“Autorretrato como Clara dos Anjos”, 2022. Óleo sobre linho.Acervo Panmela Castro
Um espelho com a frase “Ostentar é estar viva”, escrita em spray, foi uma das obras mais fotografadas e compartilhadas da última SP-Arte, realizada este mês. E Panmela Castro, sua autora, está vivíssima: oito obras assinadas por ela integram a recém-inaugurada mostra Contramemória, no Theatro Municipal de São Paulo. No MAM-Bahia, ela participa da coletiva Encruzilhadas. Sua mostra solo Retratos Relatos, que aborda o tema da violência doméstica, acaba de encerrar uma temporada de sucesso no Museu da República, no Rio de Janeiro, e vai percorrer o país, com uma primeira parada em Goiânia.
A artista visual carioca de 40 anos não para, mas, às vésperas de uma viagem internacional, conseguiu fazer uma pausa para falar à ELLE Brasil sobre sua carreira, preocupações com o futuro e guinadas na vida. Uma delas: após uma década de consagração no grafite, Panmela Castro decidiu romper com o universo do hip-hop. O processo foi libertador por dois motivos: primeiro, ela conseguiu endereçar sua ambição de ter suas obras em museus e galerias, algo que o grafite não permitia por ser uma arte da rua para estar na rua. “Como eu ia ter toda a produção de uma vida registrada, sendo ela efêmera e não estando nos espaços de cuidado da arte?”, indaga. “Eu queria estar nos museus e ter minha arte preservada nesses locais para a posteridade.”
Segundo: Panmela finalmente pôde se despir de estereótipos de feminilidade que eram premissas para ser aceita no grafite. “Tomou-se uma consciência de que era importante incluir as mulheres no grafite, só que essa inclusão era restrita dentro dos padrões dos homens. Era a menina que ia se comportar bem, ser meiga, sorrir, se dar bem com todos eles”, diz a artista.
Entre memórias nostálgicas da cena da Lapa, com Marcelo D2 e Marechal, doces lembranças com Emicida e Criolo, e o borbulhar do BK’ no Catete, Panmela acompanhou gerações do rap nacional de estrelato e também os CDs independentes das MCs que rimavam sobre ativismo. A partir dessa visão de dois mundos do rap e do grafite, ela propõe uma reflexão constante sobre qual é o lugar que a mulher ocupa na construção desse novo imaginário jovem e de orgulho.
Hoje, com performances radicais emblemáticas e telas que exalam força e sensibilidade, ela se prepara para lançar um livro pela Rede Nami, ONG fundada por ela, que utiliza a arte – especialmente o grafite – para acolher mulheres e promover a formação de lideranças. Previsto para sair em ainda 2022, Hackeando o poder – Táticas de guerrilha para artistas do sul global é a condensação de experiências de Panmela na sua transição de área dentro das artes visuais com as vivências e estratégias de outras mulheres.
“É um livro sobre direitos humanos e também um manual para que minorias – pessoas trans, negras, este ‘outro’ do norte global – consigam alcançar esses espaços de poder na arte. Porque arte é decisão, influencia a vida das pessoas e necessita de cuidado com essa produção”, defende. “Se essas pessoas não estão nos museus, nas galerias, mostrando seus trabalhos e vivendo de arte, com potencial de produzir, vai acontecer o que a gente tem visto até agora: uma história da arte branca, europeia, que não diz nada sobre a gente e apaga Heitor dos Prazeres e Maria Auxiliadora, enquanto elege a galera da Semana de 22 por um século como a grande escola da arte brasileira. Basicamente, tenho me dedicado a isto nos últimos tempos: reescrever essa história, não só pra mim, mas para outras mulheres.”
Você contou em uma entrevista que cresceu muito trancada em casa. Achei isso muito curioso, porque seu contato com artes visuais começou com o grafite, que é uma cultura muito própria da rua. Como que foi isso?
Com 17 anos, eu passei na Escola de Belas Artes e minha mãe disse que eu era adulta e estava livre para fazer o que eu quisesse. Quando eu comecei a pichar, já tinha 19 anos. O grafite foi uma forma de me socializar, já que eu não tinha experiência de vida. Comecei a grafitar como profissão apenas em 2004, depois da minha separação, em que sofri violência doméstica e não podia sair de casa. (Panmela chegou a ser mantida em cárcere privado por uma semana pelo ex-marido.) Então, conheci muita gente que estava no boom do grafite e eles começaram a me chamar. Eu reparei que, quando eu saía com aquele monte de homem, eu estava protegida e podia sair de casa sem ter medo da perseguição do meu antigo companheiro. A pichação ajudou muito nesse processo.
Hoje, quais são os sentimentos que mais movem você criativamente para montar uma performance?
