A roupa é uma das materialidades mais íntimas da nossa vida. Passamos boa parte da nossa existência cobertos por elas. É nesse ato que a moda se constitui como linguagem e comunicação. Vestir é um verbo que vai além do seu significado no dicionário. Quando escolhemos com o que vamos cobrir nossos corpos, também decidimos como e o que vamos falar sem precisar dizer nada. Esse exercício, contudo, é um tanto mais complexo do que parece. Envolve várias camadas e algumas perguntas. Uma delas é: para quem nos vestimos?
Para responder essa questão, vale voltar algumas casas e atentar para como formamos nossa própria imagem. Paulo Beer, psicanalista e doutor em Psicologia Social, explica que, na abordagem psicanalítica, a imagem é algo necessário para a constituição do sujeito. Só depois de algum investimento nela é possível investir no outro. “Esse investimento pode ser um modo de amor-próprio e fortalecimento do eu”, diz ele.
”Freud fala que esse amor-próprio é uma internalização de um ideal”, continua Paulo. ”Existe uma demanda social de como devemos nos apresentar e cada um resolve de uma maneira singular. Tem pessoas que lidam bem com isso, que têm prazer em se arrumar. Já outras têm uma relação mais dolorosa, acompanhada de culpa e agressividade.” Daí a complexidade e conflito nesse quebra-cabeça entre autoimagem e aquela em relação aos outros.
Segundo o psicanalista, a moda é usada como expressão quando é apropriada por alguém que tenha essa compreensão mais elaborada. ”Esse investimento em nós mesmos comporta uma dimensão de criatividade e invenção, a partir do qual podemos criar, inventar e ter opções. A moda se baseia nessa possibilidade.”
Para Paulo, a pergunta sobre para quem nos vestimos não tem apenas uma resposta, mas três – e conjuntas: nos vestimos para a gente, para os outros e para os ideais. A primeira, que diz respeito a nós mesmos, tem bastante a ver com o prazer que podemos ter em solitude. ”Se vestir não é só colocar uma roupa, é algo além. Muitas vezes isso é uma dimensão de cuidado e possibilidade de criação”, diz Paulo.
É uma ideia que faz especial sentido em tempos de isolamento social. Há mais de um ano, o ritual de se vestir para muitas pessoas virou de ponta-cabeça. Quando temos apenas um único espectador – o eu –, como fica essa relação?
”Faz mais de um ano que não uso calça jeans”
Julli Oliveira é criadora de conteúdo digital e não usa calças jeans há mais de um ano. Sutiã, muito menos. Ela diz que se sente mais livre e confortável sem eles dentro de casa. Não que, quando compromissos externos voltarem, ela não retome, mas por enquanto está muito bem assim, obrigada. O momento serviu para repensar o motivo de usar aquelas peças. O que não quer dizer que ela tenha desistido de se arrumar, pelo contrário. Para a baiana, natural de Salvador, se vestir é uma brecha para encontrar a sua serenidade na tormenta.
A distinção entre roupa de sair e roupa de ficar em casa era comum em nosso guarda-roupa. Mas e agora que muitos seguem realizando dentro do lar a maioria das atividades antes exercidas aos olhos do mundo? Parece que as roupas de ficar em casa entraram em profunda simbiose com as roupas de sair. E, se você é brasileiro, sabe-se Deus até quando isso vai durar.
Julli Oliveira posa para fotos em sua casa.Foto: Rafaela Chagas Araújo Costa
A busca por calças e agasalhos de moletom cresceu exponencialmente na pandemia. Um estudo do Mercado Ads, que integra o Mercado Livre, elencou os dois itens como a terceira maior fonte de compradores de moda no comércio online. Nessa onda comfy, embarcaram várias grifes até então mais preocupadas com looks de festas ou para eventos sociais.
É o caso da PatBo, segunda marca da estilista mineira Patricia Bonaldi, que lançou, em dezembro de 2020, uma linha de pijamas unissex. Conhecida por uma moda sofisticada, de linhas precisas e viés minimalista, a Modem, de André Boffano, também investiu em peças e acessórios mais confortáveis, como moletons e pantufas. Porém, meses depois, a ideia do estilista mudou: “Não penso em criar novos produtos fora do meu público-alvo, mas melhorar o conforto e mobilidade das peças que já desenvolvo”.
Para quem trabalha com o segmento festa, o cenário não tem sido fácil. Renata Buzzo, estilista da marca que leva seu nome, relata que não conseguiu vender quase nenhuma peça na atual situação. Uma saída foi produzir a coleção Interlúdio, composta de peças únicas, que ela chamou de ”pijamas de festa”: um mix do casual com o formal. Seu objetivo futuro, para quando voltarmos aos aglomeros seguros, é desenvolver uma coleção de vestidos de noiva – algo que já fez com bastante sucesso em sua carreira.
