Alta sensibilidade não é frescura

Pessoas Altamente Sensíveis, ou PAS, apresentam uma capacidade sensorial acentuada e alto grau de empatia. Essa característica não é um transtorno nem torna ninguém especial, mas também não deve ser vista como fraqueza.


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Ilustração: Mariana Baptista



Um barulho que passa despercebido pela maioria vira algo intolerável. A intensidade da luz chega a afetar o rendimento no trabalho. Um cheiro um pouquinho mais forte deixa o ambiente insuportável. Você conhece alguém assim ou se identifica com essas situações? Pois saiba que apresentar uma sensibilidade exacerbada não é algo que possa ser reduzido a uma mera frescura – tampouco é um transtorno psíquico.

Cunhado pela psicóloga estadunidense Elaine Aron, o termo “Pessoas Altamente Sensíveis” (PAS) faz referência a uma característica fisiológica, geneticamente herdada, que acentua a capacidade sensorial. Para a neurociência, o cérebro tem plasticidade; é marcado pelo impacto dos ambientes, relações, educação, oportunidades e demais intervenções. PAS, segundo o conceito, teriam sinapses mais ativas no que se refere à recepção e o consequente processamento de estímulos.

Não é uma doença ou um diagnóstico, mas um modo de funcionar, enfatiza a professora de psicologia e coordenadora do laboratório de estudos da subjetividade da saúde mental da Universidade Estadual do Ceará, Ana Ignêz Belém Lima. “Existem pessoas com percepção mais aguçada, o que implica em incômodo com estímulos visuais, facilidade em ter enxaquecas e sensibilidade a barulhos, tecidos de roupa e cheiros”, afirma a doutora em ciências da educação, que também é neuropsicóloga.

A maior excitabilidade não se dá apenas com os cinco sentidos, mas também com quem está ao redor, explica a psicóloga Gabriela Campos dos Santos: “De maneira geral, elas tendem a ser mais empáticas”. E como a empatia é parametrizada? “Elas têm uma maior percepção do ambiente. Uma microexpressão de alguém é facilmente absorvida”, complementa.

Segundo a neurociência, relata Ana Ignêz, a empatia ativa no cérebro os mesmos sistemas da dor. Por isso, desligamos esse mecanismo em determinados momentos, ou não suportaríamos. “Nas pessoas altamente sensíveis, é como se não fosse desativado”, diz a professora. E essa situação acaba sendo retroalimentada: “Você é e se percebe dessa maneira ‘muito sensível’, os outros falam que você é assim e o sistema, o cérebro, é trabalhado para se desenvolver dessa forma. A nossa personalidade não está separada do modo de vida”, destaca.

O Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, DSM, e a Classificação Internacional de Doenças, CID, são os guias de referência utilizados por psicólogos brasileiros. “Tenho visto estudos e diálogos que colocam a alta sensibilidade dentro de alguns transtornos. No espectro autista, por exemplo, algumas pessoas são hipersensíveis”, explica a psicóloga Gabriela Campos dos Santos. Entretanto, a hipersensibilidade, em si, não é um transtorno, e por isso não consta nessas obras. A avaliação da alta sensibilidade é baseada em um conjunto de procedimentos que vão desde entrevistas aprofundadas (anamneses) e instrumentos de avaliação psicológica a exames clínicos, cita Ana Ignêz. Em institutos de pesquisa avançados, existe ainda o recurso de exames de neuroimagem.

Teste online

Em seu site, Elaine Aron tem um teste amplamente divulgado online em posts do tipo “Descubra se você é PAS”. Ele pode servir como uma escala, aponta Gabriela, mas não como ferramenta única. O teste não foi validado no Brasil pelo Sistema de Avaliação de Testes Psicológicos, braço do Conselho Federal de Psicologia (CFP) que analisa a qualidade técnico-científica de instrumentos psicológicos.

