Depois da tempestade

Um ano após sua polêmica passagem pelo Big Brother Brasil, Karol Conká lança Urucum, disco em que abraça suas feridas, e conta à ELLE sobre sua vida após o reality show: “A verdade é que toda mulher muito forte se sente frágil”.

“Eu entendi que para renascer como uma fênix eu precisaria queimar real. E, para isso, precisei lidar com a verdade e ser humilde para reconhecer o que tinha acontecido”, conta Karol Conká à ELLE. O episódio em questão todos conhecem: a turbulenta passagem da rapper em 2021 pelo Big Brother Brasil e sua saída do programa com uma rejeição recorde (99,17% dos votos). Por causa de sua polêmica conduta no jogo, Karol, 36 anos, foi julgada de maneira implacável, lidou com o ódio, o racismo, a misoginia e a agressividade de milhões de pessoas.

Não à toa, o nome da rapper foi o mais procurado na lista das Buscas do Ano do Google de 2021. Ela foi ainda tema de A vida depois do tombo, série documental da Globoplay, lançada em abril, e a convidada de Mano Brown na estreia de seu podcast, Mano a mano, em agosto. Em ambos, refletiu publicamente sobre seu cancelamento.

O caminho que ela encontrou para seu renascimento foi o mesmo ao qual recorre desde menina: a música. Poucos meses após a eliminação, entrou em estúdio com Rafa Dias, ou RDD, do grupo baiano Àttooxxá, para produzir as canções de seu quarto álbum, Urucum, uma referência ao fruto usado pelos indígenas. “Ele tem várias propriedades e uma delas é a folha, que é cicatrizante.”

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O álbum nasceu da urgência de a cantora entrar em um processo de autoanálise e cuidado, fazer as pazes com sua vulnerabilidade e abraçar suas cicatrizes. “Cheguei bem leve (no estúdio) e, ao mesmo tempo, firme com as minhas percepções. À medida que eu ia compondo, ia me sentindo curada, cicatrizada. Sentia que estava entrando mais no eixo.”

A parceria entre Karol Conká e RDD é comemorada pela cantora, que há tempos tinha o desejo de trabalhar com o produtor. O disco traz inúmeras referências a gêneros afro-diaspóricos, passeando pelo trap, pela música jamaicana e por ritmos baianos. É um álbum maduro, que evidencia esse momento introspectivo da rapper, que canta com uma levada diferente. “Ele (RDD) acabou extraindo de mim, a partir de conversas despretensiosas, uma vontade de cantar ou de escrever diferente.”

Em entrevista à ELLE, Karol, Mamacita, Jaque Patombá – como a própria rapper batiza as nuances de sua personalidade –, ou simplesmente Karoline dos Santos de Oliveira, fala sobre o turbilhão do último ano e o novo trabalho.

No disco, podemos ver Karoline, Karol Conká, Jaque Patombá. Como foi esse momento em que você se sentou para compor todas as canções? O que sentiu, o que a inspirou e como você construiu esse caminho?
Passei por um processo de autoconhecimento, autoanálise, e percebi que é natural todo ser humano ter camadas e personalidades diferentes em cada situação. Estava vindo de uma cobrança impulsionada pelo ódio do público, estava me cobrando demais. Cada pessoa tem uma maneira diferente de lidar com determinada situação. Fui curando algumas coisinhas que foram ficando pelo caminho sem eu dar muita importância, desde a minha infância até a vida adulta. Consegui fazer arte a partir desses aprendizados e vivências. Quis tirar temas dessas percepções para elaborar as músicas. Tem uma chamada “Calma”, que fiz pra Jaque Patombá. Falei: “Querida, muita calma, relaxa”. Tem outro momento que a Jaque também pede pra cantar, ela fez a música dela, “Cê não pode”.(risos) Essa música eu fiz pro cancelamento, eu e a Jaque falamos: “Comigo, cê não pode, não”. E tem a Karoline, tem a Mamacita. Então, é legal tirar uma onda com essas percepções de personalidade que todos nós temos. Mas a gente prefere olhar mais as dos outros do que as nossas. Quis olhar pra mim nesse álbum, pra essas camadas, e criar temas a partir daí.

“Percebi que é natural todo ser humano ter camadas e personalidades diferentes em cada situação.”

O disco traz muitas referências afro-diaspóricas e uma estética preta. Como foi o nascimento desse filho? O que o Urucum traz e o que difere em relação aos seus outros trabalhos?
Urucum traz um convite para viver intensamente, se aprofundar nas sensações. As batidas foram produzidas todas no meu estúdio, de forma orgânica e intuitiva. Então, brinco com o RDD que a gente tem dificuldade de explicar quais foram os caminhos para chegar aonde a gente chegou, pois tudo foi feito de uma forma muito intuitiva. Foi como “tô sentindo um cheiro de bambu, do mar…” e ele ia fazendo o beat. Acho que as referências já estão estão internalizadas na gente, no nosso sangue. É um disco de muitas texturas musicais e por isso a dificuldade de decifrar o que uma música só representa. É muita mistura.

Você tem uma levada, um flow diferente no álbum.
É. Tem dor na voz e, ao mesmo tempo, tem alívio, tem sopro. A gente não sentou e desenhou o álbum. A gente só foi fazendo música e quando a gente percebeu já tinha 12 canções, que dava para serem lançadas e que funcionaram como um processo terapêutico pra mim. Esse processo de criar música é também botar pra fora. Eu não tinha pretensão de fazer uma música que o público espera. Ali, era tudo puramente arte e alívio.

