Moda, política e redes sociais

Toda segunda-feira, a redação comenta as notícias de moda mais relevantes da semana e entrevista gente de dentro e de fora do mercado no Pivô Podcast.


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  • Nesta semana, o Pivô aborda como a indústria da moda reage aos levantes antirracistas pelo mundo e como fica evidente o pouco compromisso do setor com mudanças estruturais.
  • A colunista da ELLE Brasil e fundadora do Modefica, Marina Colerato, além da jornalista do Fashion Revolution, Bárbara Poerner ajudam a responder se a moda pode ser política e o papel das redes sociais nisso tudo.
  • A colunista da ELLE Brasil e pesquisadora de moda, Hanayrá Negreiros, aumenta a lista dos protagonistas de uma moda política construída no Brasil.
  • Observamos que os relatos de modelos e profissionais da moda levantando questões urgentes e históricas sobre o racismo na indústria brasileira foram publicados posteriormente ao fechamento e gravação deste episódio. Mas um esforço de reportagem é feito em uma matéria que será publicada ainda esta semana.

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Multidões voltam a encher as ruas pelo mundo. O clima do retorno ao asfalto, no entanto, não é de celebração, como alguns poderiam imaginar, mas sim de levante. Quem puxa as manifestações é o movimento estadunidense Black Lives Matter, Vidas Negras Importam, após a morte de George Floyd, cidadão negro assassinado por um policial branco no dia 25 de maio, em Minneapolis, no estado de Minnesota.

Se juntam à passeata anti racista norte-americana países da Europa e, posteriormente, o Brasil. A reação estrangeira foi o estopim para insurgir pelos mortos daqui: Miguel Otávio, João Pedro, Agatha Felix e muitos outros. Perdas da violência policial. Perdas da pandemia no país, que mata cinco vezes mais negros do que brancos. Perdas que são resultados do racismo estrutural.

As dores são brutais e nenhum assunto fica em pé de igualdade nessa discussão. Mas a luta antirracista lembra sobretudo que o problema é estrutural, institucionalizado e naturalizado por todas as frentes sociais em cada detalhe. E para eliminar qualquer política desumana é necessário agir em conjunto. E, então, vem a pergunta: a moda pode ser política?

No dia 29 de maio a comunicação da Nike inverteu o seu famoso slogan “Do it” e publicou a frase: “For once, Don’t Do it. Não finja que não existe um problema e não dê as costas ao racismo”. A declaração então foi repostada pela concorrente direta, a Adidas, acompanhada do texto: “Juntos seguimos em frente. Juntos fazemos a diferença”. Na Reebok, o pronunciamento foi de que sem a comunidade negra, a marca nem ao menos existiria.

Imagens de grifes depredadas após os protestos antirracistas circularam nas redes. E então o estilista Marc Jacobs lembrou, em sua conta pessoal, de que estabelecimentos podem ser reconstruídos, mas que vidas perdidas não voltam mais. Um usuário perguntou ao estilista se ele havia enlouquecido, porque a sua própria loja poderia ser alvo de rebeliões. Ao que o designer respondeu que sua loja já tinha sido depredada, mas que ainda assim ele não voltava atrás com o apoio.

Usar da sua visibilidade, do seu privilégio e até do seu excedente de dinheiro em doações foram algumas das maneiras como estilistas, marcas e grandes grupos de moda reagiram nesta última semana. Mas o sentimento que ficou foi o de pouco compromisso da indústria com a realidade, de pouca mudança sistêmica.

Os exemplos que acabamos de citar até que foram bem recebidos nas redes sociais. Mas o mesmo não aconteceu com as gigantes do luxo. A Louis Vuitton, por exemplo, foi criticada por seguir com a campanha de lançamento de uma bolsa da grife, enquanto o mundo pegava fogo. E, só depois, postar um vídeo em solidariedade, encomendado pelo diretor criativo do eixo masculino, Virgil Abloh.

