Prevenção contra violência de gênero deve começar na infância
Na última reportagem da série sobre violência doméstica, Luciana Temer convoca um levante virtual para o Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes.
Logo no início da conversa, a entrevistada é quem pergunta: “Quem você acha que é a maior vítima de estupro no Brasil, o que vem à sua cabeça?”. “Mulher” é a resposta, errada, que ela mais escuta. E esta é a razão pela qual Luciana Temer diz ter uma missão: trazer para o dia a dia da sociedade um debate aprofundado sobre a violência sexual contra crianças e adolescentes. Não só porque obviamente é preciso protegê-los hoje, mas também porque esta é uma maneira de evitar violências contra a mulher no futuro.
Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, em 2020, 60,6% de todos os estupros registrados no Brasil foram contra menores de 13 anos, tendência que vem se confirmando ano após ano. A maioria das vítimas é do sexo feminino (86,9%). Os autores, quase sempre do sexo masculino (96,3%), e conhecidos delas em 85,2% dos casos.
Luciana é advogada, filha do ex-presidente Michel Temer, já teve cargos em administrações públicas de Fernando Haddad e Geraldo Alckmin, foi delegada de polícia e é professora universitária, além de comandar o instituto Liberta, que atua contra a violência sexual infantil. “Quando aceitei este trabalho, na minha lógica, a violência sexual contra a criança e o adolescente era uma questão residual. Eu achava que se você resolvesse a educação dos jovens, a desigualdade social, você resolveria isso. Pensava ‘vamos tentar cuidar da estrutura que isso vai se resolver’. Agora, após cinco anos imersa nessa temática, estudando, posso te dizer com tranquilidade que eu estava completamente errada. Esse problema está na base de muitas questões que a gente enfrenta hoje, inclusive da violência contra a mulher. Depois de 30 anos atuando com vulnerabilidade social eu enxerguei isso, e agora quero que todo mundo veja também”, afirma.
Números exemplificam como a violência sexual infantil pode mesmo ser a origem do problema. Segundo a Associação Brasileira de Obstetrícia e Ginecologia da Infância e Adolescência, em 2019, nasceram 19.330 filhos de mães entre 10 e 14 anos. Foi registrada uma média de 6 abortos em meninas de menos de 14 anos, totalizando 21.520 grávidas. “Essa é a média anual do Brasil. Ou seja, tecnicamente mais de duas meninas estupradas e engravidadas por hora. Pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, são mais de quatro meninas estupradas por hora no Brasil, isso considerando só o que é registrado”, diz Luciana. De acordo com dados do IBGE, entre as mães adolescentes, 6 em cada 10 não estudam nem trabalham. “É de 29,1% a taxa de gravidez recorrente entre adolescentes, então, olha a violência contra a mulher aqui. A violência contra a mulher de alta vulnerabilidade social, porque essas mães que não estudam nem trabalham saem da escola, não se capacitam, ficam sujeitas à exploração sexual, à violência sexual, enfim, a toda sorte de violências. Lógico que a violência contra a mulher não está restrita a isso. A gente sabe que tem mulheres de alta sociedade que são vítimas de violência, mas você tem um recorte social dessa violência superforte e óbvio”, explica Luciana.
Outro crime no foco do instituto é a exploração sexual de crianças e adolescentes. “Em 2020 foram mapeados 3.651 pontos vulneráveis de exploração sexual infantil nas rodovias federais, de acordo com a Childhood Brasil. O Brasil é considerado internacionalmente um dos países que mais prostitui seus meninos e meninas, especialmente as meninas, as meninas negras. Mas isso não está sequer no Anuário de Segurança Pública (publicação que se baseia em dados fornecidos por secretarias de segurança pública e polícias, entre outras fontes oficiais), está totalmente invisibilizado”, alerta.
E se nas beiras de estrada as vítimas costumam ser as mais pobres, na internet, qualquer criança ou adolescente está sujeito. “A questão da pornografia está absolutamente conectada à situação de violência entre os jovens e as crianças, que estão aprendendo o que é sexo pela internet. E o que eles veem é um teatro, pouco empático com as mulheres, que não retrata relações de sexualidade saudáveis nem reais. Nós adultos sabemos que é um teatro, mas eles não”.