Eu acho que as experiências de vida. Quando eu tenho uma angústia sobre algo que aconteceu, eu começo a ter visões, que se baseiam no exercício de pensar mesmo as situações e permitir que isso vá se materializando em trabalho. Geralmente, vem das situações que a gente passa e fica bolado. Eu lembro que a minha primeira performance pública, em 2015, foi quando eu comecei a pensar em romper com o grafite. Mais tarde, em 2017, eu excluí todos os grafiteiros, rappers, acabei com o hip-hop da minha vida. Em 2015, eu fiz essa performance em que eu estava superfeminina. O meu trabalho era sobre o fardo do feminino: eu chamei as pessoas para tirarem todo o meu cabelo, que era um loiro muito comprido, até a bunda – a Nega Gizza brincava que eu era a Beyoncé do hip-hop brasileiro. Tirei também a minha roupa, que era um vestido feminino gigante, e eu vesti um blazer preto. Eu me despi de todos os excessos que eram investidos para ser aceita. Para estar no grafite, no meio do rap, se eu não fosse extremamente menininha e submissa, eu era excluída e boicotada, como eu sou até hoje. É porque hoje eu não dependo de ninguém para porra nenhuma. Tanto que, quando eu criei a Rede Nami, foi porque eu não queria depender de ninguém, e fui fazer uma cena nova, das minas. E a gente criou um novo universo: qual grafiteira no Brasil não é feminista hoje em dia? A gente formou uma geração de feministas. Eu sei que eu não comecei isso, mas a minha forma de gerir e as metodologias que eu usei para isso provocaram uma transformação efetiva com todas as outras mulheres que seguiram no grafite a partir daí.
Como era essa dinâmica de boicote?
Tinha uma percepção ética dos homens que era necessária: tomou-se uma consciência de que era importante incluir as mulheres no grafite, só que essa inclusão era restrita dentro dos padrões dos homens. Era a menina que ia se comportar bem, ser meiga, sorrir, se dar bem com todos eles — se você questionasse qualquer coisa, eles te excluiam muito. Em 2017, quando eu decidi romper, eu não aguentava mais ser obrigada a viver sob essa feminilidade para ser vista como mulher e ser aceita do lado deles. Se eu ficasse esculhambada, eu não era nem vista como uma mulher – e hoje em dia eu nem sei mais se eu me vejo como uma mulher, porque, se a mulher está dentro desse padrão que os homens definem, talvez eu não seja mulher mesmo. Mas, no geral, os homens esperam esse estereótipo do que é uma mulher e, quando você frustra isso, surge a violência, que está tanto em falas como em atitudes.
Nessa nova fase, o que você ainda carrega do grafite e do hip-hop?
O lance é que eu estava fazendo grafite de rua e eu comecei a me interessar por essa relação com o outro, do meu corpo – lido como cis e feminino – com essa paisagem urbana, a cidade e outros artistas. As imagens que eu deixava na parede deixaram de ser importantes pra mim. E eu só consigo expressar minhas vivências através da arte contemporânea, que começa com performances e deságua em várias outras coisas, como vídeos, fotos, objetos e pinturas.
Uma das performances suas que mais me virou do avesso é a “Por quê“. Ela já é tão carregada de desconforto – o peso da caminhada, a violência física, a violência psicológica –, mas ainda assim você sentiu necessidade de escrever, pichar dados sobre violência contra a mulher. Por que você escolheu pichar? O que a atrai na linguagem do pixo?
O nome da performance é “Por quê” e ela indaga o motivo desse fardo, desse sofrimento rasgado de sangue no peito. (Panmela escreve a pergunta “por quê?” com uma lâmina na própria pele.) E eu picho as respostas: os índices de estupro, feminicídio e gritos de ordem, como “não é não”. Eu escolho aquele túnel (que liga o Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea e o Polo Experimental, em Jacarepaguá) porque ali fica muito escuro e ocorrem muitos roubos e estupros, ainda é um lugar muito perigoso para as mulheres. Então, o túnel fica como uma memória da performance, dessas preocupações e desse sentimento.
Como você se prepara antes de uma performance?
É um problema físico, eu trabalho melhor o psicológico – na verdade, não, eu fico bem doida, tenho que tomar Rivotril, mas com isso eu lido melhor. O pior para mim é o desgaste físico. Em dias de performances, eu acordo e fico esticada na cama o dia todo. Eu não faço nenhum movimento brusco porque, mesmo sendo muito agitada, a performance toma muito. Eu tento ficar bem calma. E depois eu fico doente – com febre, gripada, porque é muito desgaste, troca de energias, e tem esse corpo físico que fica abalado. Sempre fico uns três dias de resguardo depois, esperando melhorar. É horrível, fico cansada a ponto de não conseguir levantar meu corpo.
Fico pensando como é viver uma performance violenta e que, ao mesmo tempo, deixa esse sofrimento resignado, como é o caso de “Ato delicado” (nessa performance, Panmela costura pérolas na própria pele, com agulha e um fio dourado).