Classificações voltadas à saúde mental precisam ser cuidadosas, pontua Ana Ignêz. “Principalmente no caso das PAS. O próprio signo da sensibilidade é capaz de afetar o modo como a pessoa é percebida, fazendo com que ela se veja como doente e difícil. O indivíduo pode querer justificar comportamentos e, inclusive, não investigar questões por achar que tudo está relacionado à recepção mais aguçada da informação”, continua.

“É uma linha tênue entre ‘não dou conta disso’ e ‘preciso estender um pouco a minha capacidade”’, afirma a psicóloga Gabriela, que é, ela própria, uma pessoa altamente sensível. “Pode ser violento se submeter a situações avassaladoras, mas não precisa ser nem tanto ao céu quanto ao inferno. As reclamações que mais ouço são voltadas ao ambiente de trabalho”, relata. “O seu chefe não vai te liberar porque a luz do escritório está mais forte do que o normal. Focamos em como melhorar a adaptação no ambiente, em poder explicar e pedir”, complementa.

“Passei por um episódio no trabalho no qual presenciei uma injustiça com um colega; aquilo me desequilibrou um pouco”, relembra Gabriella Lollato, trafficking manager de uma agência de publicidade e PAS. “Estou tendo um primeiro contato com o mundo corporativo e tem coisas que todo mundo acha normal que, para mim, causam indignação e sofrimento. Eu vejo que para mim é um pouco mais difícil de lidar do que para as outras pessoas.”

O acompanhamento terapêutico é indicado em muitos cenários. “A pessoa precisa se desafiar. PAS mais introspectivas têm esse desafio. Eu brinco que não é uma ‘zona de conforto’, mas de ‘segurança máxima’, onde nada acontece e não é confortável, pois ela está enrijecida para não lidar com as situações”, afirma a psicóloga.

Introversão x extroversão

Por falar em introspecção: ao contrário do que possa sugerir o senso comum, sensibilidade e timidez não precisam andar juntas. Gabriela Campos dos Santos cita uma análise de Elaine Aron em que foi observado que 30% das PAS apresentavam traços de extroversão em suas personalidades.

A tese de PhD da doutora Jodie Valpied, na Escola de Ciências Psicológicas de Melbourne, na Austrália, intitulada “Mapeando um terreno em comum: relações entre processamento sensorial da sensitividade, introversão e extroversão, abertura à experiência e inteligência”, reforça que nem toda pessoa altamente sensível é introspectiva. A mesma tese também derruba o chavão de que quanto mais sensível, mais inteligente é a pessoa: “Contra as expectativas, não houve relações significativas entre PAS e talentos intelectuais”, pontua o estudo. A pesquisa de Jodie mostra ainda que a elevada excitabilidade no processamento sensorial pode ser resultado de uma superestimulação externa ou interna. O estudo também destaca que alguns indivíduos são capazes de ter mais de um tipo de alta sensibilidade.

A professora de inglês Daniele de Melo Silva, paciente de Gabriela há quatro anos, é uma PAS extrovertida. “Ela já havia me apresentado o conceito, mas eu apenas pensava: ‘Meu Deus, mais uma pessoa dizendo que sou sensível.’ Passei a vida inteira ouvindo minha mãe falando isso e agora só faltava minha psicóloga”, brinca. Após certa resistência, Daniele conta que começou a se aprofundar no assunto. “Quando eu vi que havia embasamento científico, que não era alguém falando que eu era chorona, tive a sensação de: ‘achei!'”, relembra. “Não que o estigma me definisse, mas era um peso ser percebida como fraca. Consigo comparar com a carga retirada de mim quando assumi minha sexualidade para meus pais.”

Daniele explica que tem sensibilidade a sons e barulhos repetitivos, o que a impede de frequentar algumas festas. Era uma criança que chorava muito, ninguém sabia o motivo, e apresentava resistência a tecidos específicos. “Sobre a tal da empatia que todo mundo fala, o que acontecia mais antes do acompanhamento terapêutico é que as dores de outras pessoas acabavam comigo”, conta. “A sensibilidade sempre foi uma questão no que diz respeito à família. Com o mundo, eu me virava. Apesar de ter algumas amarras, se eu precisava chorar no trabalho ou tirar intervalos, eu fazia.” Com a família, a professora de inglês afirma que tem, aos poucos, tentado mostrar que a hipersensibilidade não está relacionada apenas à frequência das lágrimas, mas que possui potencialidades. “Me ajuda no que diz respeito à comunicação”, diz, em relação à percepção aguçada.

