As janelas abertas pela Covid

Na intimidade da casa, entre o maravilhamento com cenas banais do cotidiano e a reavaliação das relações mais profundas, tentamos encontrar um sentido para fazer valer o sofrimento desses tempos.

– Que cara a Covid tem, vovó?
– Hummm… Cara de janela, meu amor.

Assim começa o diálogo imaginário com meu netinhe – se menino ou menina, saberemos na hora H, que é esperada para esse pandêmico mês de maio. Aliás, sobre datas, é capaz que no futuro vamos falar em a.C. (antes da Covid) e d.C. (depois da Covid), tamanho o impacto dessa revolução planetária provocada pela pandemia nas mais diferentes dimensões da nossa vida, em especial, da nossa intimidade.

E antes que alguém faça cara de paisagem ao ler sobre essa conversa de janela, garanto que ela é mais pertinente do que possa parecer. Não só porque a mensagem é de avó para neto, portanto, carregada de sentido, mas porque, em se tratando de coronavírus, nada é simplista, com lógica do tipo reducionista, binária, de certo ou errado, oito ou 80, de pensamentos polarizados sobre as pessoas e o mundo.

O fenômeno Covid-19 pertence ao campo da complexidade, das incertezas, do inesperado, das ambiguidades e da aceitação das contradições. Não por acaso, muito similar à vida. E a janela em questão representa uma grande oportunidade que se abre para encontrarmos um sentido para fazer valer o sofrimento desses tempos.

A origem da palavra janela por si já diz muito sobre o nosso assunto. Vem de Janus, o deus romano das mudanças, das passagens, das transições de um estado para o outro. Por isso ele é representado com duas faces, uma virada para a frente e outra para trás, contemplando o dentro e o fora, os inícios e os fins. Ele também representa o tempo por ser capaz de ver o passado com uma face e o futuro com a outra. Assim, Janus também cuida do ano. Tanto é que os romanos batizaram o primeiro mês do calendário em sua homenagem: Ianuarius, em latim, de onde deriva o nosso janeiro. E, agora, pasme! Parece armação da turma do Panteão: foi no mês de Janus que tudo começou!

Em 1 de janeiro de 2020, o marco zero da pandemia, o mercado chinês de Wuhan, foi fechado. Em 9 de janeiro, houve a primeira morte por Covid – um homem de 62 anos que frequentava o dito-cujo mercado, onde eram vendidos animais silvestres vivos. No 24 de janeiro, foi confirmado o primeiro caso do novo coronavírus na Europa, mais especificamente na França. E a partir de então começou a expansão global do vírus, que aterroriza o planeta até hoje.

Quanto às janelas, a mais óbvia das funções ligadas à Covid, porém não menos importante, é arejar! Bora abrir tudo para evitar a contaminação no ambiente fechado. Outra situação que nos trouxe muita alegria, especialmente na estreia da quarentena, foi o protagonismo das janelas, junto com as varandas, em manifestações comoventes pelo mundo afora – concertos, espetáculos de dança, teatro, corpos ao sol em busca de vitamina D; homenagens aos guerreiros da saúde e panelaços de destruir as tramontinas e lavar a alma. Tudo muito alentador. Porém o fenômeno mais marcante e transformador acontece das janelas para dentro, naquele que é o nosso maior espaço de intimidade: a casa.

Ela sempre fala de nós. É um canal de conexão com o nosso mundo interior. Se já não moramos na mesma casa da infância, ela mora em nós, porque ela nos constitui e sempre vai nos acompanhar para onde a Granero levar nossos pertences. “São imperecíveis dentro de nós”, escreve o filósofo e poeta francês Gaston Bachelard em seu belíssimo A poética do espaço.

Na vida acelerada, automatizada e desequilibrada do mundo pré-pandêmico, facilmente prescindimos dessa dimensão criativa e profunda do devaneio, do meditar sobre a casa e seus objetos.

Agora, no confinamento, nunca ficamos tão isolados fisicamente, mas talvez nunca tão próximos da nossa interioridade. Isso pode explicar muito da explosão nas redes sociais de imagens do cotidiano doméstico absolutamente insignificantes, com significado inalcançável para os outros, no entanto, carregadas de sentido, de maravilhamento para quem posta.