Essa performance das pérolas foi a mais difícil que eu fiz. Hoje em dia o pessoal nem faz mais essas performances mais radicais, de transformação corporal, que era muito comum na década de 70, com a Marina Abramovic. Hoje, tem alguns artistas tipo o Carlos Martiel, que é a minha maior referência de performances radicais em relação ao corpo. Teve uma performance que eu fiz com o Caligrapixo, grafiteiro e pixador de São Paulo, em que ele escreve o poema nas minhas costas, enquanto eu declamo. Minhas costas ficam detonadas, tanto que toda vez que eu vou ao dermatologista, os médicos ficam assustados. Minhas costas são riscadas, ficam todas chapadas no sangue. O poema era “Vagina dentada”, que é um mito falando sobre o medo do homem da mulher. Na “Ato delicado”, que é essa em que eu costuro as pérolas no meu peito, como um colar, a violência contra o corpo é muito menor, mas ela foi muito mais difíci, porque eu fiz aquilo em mim mesma. Quando é um risco superficial que sangra, como em “Por quê?” é uma coisa. Agora, enfiar a agulha, se furar e se costurar… Eu achei que não ia conseguir fazer, tanto que eu fiz um teste antes em casa para ver se ia rolar. Até o dia da apresentação eu achei que não seria possível. Eu tenho que aplicar injeção toda semana para alergia e, nossa, para tomar aquilo já é uma luta. Minha irmã tem que ficar brigando comigo porque eu não quero ir lá tomar – imagina eu costurar um cordão.
Nossa, eu imaginei que você seria tranquila com agulhas no geral, seja vacina, seja perfuração…
Não! Para colocar piercing quase que eu morro, tanto que não tenho mais nenhum. Tirei todos e não quero mais fazer nada.
Conta mais sobre a Rede Nami. O que fez você promover a ONG?
Nami vem de mina, que na língua do TTK, que é uma linguagem nascida da pichação na década de 70, falada de trás para a frente. Tipo: polícia é cialipo e mina é nami. Na época que a gente fez era Rede Feminista de Arte Urbana Nami. Hoje em dia não é nem só arte urbana nem só feminista, porque tem pessoas mulheristas, homens trans, então, o nome já ficou ultrapassado. Mas acho que isso também tem a ver com o que eu te falei sobre grafite. Tem movimento: começa como uma coisa e depois se torna outra coisa.
E como funciona o processo de aproximação das mulheres?
Eu comecei a fazer projetos de grafite na Ilha do Governador em 2004. Em 2006, a Lei Maria da Penha é aprovada e, em 2008, eu comecei a trabalhar com o tema da violência doméstica, justamente por eu ter sido vítima e, na época em que isso aconteceu comigo, não tinha Lei Maria da Penha, então, não aconteceu nada com meu agressor. A convite de uma organização de direitos humanos lá da Baixada Fluminense, eu começo a fazer oficinas. Em 2010, eu resolvi juntar a mulherada toda e fundar a Rede Nami. O objetivo da Rede Nami é usar a arte para chegar nessas minas, fazer essa primeira formação e impulsionar elas no mundo como lideranças, na arte, mas na ciência e na política também. Eu não tinha ideia de como gerir uma organização, mas tive muitas oportunidades, muitas mulheres que me ajudaram. Hoje em dia, a Rede Nami é uma das organizações de mulheres mais respeitadas do país.
Participantes da oficina Afrografiteiras, da Rede Nami, em frente ao mural “Galáxia”.Foto: Gabriel Andrade
O Brasil vive situação cultural curiosa, em que há o avanço de um conservadorismo militarizado neopentecostal, ao mesmo tempo em que a gente tem artistas que, como você, questionam essa estrutura patriarcal de forma incisiva. Como é para você atuar nesse contexto?
Parece às vezes que a gente vai perder, né? Mas a gente está aí. Acho que se cada um contribuir com o que tem, da forma que pode, a gente pode avançar nessas pautas de direitos humanos. Eu faço pós-graduação em direitos humanos, cidadania global e sustentabilidade e, nos nossos estudos, eu não sei quanto tempo a Terra vai durar. Por isso, quando eu falo de formar lideranças, ocupar espaços de poder e decisão, na política principalmente, eu falo para a gente poder decidir o futuro do planeta, da casa comum. Se a gente não pensar junto no agora, não tem mais nada para o futuro. Eu vejo muita gente que está pensando no agora, nas suas vidas, e nem se importa com esse legado. Está aí o aquecimento global, os desastres como as chuvas em Petrópolis, queimadas nos Estados Unidos, todo lugar do planeta tem problemas relativos à mudança do clima. Se a gente não tomar decisões agora, a gente não vai ter nem planeta para poder exigir os nossos direitos. Eu estou muito preocupada com os nossos direitos e o avanço de pautas que precisam ir para a frente, e a gente precisa brigar com o conservadorismo. Mas penso também, principalmente, na sustentabilidade do planeta, da ecologia e da nossa casa. Muitas vezes, até as pautas feministas do agora ficam um pouco pra trás. Se não tem casa, importa a gente ser feminista?