Não é à toa, afirma ela, que crianças a partir de 6 anos conseguem acessar sites adultos. “A Gail Dines (socióloga estadunidense e especializada em estudos sobre o impacto da pornografia) fala muito bem sobre isso. É gratuito propositadamente porque a pornografia vicia. Tem uma descarga de dopamina igual ao álcool e às drogas. Você tem tantos homens com problema de ereção tão novos porque eles começam muito cedo com a masturbação pela pornografia. Isso é um vício. Um estudo da Europol mostrou que durante a pandemia o crime organizado migrou de tráfico de drogas e contrabando para estelionato e crimes cibernéticos, com produção e distribuição de material pornográfico infantil. A menina de 12, 13, na frente da câmera, acha que está falando com um menininho, e surge aquele crime do ‘Sextortion’: ele pede uma foto, ela manda, e o cara fala ‘se você não mandar outra foto assim, eu vou mostrar para os seus pais’. Aí ela manda outra e fica presa nessa rede de exploração. Então, veja o universo de coisas para as quais a gente tem que olhar.”
Denúncia ainda é tabu
Diante de dados tão alarmantes, por que ainda é tão difícil falar sobre o tema? Luciana volta aos números. “A gente fez uma pesquisa com o Datafolha em 2018 e 100% das pessoas entrevistadas sabiam que explorar sexualmente uma criança é crime. Mas só 29% dos que viram ou sabiam denunciaram”, diz. “Eu tenho feito uma pergunta para as pessoas: ‘se seu filho ou filha fosse vítima de uma violência sexual praticada por uma pessoa próxima, você iria à polícia denunciar?’ E a maioria das pessoas me responde: ‘não sei, depende do caso, é muito difícil, ia preservar o meu filho…'”
Na avaliação da advogada, essa violência tende a ser silenciada, independentemente da classe social de quem sofreu. “Não é só a menina da comunidade, que engravida do padrasto. Eu estou falando de meninos e meninas da minha classe social que foram vítimas de violência intrafamiliar, abusadas pelo avô, pelo tio, e a família silenciou. Quando me contam hoje, e eu pergunto se podemos gravar, a resposta é ‘ah, não posso, minha família não sabe’, ou ‘sou uma pessoa pública’. A verdade é que a violência sexual é a única em que a vítima tem vergonha de romper com esse silêncio.” De acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, apenas 35% dos estupros são notificados no Brasil. Mas, para a ativista, quando se trata de crianças e adolescentes, em um país de cultura machista, a subnotificação deve ser ainda mais alta. “E também tenho certeza de que a curva dos meninos é muito maior do que o que aparece para a gente.”
Para Luciana, reverter esses números passa obrigatoriamente por trazer o tema à tona até que se chegue ao ponto de evolução das leis e aumento de políticas públicas, em uma trajetória parecida com a traçada pela temática da violência contra a mulher. “A proteção, o empoderamento e a luta da violência contra mulher foram crescendo. E isso aconteceu graças a movimentos feministas, à organização das pessoas. Fui delegada na Delegacia da Mulher, em 1991, e era feio falar de violência contra a mulher, as pessoas não falavam, não era como hoje, que todo mundo dá a cara e fala ‘eu fui vítima’. Agora toda empresa quer botar um selinho de empoderamento, o que é maravilhoso”, afirma.
E prevenir, diz, é bem mais fácil do que remediar. Isso significa conversar não só com as meninas, mas também com os meninos. “Você tem que educá-los para a não-violência. E a verdade é que é muito mais fácil empoderar uma menina de 10 anos do que tentar fazer isso com uma mulher de 30, que passou a vida inteira submetida à violência. Isso não significa abrir mão desse enfrentamento cotidiano da violência contra as mulheres. Mas vamos trazer gente nova, vamos incorporar a questão das meninas.”
Levante virtual
Nesta jornada, Luciana planeja um grande passo nessa quarta-feira, 18 de maio, Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes. Convocando o levante virtual #AgoraVocêSabe, a ativista espera vídeos de 1 milhão de pessoas adultas que admitam terem sido vítimas de alguma violência sexual até os 18 anos. “A minha meta é 1 milhão porque eu sou modesta, porque tem muito mais nesse Brasil.” No site Agora Você Sabe estão todas as instruções para quem quiser mandar o próprio vídeo.