É o caso da foto de meia dúzia de fatias de pimentão em processo de fritura numa frigideira antiaderente. Você pode fritar os miolos para entender a razão do orgulho daquela pessoa e duvido que consiga. A resposta é de foro íntimo. O mesmo vale para os efeitos de luz e sombra em pisos, paredes, móvel, teto ou a foto de um vaso de flores aparentemente banal. E vai também entender o carnaval de pães nas redes, que talvez, porque o seu preparo exija paciência de Jó, tão bem combinam com esse momento já apelidado de “pãodemia”. Idem para as fotos de pets – como o universo, elas são infinitas. Na categoria estranheza, incluo também uma imagem, para não dizer “viagem”, que postei. Ao levar uma torrada quentinha à boca no café da manhã, apareceu no prato um desenho formado por gotículas de água que me encantou terrivelmente. Legenda um pouco mais ridícula: “Impressão de uma torrada quente sobre prato de louça”.

Sobre esses curtos devaneios provocados pelos detalhes das coisas, Bachelard lembra de conselhos famosos do gênio Leonardo da Vinci para os pintores quando faltava inspiração diante da natureza: “Contemplem com olhos sonhadores as fissuras de uma velha parede. Não haverá um plano de universo nas linhas que o templo desenha na velha muralha? Quem já não viu, em algumas linhas que aparecem num teto, o mapa do novo continente?”

E alguém pode imaginar uma força inspiradora irromper de uma pilha de louça suja? Pois é possível. A prestigiada psicanalista suíça Verena Kasta, que até o ano passado presidia o Instituto CG Jung, fundado pelo próprio Jung, conta logo na primeira linha do seu livro Sísifo o momento em que teve o insight para a obra: “Certo dia, quando eu estava prestes a lavar uma montanha de louça, sabendo que em breve outra montanha estaria ali novamente, tomei consciência…” No livro, Verena relaciona o mito de Sísifo, que representa a eterna repetição e também esforço, com os processos psíquicos do homem contemporâneo. Discorre sobre como o repetitivo está por demais ligado a mudanças. Vale a leitura.

E mais mudanças: a vida louca na rua fazia a gente querer voltar logo para casa e se esquecer de tudo. Agora, ela te faz lembrar de tudo, em especial, do estado das nossas relações mais íntimas. Na clausura, quanta mulher não descobriu que não amava mais o marido? E vice-versa. Os números mostram uma pandemia de divórcios no Brasil e em outros países. O contrário também está valendo, com o vínculo fortalecido no isolamento. Grandes janelas de oportunidades se abriram para repensar a qualidade das nossas relações mais preciosas.

A casa foi para a rua, exposta nas redes sociais e plataformas de encontros online – e, nesse caso, quem tem estante de livros (eleita a decoração de fundo preferida) se posta na frente –, mas o movimento contrário também aconteceu, graças à intermediação de um Janus, digamos, versão digital.

Pelas janelas online, do celular e do computador, o mundo da rua invadiu a casa; a vida pública migrou para o privado. O que é possível levar para a casa, os confinados estão topando: aula de yoga, desenho, tricô, literatura, filosofia, a escola das crianças… Além de aniversário, Natal, velório, beijos e abraços.

A questão que, para todo mundo, não quer calar: como vai ser depois da pandemia? O futuro é imprevisível, claro, mas já está em gestação. Muito do que estamos experimentando fará parte do futuro, diz o francês Edgard Morin, um dos pensadores contemporâneos mais importantes. A alienação da vida cotidiana, o impulso pelo consumismo desenfreado e inconsciente dos seus impactos no meio ambiente e o egoísmo e a cegueira que impedem a tão óbvia realidade de que somos um todo e que, de solidariedade, precisamos todos. Esse kit veio à tona junto com o vírus. No íntimo, cada um deve sair desse barco sabendo qual futuro deseja construir. Fico na torcida para que, como diz Morin, o confinamento físico favoreça o nosso desconfinamento mental.

Bell Kranz é jornalista, especializada em comportamento e bem-estar. É autora de 21 Nossas Senhoras que Inspiram o Brasil (editora Planeta).