Shitsurei ilustra abuso infantil em conto de terror no tecido

Estilista Kaique Xavier recria em roupas ilustradas história verídica da bisavó que emigrou do Japão após sofrer por anos violência praticada pelo avô, encoberto pelo sistema patriarcal do país.


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Toda família mantém segredos, traumas e histórias guardadas em caixas de pandora. O estilista Kaique Xavier resolveu abrir uma que o acompanha desde a infância, quando ouvia sussurros sobre o passado de sua bisavó Kimiko. Ela emigrou da cidade de Kobi, no Japão, após sofrer calada os vários anos de abusos sexuais e psicológicos cometidos pelo avô, que foi encoberto pelo sistema patriarcal do país.

Essa história de terror verídica virou base da apresentação da marca Shitsurei na Casa de Criadores. As cicatrizes que nunca sararam e evoluíram para um câncer que matou Kimiko já no Brasil, foram transformadas em linhas irregulares para os desenhos de Xavier estampados nas costas dos looks.

Eles atravessam os caminhos da personagem central como animes carimbados em modelagens soltas, expressas em jaquetas com capuz, conjuntos de calça ampla combinada a top e casaco, cortado como túnica, e vestidos longos plissados nas barras.

As peças conferem leveza aos movimentos expansivos da performer Tiemi Tamura, cuja dança parece traduzir uma fuga dos pesadelos, ainda que seus pés não saiam nenhuma vez da parte central do tablado em que se vê ao fundo uma cortina de teatro. Filmado no teatro do Centro Cultural São Paulo, o fashion filme se utiliza do tradicional balé butô, extremamente expressivo, para alinhavar os oito capítulos, traduzidos no mesmo número de looks, neste desfile que o designer afirma ser um folclore pessoal.

Tanto os fiapos de luz no palco quanto as cores das roupas, evoluem à medida que os desenhos remontam ao passado. Começam em preto e branco, passeiam pelo roxo e atravessam o crepúsculo antes de voltarem à penumbra total.

Poética, a coleção da Shitsurei ainda traz aplicações de broches feitos em cerâmica, que, segundo o estilista, ilustram as sementes da árvore monstruosa em que Kimiko teria germinado – neste caso, a própria árvore genealógica de Xavier.

São raras as vezes que temas tão pesados viram ferramentas de costura, mas são apresentações como esta que descortinam a relevância da Casa de Criadores no cenário das semanas de moda. Não haveria palco melhor no país para a experimentação dessa roupa do horror, desse traje de silenciamento imposto aos que não podem se defender no tablado da vida real.

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