Batida feminina

No palco ou nos bastidores, protagonistas do hip-hop nacional refletem sobre o que mudou na cena nos últimos 30 anos.

Em 1997, quando começou a trabalhar com os Racionais MC’s, Rosimeire de Jesus, a Meire, como é conhecida, não via outras mulheres à frente da produção de artistas. Não que essa fosse sua única tarefa. “Minha função era dar conta de toda a demanda do grupo: fechar os shows, receber os cachês, organizar toda a produção e a logística. Fazia os pagamentos dos funcionários, agendava as entrevistas que eles topavam dar e também tinha a demanda da família, porque muitas vezes eles estavam inacessíveis em viagens e eu era o único contato”, lista. Moradora do Capão Redondo, na Zona Sul de São Paulo, Meire conhecia Mano Brown e Ice Blue. Foi convidada pelo segundo para trabalhar com o quarteto.

Passados 25 anos, muita coisa mudou. A estrutura aumentou e a demanda também. Parte das suas atribuições foi dividida com uma equipe, e ela continua responsável pela agenda de shows e pela logística do maior grupo de rap do Brasil. Além disso, quando circula nos backstages país afora, vê muito mais mulheres. O próprio Racionais é empresariado pela advogada Eliane Dias. O selo Ceia Ent., responsável por lançamentos de Djonga e também de Tasha & Tracie, é capitaneado por Nicole Balestro. Criolo, Black Alien, Don L, Rincon Sapiência e Rashid são apenas alguns outros rappers que têm mulheres em posições de liderança na condução de suas carreiras.

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Meire entre os Racionais MC’s.Foto: Arquivo pessoal

Trabalhando há dez anos na Laboratório Fantasma, Raissa Fumagalli, 28 anos, gerente de produção e A&R (responsável por fazer a ponte entre artistas e escritório) da hub de entretenimento de Emicida e Fióti, vê menos um aumento e mais um maior reconhecimento das mulheres que sempre estiveram na cena, mas ainda enxerga um abismo em relação ao número de profissionais homens nos bastidores. “Acho que existe uma mudança no mercado, sim, mas muito mais expressiva quando a gente fala das artistas, porque elas já conseguem ter mais destaque. Certamente, na época da Sharylaine e da Dina Di (1976-2010), não era como é hoje pra Karol Conká, Tasha & Tracie, Drik Barbosa, Bivolt”, defende.

No backstage, afirma, o cenário é bem diferente. “Recentemente, me vi em um palco, após a retomada de shows, com 40 pessoas trabalhando em uma montagem. De mulheres, só eu e uma roadie. O restante eram homens. Fico chocada porque estamos em 2022, e essa pauta está em discussão. E com frequência vejo que as poucas mulheres nem estão confortáveis no ambiente. Não tem a ver com o rap. É uma questão social, porque desconfiam da capacidade da mulher para exercer aquela atividade.”

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Raissa Fumagalli, gerente de produção da LAB Fantasma.Foto: Ênio Cesar

Roupa larga como proteção

Se em meados dos anos 1990 Rúbia, do RPW, Cris, do SNJ, além das já citadas Sharylaine, e Dina Di, do grupo Visão de Rua (homenageada com um Doodle, do Google, na data em que completaria 46 anos), eram as expoentes do rap feminino, hoje, felizmente, não é possível contar numa mão as maiores representantes da nova geração. Uma dos nomes mais lembrados como pioneira na cena, Negra Li guarda em suas memórias de adolescente, época em que iniciava a carreira, que nunca faltaram mulheres no rap. “Sempre via muitas mulheres em todos os eventos que ia, muitos grupos femininos de break, DJs, MCs rimando, só que elas não tinham muita visibilidade. Até hoje sinto a dificuldade de a mulher ser ouvida. Era muito difícil elas terem suas músicas, rimas e produções levadas a sério em um lugar predominantemente masculino, em plena década de 1990”, relembra a rapper de 42 anos, que começou sua carreira aos 16.

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Negra Li.Foto: Divulgação

Mais do que um estilo, as roupas largas que a maioria das garotas usava acabavam funcionando como uma proteção. “Acho que de certa forma era uma maneira de a gente se preservar, se vestindo como eles (homens), para que as pessoas olhassem apenas para o nosso talento, e não para o nosso corpo. Mas é muito chato você ter que fazer alguma coisa que não quer, mesmo que seja para se preservar. E isso só diz o quanto o meio era machista. Lembro de ver mulheres com roupas curtas também. E o que se falava delas não era legal”, lembra Negra Li. “Tem coisas que só fui perceber depois que fiquei mais velha, me tornei feminista, entendi onde estava o machismo, muitas vezes escondido. Passava mais tempo observando, quietinha. Já me sentia diferente porque o grupo (RZO) aceitou ter uma mulher. Eram pessoas mais abertas a isso”, relembra.