Abloh, ele mesmo um dos pouquíssimos estilistas negros no cargo de direção criativa de uma marca de luxo, foi meio que cancelado na internet depois de postar uma foto onde doava 50 dólares para o movimento. Alguém comentou que este dinheiro não chega a 15% do valor de um cinto Off White, marca da qual ele é dono. Mas o estilista se justificou dizendo que, na real, a doação era bem mais generosa, no valor de 20 mil dólares.

A Celine, sob direção criativa de Hedi Slimane, do grupo LVMH, escreveu que é contrária a toda e qualquer forma de discriminação, opressão e racismo. Mas a empresa foi questionada pelo influenciador de moda Bryan Boy pelo fato de sua conta do Instagram não conter imagens de modelos negros há pelo menos um ano.

O termo saqueamento foi muito usado, uma vez que parte dos manifestantes de fato não só depredaram como também retiraram peças de algumas lojas das grifes. No entanto, este tipo de ação foi apontada como simbólica por ativistas. Afinal, “o que a indústria da moda fez quando se apropriou da cultura negra ao longo de sua história e não creditou ou pagou por isso?”, argumentaram.

Os jornalistas Henrietta Gallina e Jason Campbell, do podcast The Conversations, que fala exatamente da intersecção entre moda, cultura e vivência negra apontam que o racismo está enraizado em todas as partes da nossa cultura, e consequentemente da indústria da moda.

No site The Business of Fashion a dupla analisa que estes posicionamentos nas redes sociais são um bom termômetro para entender como o setor lida com o assunto. Os posicionamentos não só parecem superficiais, eles de fato o são, segundo o casal. E os dois dão exemplos diretos de ações que poderiam mudar a realidade: o número de pessoas negras ocupando cargos de trabalho nesta indústria, principalmente em posições de chefia; quebrar com a insistência no padrão de beleza eurocentrado; parar de criminalizar pessoas negras em lojas de luxo; e não esquecer do seu compromisso de mudar a história, uma vez que a sua própria foi até hoje construída apagando a contribuição negra.

Ou seja, antes de críticas pontuais a uma marca ou outra, o que a dupla e a maioria dos ativistas lembram é que toda a indústria da moda precisa reconhecer que se estabiliza em solo desigual. E ela deve agir. Há exatamente dois anos, entrevistamos para a Elle historiadora de moda nova-iorquina Shelby Ivey Christie. Na época, ela já dizia que para a moda lidar com essa pauta, ela precisa fazer perguntas complicadas e entrar em conversas desconfortáveis, especialmente quando se fala do mercado de luxo, mercado fundado na exclusividade e na exclusão. Shelby falou recentemente ao site Dazed Digital e cobrou novamente uma nova postura da indústria: “A moda tem um histórico de mudança reativa e não proativa”, disse.

E a gente repete aquela pergunta do início. A moda pode ser política? Ela não só pode, como talvez devesse ser mais. E vale aqui um parênteses filosófico: para algumas pessoas, a palavra política passou a ter um sentido até pejorativo, como se ela fosse sinônimo de corrupção e maracutaia. Mas não é bem assim. Na sua raiz, na visão de Aristóteles, a política tem como objetivo trabalhar pelo bem comum. É uma ferramenta para contribuir para a felicidade na vida em sociedade.

E política não é só discurso. Ela engloba ações que, de fato, fazem a diferença. Para explicar melhor isso, Marina Colerato, nossa colunista e fundadora do site Modefica, cita o filósofo coreano Byung-Chul Han. Em seu livro Sociedade do cansaço, Han diz que o “Agir político significa fazer com que surja algo totalmente novo, ou o nascimento de uma situação social nova”.

Para Marina, a moda pode, sim ter uma ação política, ainda que não seja algo fácil.

“A moda pode colaborar com isso de algumas forma? Ou seja, ser política? O agir político? Pode! Mas aí ela precisa estar a serviço das pessoas e não do capital. O que não significa não fazer negócios ou não ganhar dinheiro. Significa, na verdade, primeiro e de forma bastante simples não colocar o dinheiro acima de tudo e de todos e fazer escolhas em prol das pessoas mesmo quando essas escolhas implicam em melhores ganhos financeiros.”