Da esq. para a dir.: coleção Interlúdio, de Renata Buzzo; Inverno 21 Modem; coleção Casa Rosa, de Rodrigo Evangelista.Gianfranco Briceño; Cássia Tabatini; Giovanna Gebrim.
Com a pandemia, o estilista Rodrigo Evangelista também relata dificuldades em seguir criando, já que tudo mudou e vivemos em meio ao luto. Suas roupas, no caso, são o oposto disso. No ano que passou, ele seguiu produzindo algumas peças sob medida, mas, para 2021, seu objetivo é criar uma coleção mais comercial.
Até a Schutz, conhecida por produzir sapatos bem alinhados com as tendências mais quentes do momento, deixou os modelos mais ousados de lado e lançou, recentemente, a segunda coleção Love In, de chinelos, pantufas e rasteiras.
Mesmo com as buscas por salto alto crescendo em países como Estados Unidos, o tênis continua no topo da lista de desejo. O calçado foi apontado três vezes na lista dos dez produtos mais populares de 2020, segundo a plataforma de buscas de moda Lyst. Nas passarelas, roupas e acessórios acolchoados foram as principais apostas de marcas como Miu Miu e Chanel, seja em versão esportiva, seja nas mais luxuosas.
Inverno 2021 da Miu Miu.Fotos: Cortesia Miu Miu.
Durante a pandemia, nossa casa virou nosso porto seguro e, ao mesmo tempo, nossa prisão. Acontece que nossos lares têm a característica do descanso e do repouso. Talvez, por isso, seja neles que nos desprendemos de algumas normas sociais e nos permitimos vestir de maneira mais livre, confortável e associada ao autocuidado.
”Tenho questionado muito a ideia de que quando você está em casa torna-se outra pessoa”, diz a consultora de estratégia em imagem e presença online Fernanda Resende. “Por que guardamos a pior roupa para ficar em casa ou dormir?” Para ela, é preciso pensar nesse tipo de peça de um jeito que atenda ”nossas importâncias, projetando conceitos de conforto e adequação personalizados”. É algo que já começa a surtir efeito, após mais de 365 dias de convívio social restrito. Aos poucos, roupas casuais passam a ser vistas como itens cheios de potencial criativo, para além da faxina e soneca pós-almoço.
Fernanda nasceu no Espírito Santo, mas reside em São Paulo desde que começou a trabalhar nesse mercado da consultoria, há 20 anos. Nas suas primeiras aulas sobre o tema, ouvia que a busca era se vestir pensando em como queremos ser vistos. Não contente com a pergunta, elencou outra: como queremos nos sentir quando nos vestimos? Para ela, faz muito mais sentido se basear nas próprias expectativas e não nas do outro. Afinal, por mais que se saiba construir uma informação estética e visual, a leitura alheia é sempre subjetiva. ”Como vamos manipular a impressão que o outro tem de você só porque você estudou elementos visuais?”, questiona ela. ”O que é criativo e sexy para mim pode não ser para você.”
Fernanda concorda com Paulo sobre a dimensão do afeto e cuidado que o ato de se vestir pode ter. A consultora reconhece que as convenções sociais (sejam elas de gênero, raça, classe social) interferem nas nossas escolhas, mas não deveriam. ”Se a gente é condicionada a se vestir para as demandas sociais e não para nós mesmas, chega a ser quase uma violência sutil a qual nos submetemos para caber no mundo”, comenta.
Sair da rotina de escolher qual roupa usar para sair ou para ficar pode ser um alívio para muita gente que detestava a função. O desgosto, no caso, pode vir pelo peso das demandas sociais ou certa repulsa ao impacto da moda em nossas vidas. ”Esse alívio entra na questão da imagem enquanto algo que precisa ser adequado. No ‘antigo normal’, na vida em que a gente se mostra o tempo todo, essas demandas de adequação podem ser custosas e sofridas. Então, quando isso é suspenso, mesmo que temporariamente, dá um alívio. É como se, naquele momento, você não tivesse que responder a esses ideais”, explica Paulo.
Como os marcadores sociais interferem no ”quem” da questão?
Quando criança, Arthure Giraldo não compreendia muito bem sua própria imagem. Não se entendia como corpo masculino nem feminino. Mas, com uma rede de apoio, foi se encontrando consigo mesme. ”Hoje, nos vestimos para nós mesmos. Mas só dizer isso é vazio, pois não existe identidade sem validação. Eu me visto para mim ao passo que me visto para o outro”, continua. ”O ser humano precisa pertencer, a gente sempre busca amparo por aqueles que nos rodeiam.”
