas?”

O desfile abriu com uma declamação do artista Breno Luan, e seguiu com os modelos entrando ao som de uma batida forte e envolvente, alguns dançando passinho e outros carregando elementos que lembravam pipas. “A Fluxo Milenar vai trazer o que o mercado tem medo de enxergar, o que eles não querem bater de frente. Vejo que o que querem da gente como periferia são as referências. É a quebrada que dita o que estamos usando”, diz a estilista, que sempre busca referenciar a periferia e suas diversas manifestações em suas criações.

Alguns modelos usavam camisas cobrindo o rosto, algo que, segundo Milena, “é um escudo para se proteger do que eles mais querem, usurpar quem somos. Porque, para eles, só servimos de referência”. A cartela de cores permaneceu no preto e branco, com várias peças em malharia que trazem o tradicional streetwear da Mile Lab a partir de calças e casacos volumosos, bermudas, camisetas largas ou ainda saias mais curtas e croppeds ajustados ao corpo.

No final, a estilista fez uma crítica ao evento e a sua falta de apoio. “De que adianta abrir as portas deste espaço, quando mesmo com todo o dinheiro e recurso, você prefere não garantir a permanência desses corpos pretos, periféricos e marginalizados?”

Ao fazer do seu desfile um protesto, Milena fala com e por muitos. Muitos que não se veem em espaços historicamente embranquecidos, como a própria SPFW e tantos outros contextos da indústria da moda. Ao contrário de alguns, ela sugeriu desocupar um lugar onde não se viu bem-vinda.

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