Ceticismo

Por ser um estudo ainda incipiente, o conceito de Pessoas Altamente Sensíveis não é tão debatido, da academia à mídia, e encontra resistência por parte de uma cultura inflada por pseudociências e terapias ditas alternativas. “As pessoas estão desesperadas para acreditar em algo, para se identificar com alguma coisa. Por conta disso, creio existir uma certa desconfiança em relação a novas nomenclaturas e conceitos por parte da comunidade científica”, opina a psicóloga Beatriz Bandeira.

“Como tudo o que existe dentro do campo da psicologia, esse conceito se situa em um tempo e uma sociedade. Penso que se vivêssemos em uma cultura que reverencia a sabedoria da sensibilidade, talvez o termo PAS sequer existisse”, continua. “Em uma perspectiva gestáltica, linha pela qual eu atuo, poderia dizer que a PAS tem uma fronteira de contato difusa com o mundo – não delimita muito bem onde ela termina e onde começa o que está para fora de si.”

Beatriz destaca que a maioria dos indivíduos altamente sensíveis que atende apresenta, ou já teve, transtornos de humor. “São pessoas que foram tolhidas e repreendidas na infância e adolescência e, muitas vezes, na tentativa de se moldarem ao que o mundo considera correto, se sentem perdidas, deprimidas e ansiosas.” Gabriela Campos dos Santos faz a mesma observação clínica. “A dificuldade em lidar com a característica e o pouco respaldo encontrado criam um cenário favorável ao desenvolvimento de um transtorno”, pontua.

“Nos meus 20 anos, fui diagnosticada com depressão, o que eu não associo à alta sensibilidade. Já os transtornos de ansiedade, sim. Como recebo os estímulos intensamente, acredito que seja normal que eu pense além da conta sobre tudo”, conta Daniele de Melo Silva. “Já cheguei a tomar remédio para depressão e é algo que eu tenho que manter um pouco sob controle, com terapia, exercícios físicos e alimentação”, relata Gabriella Lollato.

Ciência modela a cultura

“Muitas vezes um alívio é gerado ao identificarmos o traço (de alta sensibilidade). A pessoa entende que não está doente ou tem um problema”, diz Gabriela Campos dos Santos. Uma ferramenta que facilita este trabalho, explica a psicóloga, é a fala, seja em um espaço terapêutico individual ou na troca de vivências em um grupo. Porém, na relação com o mundo, o entendimento da característica fisiológica, assim como diagnósticos de transtornos, pode gerar uma “Síndrome de Gabriela” – “eu nasci assim e vou morrer assim” –, pontua Ana Ignêz Belém Lima. “O outro não é obrigado a me compreender se eu não consigo me comunicar, se eu quero que ele adivinhe o meu modo de ser. Pode haver um uso para ganhos secundários, ou seja, alimentar um padrão que induz as pessoas a me perceberem como especial”, finaliza.

As especialistas entrevistadas para esta matéria afirmam que mais pesquisas precisam ser feitas para entender esta forma de funcionamento com maior profundidade e, como reflexo, educar a população sobre o assunto. A alta sensibilidade é comumente percebida como exagerada, deslocada e cientificamente infundada, apesar de ressonâncias magnéticas, por exemplo, conseguirem identificar a superativação de sinapses em alguns casos.

Apesar da maior necessidade de estudos, ter um conceito acerca desse traço, bem como um fluxo de pesquisas, ajuda a PAS a lidar consigo e com os outros com mais entendimento, afirmam as psicólogas. “Não que justifique certos comportamentos meus, mas, agora, eu consigo ter um olhar mais compreensivo e carinhoso. Estava escrevendo sobre ser altamente sensível para minha família, quem sabe eles não me entendem melhor sabendo disso?”, conta a trafficking manager Gabriella Lollato.

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