Infelizmente, o que se vê muitas vezes são exemplos de escolhas políticas feitas pela indústria da moda que estão longe de visar melhorias da vida em sociedade, como aponta é a jornalista do Fashion Revolution Bárbara Poerner:

“Quando existem mulheres trabalhando 18 horas por dia para produzirem roupas, seja aqui no Brás ou seja lá na Índia. É muito político porque revela um sistema de exploração de mulheres. E as próprias artimanhas do neoliberalismo global. Quando temos imensos territórios desmatados para a produção de algodão também é muito político porque mostra como a indústria têxtil usurpa e explora a natureza também. Quando a gente pensa que o debate da sustentabilidade muitas vezes gira em torno de falar de novas tecnologias da moda, novas fibras, muito mais do que falar de novas formas de se relacionar. E como a gente pode fazer uma transição para um sistema não acumulativo de riquezas, mas acumulativo de cuidados e regeneração, para com as pessoas e com a terra, isso também é muito político. Porque isso tudo mostra as nossas preocupações. E a preocupação do sistema é com mercado, mais do que com a gente. Então a moda tem essa grande potência política que muitas vezes acaba indo por vias negativas, mas que também pode ser a possibilidade de fazer diferente, de reprojetar, de se organizar coletivamente. Esta atuação política passa por todas essas vias. Seja no setor público, seja na iniciativa privada, seja na imprensa, seja no nosso dia a dia enquanto cidadão que faz parte da moda, que consome moda, que tem este contato com a indústria da moda o tempo todo.”

A Bárbara lembra ainda que as redes sociais podem ser aliadas poderosas na mobililização política, mas que é preciso cuidado para não cair na superficialidade e em narrativas vazias. Na semana passada, essa discussão sobre a legitimidade de ações nas redes sociais voltou à tona com o Blackout Tuesday. Você deve ter visto: o Instagram ficou tomado por telas pretas na terça, dia 2, em solidariedade à luta por justiça racial. A iniciativa partiu de duas mulheres negras que trabalham com marketing musical, e logo se espalhou por todo o Instagram. Visualmente, foi um um statement poderoso. Mas também houve quem contestasse a iniciativa, já que ela, de certa forma, atrapalhava o compartilhamento de notícias, inclusive sobre os protestos e ações do movimento negro como um todo. Entre posts contra e a favor, o fato é que a Blackout Tuesday também ganhou a adesão de grandes marcas e varejistas de moda – num momento crítico como este que estamos vivendo, não se manifestar pode ter uma consequência direta no balanço da empresa. De acordo com um estudo global da Edelman, de 2018, dois terços dos consumidores abrem o bolso de acordo com o posicionamento social ou político de uma marca.

A Marina Colerato também abordou esse ponto na nossa conversa e destacou que há uma diferença muito grande entre um agir político e um mero posicionamento político nas redes sociais. Ou seja, não basta apenas aderir a um movimento como o Blackout Tuesday sem uma ação mais concreta para ajudar na luta contra o racismo.

“Você pode usar as redes para reverberar os seus compromissos, valores e ações, usando as redes como ferramenta e não como um fim em si mesmo. Como ferramenta para falar sobre seu posicionamento, seus valores. Compartilhar compromissos e metas assumidos. Mas tudo isso precisa estar sólido na prática cotidiana da marca, da empresa e até mesmo da pessoa. E, se a gente está falando de uma marca grande isso precisa estar desde o CEO até o funcionário de loja, em um processo contínuo, de fundamentar e deixar transparente a cultura da empresa na prática. É um trabalho ininterrupto e frequente. Senão, se transforma em discurso midiático. E discurso midiático não colabora nem com pensamento intelectual e teórico para avançar a prática, quiçá com a prática. Quando falamos de colaborar com práticas aqui estamos falando de por exemplo que não adianta você postar um Blackout Tuesday em suas redes sociais sem nenhum tipo de compromisso ou prática de como você de alguma forma e dentro das suas capacidades vai tentar interferir, por exemplo, nos números de jovens negros assassinados todos os dias.”