E rumo à meta de romper com a barreira do constrangimento que ainda faz com que as vítimas silenciem, a própria ativista trouxe a público violências que sofreu. A primeira aos 13 anos, quando voltava da escola a pé e passou por um homem que se masturbava e olhava para ela. “Aquilo foi horroroso. Fiquei muito tempo para conseguir fazer esse trajeto de novo sozinha. Você está num processo autônomo e ele é interrompido. Agora, eu sou uma pessoa com estrutura familiar. A menina da periferia vai chegar em casa e a mãe está trabalhando, o pai também. Essa menina não tem esse respaldo, então, a tendência é que o cara esteja lá no dia seguinte de novo. No meu caso, mandaram uma viatura na hora, e sabe o que aconteceu? Hoje eu vejo com clareza. O cara era um sujeito de 32 anos, engenheiro, filho de uma pessoa conhecida. Disseram para mim: ‘é um doente mental, maluco, não aconteceu nada, né? Deixa para lá’.”
O segundo episódio foi um estupro que sofreu aos 27 anos, durante um assalto. Luciana falou publicamente pela primeira vez sobre o episódio em entrevista recente à apresentadora Angélica. “Eu falei porque estou realmente convidando as pessoas a sair do constrangimento de terem sofrido uma violência sexual. E, obviamente, se eu estou chamando as pessoas, acho que tenho que dar o exemplo. O meu constrangimento hoje não é sobre a violência, é não ter denunciado. Com a maturidade e a vivência que eu tenho, vejo que foi um absurdo. A violência não pode constranger ninguém, enquanto continuar constrangendo pessoas, vai continuar acontecendo. Porque as pessoas silenciam e, com isso, pactuam.”
Com a ação virtual, o objetivo é gerar desconforto. “A gente acredita que algumas grandes mudanças só acontecem quando um incômodo social emerge publicamente. A gente quer que essa seja a última geração que se calou sobre violência sexual vivida na infância ou adolescência.” A partir daí, é possível fazer pressão para provocar mudanças. “Na hora que eu tiver um milhão de pessoas, vou chegar para todos os candidatos a presidente e a governador desse país e vou dizer ‘agora você sabe. Qual é o seu plano concreto para o enfrentamento dessa violência?’ E nós temos um projeto para apresentar, um plano de enfrentamento que passa por escolas públicas e privadas e trata de violências contra crianças pequenas e relações sexuais e afetivas saudáveis. A gente acredita que o caminho é pela educação nas escolas.”
COMO AJUDAR OU PROCURAR AJUDA
Plataforma que recolhe relatos em vídeo de pessoas que foram vítimas de violência sexual até os 18 anos.
Atua no acolhimento da mulher que sofreu um trauma, prestando auxílio psicológico e focando em sua saúde mental. Também faz a ponte entre sobreviventes que precisam de emprego e empresas parceiras. Instagram: @institutosurvivor. Para pedir ajuda, basta se inscrever neste link. Para ajudar como agente de acolhimento, é preciso se inscrever neste link.
Compartilha informações sobre violência de gênero, saúde e autoconhecimento nas redes sociais. Dá orientações em relação aos canais e instituições que podem ser procurados em caso de violência e assédio. Instagram: @sentinelasdelas
De forma online, oferece orientação jurídica, médica, psicológica, socioassistencial e rede de apoio e acolhimento a meninas e mulheres que sofreram violência doméstica. Basta preencher o formulário disponível no site e no Instagram @justiceirasoficial
Compartilhando Direito (Instituto Nelson Wilians)
Focado no empoderamento e na justiça social, o Instituto tem uma série de programas, como o Compartilhando Direito, para atender principalmente adolescentes, jovens e mulheres, sempre por meio de parcerias com outras instituições. Instagram: @institutonw
Rede Feminista de Juristas (Defemde)
Fazem atualmente um trabalho de advocacy, lutando pela criação de políticas públicas que combatam a discriminação de mulheres e ajudem a promover a igualdade de gênero. Instagram: @defemde.
Oferece ajuda especializada, em parceria com o Justiceiras, a vítimas de violência sexual, não se restringindo a mulheres. No site do projeto, é possível pedir ajuda, oferecer ou apenas dividir a própria história, de forma anônima. Instagram: @brasilmetoo
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