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Você comentou que urucum, o fruto, possui propriedades cicatrizantes. Como tem se dado esse processo de cura tão íntimo e, ao mesmo tempo, observado pelo Brasil?
Foi totalmente intuitivo e sensível, como disse, e em nada pensando nessa parte mercadológica. Foi totalmente despido de ego e soberba. Cheguei bem leve (no estúdio) e, ao mesmo tempo, firme com as minhas percepções. À medida que ia compondo, ia me sentindo curada, cicatrizada. Sentia que estava entrando mais no eixo. O que mais me deixou impressionada, com o passar desses tempos todos, foi fazer as pazes com a minha vulnerabilidade. Tinha um problema sério com ela, a ponto de criar uma carcaça regada de soberba pra dizer: “Eu não caio, não me sinto frágil”. A verdade é que toda mulher muito forte se sente frágil. Fazemos escolhas para lidar com isso. Às vezes com a cara mais fechada, outras com uma voz mais imponente ou no deboche. Tive a oportunidade de fazer as pazes com a vulnerabilidade e consegui entender que preciso dela para estar em contato comigo mesma, para me conhecer melhor, para me acolher mais. Percebendo isso, fui me curando e ouvindo minha canções: “Cara, isso aqui é vermelho”. É minha cor favorita, gosto porque é intensa, cor da verdade. E aí eu lembrei que o urucum tem várias propriedades e uma delas é a folha, que é cicatrizante, sem falar que é antioxidante, elimina fungos e muitas outras coisas. Finalizei a ideia do nome e falei “Preciso tomar um sol, tô há muito tempo nesse estúdio. Vou até passar um urucum pra ficar com a cor viva”. Esse nome foi um dos melhores dos últimos álbuns que já lancei, não sei se pelo momento sensível e mais humano que estou vivendo, mas é muito especial pra mim.

O que a música significa para você?
Liberdade. Desde os meus 6 anos, falava “é isso o que eu gosto muito” e nem sabia explicar o que aquilo fazia dentro do meu coração. A música é onde eu consegui deixar as minhas ideias fluírem de uma maneira gostosa em cima da batida. Antes, escrevia muito poemas e por isso eu fui parar no rap – ritmo e poesia –, que é por onde a gente fala aquilo que não querem que a gente diga. Desde pequena, aprendi o que é ser mulher preta, falava “vai ser na música que vou descarregar o que quero falar, e, com certeza, alguém vai se identificar e eu não estarei sozinha”.

E o rap, o que significa para você?
É um estado de força. Quando conheci (o rap), na primeira festa que fui, me lembro de ter sentido meu corpo inteiro arrepiar, de me sentir forte. Alguma coisa me fez sentir potente. Depois que vi que era difícil as mulheres serem levadas a sério no rap, me senti desafiada e gostei disso. É uma zona de perigo – como eu faço para transitar aqui e provar que não é isso que eles estão falando? Então, sempre fui muito atrevida. Fui pro rap colorida, alegre, e essa atitude causou espanto no começo. Depois, as pessoas entenderam que esse era o rap brasileiro de uma mulher preta. As pessoas passaram a entender que a gente não tem que esperar de uma mulher preta que ela cante igual a fulano da gringa. Meu rap ganhou destaque por ser cantado por uma mulher preta brasileira, e isso me dá muito orgulho. O rap que me trouxe isso, um estado de força, força preta, mesmo.

“Esse processo de criar música é também botar pra fora. Eu não tinha pretensão de fazer uma música que o público espera.”

Como foi esse último ano para você? Você tem assistido ao BBB?
Olha, quando saí do reality, percebi que o caminho mais correto e que ia me trazer mais clareza era o da verdade, precisava entender tudo o que tinha acontecido. Sou muito intensa e corajosa. Então, fui com coragem sofrer a minha dor, quis logo resolver porque não tive a intenção de causar esse caos. Minha atitude de imediato foi de reconhecer e arrumar. Entendi que pra isso, para então ressurgir como uma fênix, precisaria queimar real. E para isso a gente precisa lidar com a verdade. Precisava também ser humilde para reconhecer o que tinha acontecido. Assim como eu exagerei nas minhas atitudes, pessoas aqui fora também exageram no cancelamento. Percebi que quem mais sofreu com esse cancelamento, com essa cultura, com essa moda, fui eu, pelo impacto que foi gerado com meu nome e com os memes. O cancelamento foi real.

Você já foi descancelada?
As pessoas não me consideram mais cancelada nas redes sociais, e nunca fui atacada nas ruas. Acredito que, assim como eu me arrependi das minhas atitudes, algumas pessoas também se arrependeram do apedrejamento excessivo. Vejo que as pessoas têm até medo de entrar no reality hoje porque se focam mais na repercussão negativa que o programa trouxe do que na positiva. Prefiro ver o lado bom, teve vários participantes que se deram bem e estão fazendo um trabalho maravilhoso. Até pra mim, que saí com rejeição (recorde), trouxe coisa boa. Mas continuo sofrendo pequenas represálias pelo mercado. Existem ainda marcas com medo de se relacionar comigo, existem contratantes achando que não tenho público, embora já esteja provado que tenho uma carreira bem bonita aqui fora (risos), que tenho um público que consome, e as marcas gostam de consumidores, né? Queria só deixar uma mensagem de carinho pra dizer que tá tudo bem. Eu entendo vocês, mas vida que segue, bola pra frente, bora dar as mãos e seguir superando e evoluindo. Tenho muita coisa pra contribuir e eu agradeço as marcas que estão comigo.

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