Na cena carioca, não era diferente. Nega Gizza, 44 anos, começou a carreira no rap cantando com MV Bill em seus shows. “O Bill sempre foi um homem que abria e abre até hoje espaço para as mulheres, sempre pensou nesse contexto de gênero.” Na estrada com o rapper, se deu conta de como era raro encontrar outras mulheres no palco. “Eu via, por exemplo, a Dina Di fazendo show e só ela representando as mulheres num line-up de 15 artistas. Também me lembro bem da Cris, do SNJ, que cantava e rimava com os caras, e da Negra Li fazendo apresentações com o RZO. A gente estava sempre se encontrando. E a minha lembrança é essa, de ver poucas mulheres MCs”, conta ela, citando ainda Edd Wheeler, do grupo Damas do Rap, e Kmila CDD, como expoentes do Rio nos anos 1990 e 2000, respectivamente.

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Nega Gizza.Foto: Divulgação

Maternidade

Com uma década de carreira, a rapper Cynthia Luz, 28 anos, é mãe de Helena, de 6 meses, e viu o desafio dobrar para conciliar a estrada com a maternidade. “É simplesmente uma loucura, tanto quanto para qualquer mãe que tem que trabalhar. A gente sente saudade do filho, saudade do fã, e as coisas vão tomando proporções gigantes. Mas tá aí essa força gigante feminina de trabalhar, ser mãe, esposa, filha, chefe, funcionária. Isso torna a gente o que a gente é, essa deusa”, diz. “Então, me sinto muito honrada de poder mostrar para a minha filha toda a garra que eu puder. Tem momentos em que me sinto muito triste, momentos em que estou explodindo de felicidade, mas tô certa de que tô fazendo o melhor pela minha família”, reflete a rapper, que prepara para este ano o lançamento de um EP e do álbum Ainda é verão.

Cynthia é parte de uma geração que consegue trabalhar com muito mais liberdade do que as precursoras do gênero no Brasil. Mas, mesmo com quase 3 milhões de ouvintes mensais no Spotify, não está livre do machismo. “O que eu mais escutava era que quem tinha trazido sucesso para mim tinha sido meu marido (o também rapper Froid). Meu ídolo, uma pessoa que eu amo e admiro, mas as pessoas creditavam meu sucesso exclusivamente a ele. Isso me marcou bastante. Com os caras, não é assim.”

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Divulgação: Julia Bandeira

Na outra ponta dessa linha do tempo está MC Soffia, 18 anos recém-completados. A paulistana subiu ao palco pela primeira vez para mostrar suas rimas aos 7 e passou parte de sua infância e adolescência com um microfone nas mãos. Sobre o lugar que vê a mulher ocupar no rap, é enfática: “Sou muito jovem, mas tenho 11 anos de carreira e o que posso dizer é que tem muita luta pela frente”. Em músicas como a recém-lançada “Papo reto”, ela fala do que acredita ser o maior desafio no rap e fora dele. “A mulher, de uma maneira geral, é apagada pelo machismo. A mulher negra, além disso, sofre com o racismo. No rap, não seria diferente.” Mas a MC não cruzou os braços: tem o projeto Ocupa Pretinha, que apoia artistas negras, e sua equipe é formada principalmente por mulheres negras, de sua própria família.

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MC Soffia.Foto: Divulgação/Lucia Makena

Reflexos da sociedade

Embora por vezes fique com a pecha, o rap não era nem é mais ou menos machista do que qualquer outro gênero musical. “O que a gente via dentro da cultura hip-hop era o que acontecia na sociedade. A gente vive num lugar em que a maioria somos nós, as mulheres, e mesmo assim a gente vê essa desigualdade”, afirma Nega Gizza. Meire exemplifica: “O rap é conhecido por uma predominância masculina, acusado de machismo, mas o Racionais sempre teve uma mulher na liderança, negra, que às vezes não aparecia tanto, mas ao longo do tempo isso ficou evidente.”

Que ainda há muito a avançar, ninguém discorda, mas há também o que celebrar. “Gosto que pipoque uma menina atrás da outra cantando o seu rap, seu trap, grime, drill, outros estilos que nasceram do boom bap (batida tradicional no rap). Dou força para que isso prossiga porque é a evolução, é a participação, é a movimentação de a mulher estar onde ela quiser”, afirma Nega Gizza.

“Adoro que as mulheres tenham liberdade para falar e vestir o que elas quiserem. Para mim, é pura evolução”, diz Negra Li, que conta sua trajetória no single ainda inédito “Era uma vez Liliane”. “Fico muito feliz e grata de ainda estar atuante, vivendo esse momento e podendo usufruir dessa liberdade também.”