Ponto de interrogação

O que o rap tem a dizer sobre relações familiares?

 

image 549

Dizem que o rap pode ser uma figura paterna, e essa é uma construção bem frequente tanto entre quem faz quanto entre as pessoas que ouvem. Todas? Não, mas muitas. Muitas. Como se o rap fosse um dos nomes da função paterna quando o pai morre, some ou só trabalha, é distante, não tem uma presença, às vezes é pouco mais que um nome mesmo.

Não é que o rap seja exatamente isso, mas ele pode ser ouvido e vivido nesse lugar. E de fato assim acontece. As próprias letras de rap falam disso. De um certo papel de organização dele na vida das pessoas, especialmente para moradores das periferias do Brasil. Não à toa, em seu repertório autorreferente os coletivos se chamam muitas vezes de “família”. Famílias, mesmo essas, sem dúvida atravessadas pelo patriarcado, mas não um xerox da família tradicional brasileira patriarcal.

Tem uma história, nomes que mais que uma cena, formam um movimento de décadas. Com a música, diz o hip-hop, vem muita conexão. Vem construção de cidade, vem cuidado com as infâncias, vem arte. Não é, nunca foi qualquer viagem. Ah, mas tem defeitos, problemas, questões. Sim, claro. As coisas podem ser discutidas, reavaliadas, podem ser analisadas. Isso não é absolutamente equivalente a ondas de julgamento e linchamento esvaziadas, feitas com o objetivo único de envenenar e destruir.

O rap tem consistentemente apresentado suas bases. Um dos maiores raps de todos os tempos, não do Brasil, do mundo, começa com dados estatísticos sobre o racismo no Estado brasileiro. Chama-se “Capítulo 4, versículo 3”, do Racionais MC’s. E esse é um exemplo entre centenas, milhares de faixas.

Tem de tudo. Abismo racial, abismo social, detalhes do impacto sobre as crianças do desmantelamento das famílias. Não de forma necessariamente moralista, mas falando das dificuldades absurdas, impensáveis, cruéis, que foram, que seguem sendo impostas a pessoas que querem criar seus filhos, que querem levar a vida, que querem ser respeitadas em suas existências. Com casa. Com comida, escola, com acesso à saúde. Com diversão, com graça, com direito a ter um sossego, um agrado, uma massagem.

Tem o sistema prisional, seus dentes esmagadores, máquina integrante de um grande triturador. Tem as vozes daqueles que estão presos no país, e isso tem de forma inédita. Tem as aflições, tem os medos, as paranoias, as traições, tem o abandono. Registrado, feito público, cantado país afora.

E tem isso que é o rap e que só se forma coletivamente. Emana das pessoas e é reconhecido além delas, por elas, com elas. Parte do hip-hop, “the healer”, como disse Erykah Badu, aquele que cura ou aquilo que cura. Também com palavras, com reconhecimento, com incentivo para que haja transformação, luta por direitos.

O rap como lugar que permite a pergunta, permite que essas pessoas façam questão de suas vidas. É um lugar que pode receber essas questões. Nesse contexto, dá pra situar a ideia de uma figura paterna em um certo arranjo. Não de um pai único e líder. De um lugar ao qual perguntas importantes sobre a vida podem ser dirigidas. Vai responder a todas, resolver todas elas? Não, obviamente, porque não é disso que se trata.

O pai como função não tem certeza. Quem tem certeza é branco quando junta com rico. Não é total, claro, mas é bastante. A certeza de não ser alvejado por todo e qualquer motivo, por motivo nenhum, certeza de que seu bem-estar será considerado individual e socialmente. Isso não é uma grande certeza? Sem dúvida, bota a pessoa num lugar. Mas não diz tudo sobre ela, não justifica sua posição privilegiada, não a qualifica como merecedora.

Mas mesmo aí o rap inova. Há diálogos entre pessoas, entre mundos, há uma pessoa conversando com, digamos, versões dela mesma. Tem sonhos, pesadelos, memória, trauma, religião, relato, imaginação, cortes, aparições bruscas que mudam o curso do que está rolando. Abre universos.

Tanto se torturavam as pessoas pra que se sentissem menos quando, por exemplo, não tinham o nome do pai na certidão de nascimento. Nosso governo machista e racista reforçou esse preconceito o quanto pôde, com ignorância, com afirmações sem nenhum fundamento senão a própria reafirmação do preconceito. Isso para além das questões enormes que as condições materiais imediatas implicam. Mulheres sobrecarregadas, falta de dinheiro, exploração, dores muito pessoais, perpetuação das desigualdades. A violência estrutural, psíquica, atmosférica, cultural aí envolvida.

