Givenchy, Balenciaga e seus sapatos com divisões nos dedos

Depois da Givenchy virar meme, a Balenciaga foi mais longe com o seu tênis que separa cada dedo do pé, mas essa não é uma criação nova. Conheça nesta matéria a história dos Tabi Shoes, que se confunde com a história do Japão e da Maison Margiela.


cCRWccRb origin 1143 scaled
Divulgação Givenchy



Na primeira semana de outubro, Matthew M. Williams fez a sua esperada estreia como o novo diretor criativo da Givenchy. Aos 35 anos, o norte-americano é também o fundador da ALYX, marca de streetwear que mistura a alfaiataria à estética industrial. A escolha parece estrategicamente calculada, afinal, Matthew chega à casa de moda parisiense substituindo Clare Waight Keller que, após três anos no cargo, não teve o seu contrato renovado. Apesar de ser um sucesso de crítica com a sua Alta-Costura, a britânica não era lá a estilista com o melhor número de vendas nas coleções ready-to-wear.

Agora, para esse novo momento, a Givenchy apresentou facetas totalmente diferentes do que estava sendo feito anteriormente. À primeira vista, a coleção de Verão 2021, que marca a estreia de Matthew, parecia carregar apenas os próprios códigos pessoais do estilista, rendendo assunto pelas redes sociais e sendo motivo para críticas. Os bonés com chifres, as bolsas enormes e as correntes por toda parte chamaram atenção imediata, mas houve um detalhe que foi especialmente notado: as sandálias de “três dedos” com meias.

Givenchy: a internet não perdoa

No lookbook havia inúmeras modelos usando um salto-alto de tiras que dividia os dedos em três partes e, com o styling assinado pela russa Lotta Volkova, a sandália ainda vinha acompanhada por meias coloridas. É claro que a internet não perdoou e, em questão de minutos, já estava tomada por memes e comentários debochando do visual proposto. Entretanto, não podemos negar que a meia até pode ser novidade, mas o sapato não é. Matthew pegou a referência dos três dedos do próprio arquivo da Givenchy, mais especificamente do Inverno de 1997, quando Alexander McQueen era o diretor criativo.

Apesar de ter revisitado a peça com um salto mais arquitetônico, não foi o norte-americano o responsável pelos polêmicos “três dedos”. O código vem lá de trás, contrariando ainda quem acreditou que a coleção podia ser tudo menos uma representação da Givenchy. E, claro, há quem ame e quem odeie, mas provavelmente a marca conseguiu o que queria depois das constantes frustrações comerciais, ou seja, virar assunto.

O sapato ainda pode dividir opiniões e, pelo olhar ocidental, à primeira vista, causar um certo estranhamento, mas é inegável que, em volta dos Tabi Shoes, há uma grande história e importantes aspectos culturais. Reconhecer a sua relevância, para além de decidir se usaria ou não usaria, é entender que se a moda não incomoda, não nos desperta ou não nos tira do lugar comum, certamente, está faltando uma dose de emoção aí.

Balenciaga x Vibram: entre o feio e o bonito

E por falar em ser assunto, quem é especialista nessa arte é a Balenciaga. Desde que o Demna Gvasalia assumiu a direção criativa em 2015, a marca soube muito bem como despertar interesse, chamar atenção e, claro, converter a curiosidade em vendas. É desafiando os conceitos de feio e bonito que a etiqueta faz com que aquelas peças entendidas como duvidosas caiam nas graças do público. Ao longo destes cinco anos, já foi visto de tudo em suas passarelas: camisa de futebol, Crocs, sobreposições exageradas, bota legging e até sacolas de mercado.

A aposta da vez tem uma proposta semelhante à polêmica sandália da Givenchy. Na última semana, finalmente chegou ao mercado a colaboração da Balenciaga com a marca italiana Vibram, que já havia sido apresentada no desfile de outono-inverno em fevereiro. Depois do sucesso do tênis Triple S, que foi copiado por todas as marcas de fast fashion e até por outras grifes, a etiqueta de fundação espanhola aposta agora, para essa parceria, em um tênis com divisões de dedos.

image 692

O sapato de salto da parceria Balenciaga x Vibram Divulgação

Ao contrário da versão parisiense com a sandália de apenas três separações, a Balenciaga dividiu a frente do tênis para cada um dos dedos, expertise pela qual a Vibram já é conhecida. Com as suas clássicas solas de borracha, em 2005, a empresa italiana apresentou ao mundo o famoso FiveFingers, sapato flexível que contorna a forma do pé humano. Sendo originalmente comercializado com a intenção de manter a aderência em pisos escorregadios sem comprometer a experiência de sentir que está descalço, o item é uma alternativa para atividades ao ar livre, como acampamento, caminhada e canoagem.

