Valentino abraça Veneza em alta-costura que pede união a elite sonolenta

Dezessete artistas trabalharam em conjunto com diretor criativo Pierpaolo Piccioli em coleção que ensaia fuga das roupas pandêmicas e do mundo cerrado em casulos.


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Fotos: Divulgação



A moda atravessa um processo de descompressão, de saída do ambiente inóspito construído pela pandemia para um outro que, em tese, vai liberar as pessoas do peso do isolamento e do marasmo estético que enfiou a todos em trajes sonolentos. A Valentino discorreu na tarde desta quinta-feira (15.7) sobre o pós-sono, a fuga de um casulo esmaecido pelos dias nublados que, agora – ou pelo menos para uma parte do mundo que se vê imunizada contra a Covid-19 –, explode em cores elétricas, algum brilho e, tímida, ensaia uma volta para as luzes da noite.

Apresentado nos galpões da Gaggiandre, um enorme pavilhão do século 16 que integra o complexo de prédios Arsenale, da Biennale de Veneza, o desfile de alta-costura fora de época reuniu uma plateia restrita de convidados trajados de branco à beira dos lagos que margeiam os edifícios. Era quase como uma “white party”, sob o crepúsculo rosa que fazia par com a cartela de cores quentes da coleção batizada Valentino des Ateliers.


Alta-costura – VALENTINO DES ATELIERS

Os modelos exibiam um misto de roupas práticas, aparentemente utilitárias não fossem os detalhes, invisíveis para quem não olhasse as linhas matemáticas dos colos envoltos em mantas. Havia nervuras saltando das estampas sinuosas e das texturas de malha metálica que forrava… regatas. Sim, na cartilha de “couture” dos novos tempos imaginada pelo diretor criativo Pierpaolo Piccioli há espaço para o banal que nos acostumamos a usar.

Uma das premissas básicas para entender a obra desse estilista é que ele não é adepto do choque, do golpe imagético que logo nos faz imaginar em mudanças bruscas no guarda-roupa. Piccioli é um observador do comportamento e verte em cápsulas o espírito de mudança, embalado na imagem glamorosa criada pelo patriarca Valentino Garavani.

Paulatinamente, a alfaiataria casual, os looks cebola como os daqueles dias infinitos enrolados no edredom e a sonolência criativa abrem espaço para a suntuosidade. Mas ela surge macia, em estampas que remetem ao contato humano, a exemplo de um dos vestidos em que se via duas silhuetas de mãos dadas com as cabeças repousadas sobre um travesseiro.

Os formatos das copas e das pétalas das flores, obsessões de Piccioli em seu histórico na maison italiana, aparecem em laços e na modelagem ampliadíssima da parte de baixo dos vestidos de festa, feitos para uma clientela que não vê a hora de se exibir.

Modelo traja look da Valentino em desfile da marca em Veneza

Os vestidos ampliadíssimos remetem à obsessão do estilista com as formas das flores.

Mas a mensagem deixada pelo estilista vai além dos dias festivos que estão mais perto do que longe. Para entrar na festa, seria preciso repensar o papel de cada um nesse revival do passado pré-pandêmico. A voz da cantora inglesa Cosima, aveludada pelos acordes de um piano de cauda posicionado numa das pontas do espaço, entoou os versos de “What the world needs now is love“, de Hal David e Burt Bacharach, dando a letra de Piccioli sobre a nova ordem.

“O que o mundo precisa agora é amor, doce amor. Não apenas para alguns, mas para todos”, diz a música, que pode ser lida tanto como uma carta de amor quanto uma crítica a quem detém o poder. Piccioli parece falar diretamente à sua clientela abastada e pede que ela tire as mãos dos bolsos e das luvas para estendê-las a quem se vê sem futuro em meio ao caos humanitário.

De forma sutil, os modelos flanaram pela passarela com as mãos escondidas nas luvas compridas de baile e nas fendas cortadas pelo torso dos casacos, pelas saias e pelas aberturas das calças. Uma imagem simples, mas significativa quando vista de forma sobreposta à estátua no fundo do cenário – as duas mãos gigantes entrelaçadas da obra Construindo Pontes, assinada pelo artista Lorenzo Quinn.

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Vários looks são estampados com desenhos de mãos e silhuetas concebidas por artistas convidados.

A arte, aliás, foi ponto de partida para vários dos looks desfilados e do cenário composto dentro do Arsenale. Dezessete artistas de diversas etnias e origens trabalharam em conjunto com a marca para imaginar os shapes, as estampas e conceber o desfile, que também é uma homenagem a uma Veneza extremamente machucada pelo esvaziamento de turistas.

Entre os convidados desse projeto faraônico está o ruandês Francis Offman, que integra a seleção do Mediterranea, espécie de bienal italiana para artistas emergentes, o curador e fotógrafo chinês Rui Wu, a pintora francesa Anastasia Bay e o italiano Alessandro Teoldi, cujo trabalho potente mistura arte têxtil, escultura e desenhos.

Nessa tentativa de tirar o mundo, e a própria moda, da zona de conforto, a Valentino não parece querer apenas resgatar o aspecto onírico das roupas feitas para a luz da noite, mas também fazer com que elas simulem uma vida reconstruída a várias mãos. Se elas vão querer acordar para juntar-se, aí já é outra história.

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