Enquanto isso se cobra tão pouco dos eternos “meninos” e seus papais ricos, esses bem palpáveis, que pagam, compram a “inocência” de seus herdeiros até em casos gravíssimos. Nesse meio-tempo, alardeiam sua suposta universalidade, sua dita superioridade. Já pensaram como o “bandido” é sempre pensado a partir do pobre, do periférico, do negro? Isso não tem nada de natural, e essa construção é colocada em xeque pelo rap.

A presença e a ausência de uma pessoa numa família, numa comunidade, implicam coisas diferentes para seus pares. Mas não define nada sozinha. Principalmente não define o caráter nem a qualidade e as consequências das ações individuais e do grupo. Já o racismo, por sua vez, vem definindo muita coisa que jamais deveria ter definido. A vida ou a morte, para voltar a esse exemplo incontornável, abismal.

O rap recebe a bala dessa questão que se coloca. Ele permite, nesse contexto, escutar aqueles que perguntam por que suas vidas são colocadas nos termos de uma sobrevivência. A resposta não pode ser dada por uma só pessoa, mas cada um que participa da coletividade pode dizer da sua vida tendo o rap como referência. E algumas vozes se destacam por diversos motivos.

Algumas delas têm grande capacidade de representação, carisma. Outras têm mais estrutura de negócios. Ou as duas coisas andando juntas, o que não é nenhum pecado em si. Não é sobre voto de pobreza. A questão do dinheiro concentra muita coisa, não se resolve com moralismo nem com hipocrisia. É algo que merece atenção.

O rap também permite questões sobre amor, sexualidade, relacionamentos, abre espaço pro romance, pra delicadezas. Ah mas tem letras machistas também. Evidente. Tudo o que se produz na cultura está em relação às questões do seu tempo. Pode-se discutir, mudar, rejeitar, relativizar, responsabilizar, colocar as cartas na mesa. Pode muita coisa.

O que ocorre é que em certos lugares o cancelamento vem com sirene. Em outros vem com oportunismo, como modo de capitalizar. E aí também o racismo e a questão de classe falam alto. O gênero está sempre envolvido, mas nem sempre da forma que se imagina.

O que eu escuto de bom são nomes de destaque no rap levantando discussões de alto nível. Mobilizando gente boa de outras áreas, falando de forma digna e com intenção de espalhar informação boa, não podre.

Os que estão vivos e conseguiram construir espaço, seguem o trabalho em um país que gasta milhões dos cofres públicos em farras pessoais e militares, mas chama cultura de vagabundagem. O governo que vem se mostrando um dos mais corruptos da história, ao contrário do que alardeava, esse governo prejudicou também esse espaço do rap, dificultou o acesso. Faz parte do projeto de destruição cultural em curso.

O rap deu lugar à voz de mães, crianças, adolescentes. Aos pais também. Tem muitos em diferentes tempos, situações, dimensões, registros. Homens não-brancos ou brancos fora dos círculos do dinheiro, das classes mais ricas. Mulheres negras, mulheres trans, elas acharam voz no rap, chegaram, tomaram, construíram. Espaço criado por e com elas, algo que segue em curso, em constante processo.

Vertentes, estilos. Mais longevidade. Espaço para vomitar e elaborar ódios, mas também para a suavidade. Fraternidade, delicadeza. Sim, dinheiro, afronte, consumismo, lacre, putaria também. Por que existe sempre essa exigência de santidade em lugares específicos, de certas pessoas? Racismo, classismo, o cardápio de sempre. Cai quem quer e às vezes quem não queria. Quem não cai em conversa pra boi dormir abre caminho pra pensar no que quer ou não quer deixar cair.

É vivo, tem renovação. Meninas, meninos, menines. Tem novos grandes nomes, a transmissão não se faz no idêntico. Tem exemplo, tem espelho, mas também tem inspiração, tem alguma liberdade, tem tecnologia inteligente, inovação. Tem muita gente extremamente talentosa em atividade. Tem, como diz o nome, ritmo e poesia.

Quilombo, revoltas, revoluções, cotas. Escrita, saudade, saúde, abraço, desabafo, acolhimento. É impressionante a amplitude da coisa, é importante mapear os lugares já alcançados pelo rap e como isso se deu.

Destacar uma frase, um trecho, isso é fácil. Faz parecer conhecedor. Mas e daí? Agora, se você escutar um pouco cada um dos artistas citados nesta edição e, a partir deles, chegar a tantos outros, talvez comece a se aproximar do que se trata. Talvez você se envolva, talvez algo em você se mexa, mude de lugar. Não é só o conteúdo, a mensagem, as referências, o que se diz. É o flow, é a música. É o rap.