E foi tendo o Fivefingers como principal referência que nasceu a collab entre a Balenciaga e a Vibram. Em variadas cores disponíveis, há duas diferentes versões de sapatos: a primeira é um tênis com uma espécie de salto suspenso e a segunda, uma bota meia de salto. Ambas foram feitas a partir de malha reciclada e estão à venda por US$1.290 (aproximadamente R$7.400).

image 691

Desfile da Balenciaga de inverno em que a parceria com a Vibram foi apresentada. Foto: Agência Fotosite

Japão: uma história secular

Porém, engana-se quem pensa que os sapatos com divisões de dedos são uma criação de agora. Os chamados Tabi Shoes são, na realidade, uma invenção secular do Japão. A história conta que, no século XV, o Japão começou a importar algodão da China e com a introdução dessa nova matéria-prima, surgiu uma série de novos produtos. Na época, o calçado preferido era o Geta, uma tradicional plataforma de madeira, que graças aos novos itens passou a ser acompanhado por uma meia que acomodava a estrutura do sapato, separando o dedão dos demais dedos.

A meia de duas divisões se tornou uma das principais peças do guarda-roupa japonês ao longo do período Edo. Porém, em uma construção mais complexa, os sapatos Tabi foram criados posteriormente a partir de três peças distintas de tecido, e quando a borracha passou a ser produzida em massa, nasceu o Jika-Tabi, uma versão sem plataforma que permite maior mobilidade projetada para agricultores e trabalhadores manuais.

Novas versões continuaram sendo criadas e o formato se manteve como parte da cultura tradicional japonesa. Até que, na Segunda Guerra Mundial, os ocidentais viram os Tabi pela primeira vez e, apesar de terem ficado maravilhados, o visual único dos sapatos permitiu que os australianos rastreassem os soldados japoneses com uma facilidade muito maior, descuido que superou a agilidade oferecida pela peça. A partir desse primeiro contato, sapatos Tabi começaram a ser vistos em diferentes lugares do mundo, mas ainda de forma rara.

Tabi Boots, da Maison Margiela, vira uma das peças mais icônicas da moda

Tudo mudou em 1988, ano de estreia da Maison Martin Margiela. O designer belga, que já havia trabalhado com grandes nomes, como Jean Paul Gaultier, estava lançando a sua marca homônima e não encontrava nenhum sapateiro que aceitasse confeccionar os calçados desejados por ele, as Tabi Boots. Para as oficinas tradicionais, os dedos divididos chegavam a ser disruptivos demais, mas foi em uma conversa com o varejista Geert Bruloot que Margiela foi apresentado ao artesão italiano Sr. Zagato, que se apaixonou quando viu os protótipos do sapato.

Logo no seu primeiro desfile, Margiela apresentou a sua interpretação do Tabi Shoes mas, para não correr o risco de passar despercebido, encharcou os solados de tinta vermelha, o que formou inúmeras pegadas na passarela branca. “Queria que o público notasse o novo calçado. O que seria mais evidente do que a sua pegada?”, isso foi o que o designer disse em conversa com Geert Bruloot. “A ideia era criar um sapato ‘invisível’ com a ilusão de um pé descalço andando sobre um salto alto e robusto”.

image 690

A Tabi Boot, da Maison Margiela Divulgação Maison Margiela

E deu certo. A partir daí, em todas as coleções, os Tabi Shoes estavam presentes, mas essa recorrência, na realidade, se deu por necessidade. “No início não havia orçamento para criarmos uma nova forma. Então, se eu quisesse sapatos, não existia outra escolha a não ser continuar fazendo. A cada coleção, as pessoas pediam mais, queriam mais e não paravam de perguntar sobre eles”, contou. Assim, a peça se tornou um dos principais marcos na carreira de Margiela e um item icônico para a história da moda.

O sapato ainda pode dividir opiniões e, pelo olhar ocidental, à primeira vista, causar um certo estranhamento, mas é inegável que, em volta dos Tabi Shoes, há uma rica história e importantes aspectos culturais. Reconhecer a sua relevância, para além de decidir se usaria ou não usaria, é entender que se a moda não incomoda, não nos desperta ou não nos tira do lugar comum, certamente, está faltando uma dose de emoção aí.

Para ler conteúdos exclusivos e multimídia, assine a ELLE View, nossa revista digital mensal para assinantes