Uma moda política é escrita no Brasil. Zuzu Angel, Ronaldo Fraga, João Pimenta e a Lab, do Fióti e do Emicida, são alguns nomes que vêm a cabeça. Mas Hanayrá Negreiros, colunista aqui da ELLE, pesquisadora e historiadora de moda, lembra que esta história de moda e política está no país há muito mais tempo. E é importante crescer essa lista de protagonistas.

Moda é política em várias instâncias. Mas precisamos delimitar o que chamamos de moda. É só aquela da passarela? Das finadas semanas de moda? Ou é a também a moda que nós vemos acontecer na rua também? Partindo das ruas, são vários os exemplos. Da década de 1960, 1970, os Panteras Negras, nos EUA. Um movimento político antirracista. E com toda aquela estética que se conhece muito bem dos Panteras Negras. Todo o partido, tanto mulheres quanto homens, usando os seus cabelos crespos, resgatando a ideia do black power, do black is beautiful, além da busca cada vez maior por estéticas africanas. Você tem Angela Davis e outras ativistas trazendo estamparias de diversas partes do continente africano, como o Dashiki, por exemplo. O pan africanismo pipocando em todo o continente e países conquistando as suas independências na segunda metade do século 20. Trata-se de todo um movimento de negritude que se expressa de muitas maneiras, inclusive pela roupa. Se a gente pensar no Brasil, no feminismo negro, você tem Lelia Gonzales na década de 1980 dando aula, dando entrevista, expondo as suas opiniões publicamente sobre ser mulher negra na América Latina e usando turbante. Ela sempre aparecia com uma roupa que comunicava uma referência às suas ancestralidades negras. Esta roupa já diz o posicionamento político que ela carrega.

“No século 19, voltando um pouco no tempo, aqui no Brasil, você tem as mulheres negras que são chamadas de mulheres de partido alto, que são mulheres empreendedoras, que estão ali nas cidades, nos grandes centros urbanos, exercendo os seus ofícios como vendedoras de frutas, de verduras, quituteiras e uma série de coisas. Elas possuem um tipo de vestimenta que denota poder, que denota riqueza. Elas usavam também as joias de crioulas, que protegiam ao mesmo tempo que adornavam e contavam a história sobre um tipo de joalheria que é feita para mulheres negras no Brasil. Inclusive, esta indumentária carrega uma série de elementos que vão desaguar na indumentária da baiana de acarajé, que vemos hoje nas ruas de Salvador. As roupas de santo, a indumentária das religiosidades negras como dos candomblés, que também são roupas políticas, de uma religião que tem o seu histórico no Brasil pautado por violências e apagamentos e que trazem também uma série de africanidades nessa roupa. Quando eu penso nas modas afrobrasileiras, eu entendo elas como um grande exemplo de moda política. Apesar de suas pluralidades, multiplicidades, porque no Brasil temos muitas vertentes africanas, elas são políticas. E aí penso três baianos. A Goya Lopes que é uma das baluartes da moda baiana, que tem uma série de trabalhos com o resgate do que é ser baiano, do que é ser negro, da cultura africana na Bahia. A Carol Barretos, que é professora da UFBA, com estudos feministas, pensando gênero, pensando corpo, trazendo um design autoral, chamado moda-ativismo, justamente ressignificando o fazer moda. Além de Isaac Silva, que atua em São Paulo e é também um expoente. Estes e outros pequenos empreendedores de moda afrobrasileira fazem moda política.”

      Por fim, não deixe de ver a coluna em vídeo da Djamila Ribeiro, que está em nosso perfil do Instagram, lá na ELLE Brasil. A Djamila retorna a ELLE falando sobre as origens do racismo. Uma aula!

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