A ideia lembra o ubuntu, filosofia africana das línguas banto do sul da África. Segunda ela, temos uma ligação intrínseca com outras pessoas, sugerindo solidariedade e reciprocidade em comunidade. Essa pode ser uma boa perspectiva para analisar para quem nos vestimos. Só somos em comunidade, ninguém vive totalmente na unidade.
Paulista e estudante de moda na Universidade Estadual de Santa Catarina (Udesc), Arthure realizou dois editoriais com amigos durante o isolamento social. “Foi uma forma de me manter sã”, diz. Mas nem tudo é close. Ser uma pessoa não binária em um universo repleto de binarismo ainda implica limitações, e, por vezes, dores. ”As pessoas só nos vêem nos espaços de glamour, quando estamos montadas, mas aquilo é uma fuga, é a parte mais fácil. O difícil é pegar ônibus com esses looks.”
Arthure Giraldo nos editoriais que realizou durante a quarentena, em 2020.Fotos: Carlos Ali
Em um mundo de desigualdades, se vestir nem sempre é tão democrático. Para Paulo, existe uma dimensão do ideal, segundo a qual muitas pessoas se vestem buscando algum tipo de aceitação. ”Uma pessoa poder se vestir do jeito que quer está longe de ser universal e igual para todos. A imagem é algo que comporta e produz efeitos de violência. Quantos atos violentos não são atribuídos ao modo como as pessoas se vestem?”, indaga o psicanalista.
Para Julli a maneira como nos vestimos pode ser uma faca de dois gumes: ”Ao mesmo tempo que a moda serve como expressão, ela pode ser opressão”. Ela conta que, em muitos casos, tem que selecionar cautelosamente o look para ser validada em determinados ambientes.
Isso lembra um experimento realizado pelo do ilustrador estadunidense Pedro Fequiere, em 2018. Ele decidiu passar uma semana se vestindo “bem” e outra de forma mais descontraída. “Estou curioso para ver o efeito que minhas escolhas de vestuário têm na minha vida como um jovem homem negro de Los Angeles”, escreveu ele, em matéria publicada no site BuzzFeed naquele ano. O resultado foi o esperado: as pessoas mudavam totalmente de comportamento de acordo com a escolha de vestuário do dia.
”Quando a sociedade limita o que tenho que usar, ela limita o que tenho para expressar”, diz Julli. Mesmo quando queremos romper algum padrão, podemos acabar por reproduzi-lo. A explicação para isso vem, de novo, da psicanálise: ”Sempre contribuímos para um padrão”, discorre Paulo. ”Quando você faz uma crítica, ela pode vir justamente de um desses padrões. E mesmo se ela desmonta algo, surge outro padrão e você precisará de outra crítica. A questão é o quanto a gente valoriza esse processo”, complementa.
Mas afinal, por que se arrumar agora?
Existem muitas formas de lidar com o caos interno e externo. Cada um acha sua brecha e, às vezes, se vestir pode ser um desses escapes. Do mesmo jeito que abdicar de tudo isso também é. Mas, montados para um Meet Gala no home office ou de pijama com a câmera do call desligada, isso diz algo sobre nós. A moda fala até sem ser convidada – daí sua magnitude. Ela expressa os espíritos do tempo, e os tempos não estão dos mais fáceis.
Talvez esse seja um dos remos necessários nessa travessia inundada de dor. Porque, entre tantas coisas, a moda consegue ser abstração. É o oposto da futilidade, é a própria expressão do útil: permitir sonhar. Isso não é uma tentativa de florear ou fingir que ela não tenha problemas, porque tem. Muitos. Mas, agora, é como um convite: imagine. Imaginar é uma das poucas coisas que nos restam.
Então, imagine: abraços, beijos, colocar uma roupa só pensando em quem vai tirá-la depois de um jantar com vinho ou um bloco de Carnaval aleatório, ver um amigo na fila do restaurante e correr para cumprimentar, receber flores ou uma declaração ao vivo, assistir a um show. Tudo ao vivo, vivos. Vivos porque nos apegamos naquilo que dá sentido à vida. Mas um pouco mortos também, pois cada vida que se vai e poderia ter sido evitada é uma faca que se crava no coração dos sensíveis.
”Se nesse tempo terrível em que vivemos não conseguirmos nos dar compaixão, luto e profundidade para chorar o que temos para chorar, se a gente não tem como cuidar de si mesmo, não temos como dar suporte para o outro, para nossa comunidade e para o mundo”, compartilha Fernanda, em referência a um vídeo que assistiu de Ailton Krenak. ”Ele nos chama para esse ativismo que é o cuidado de si.”
Por fim, com tantas nuances, fica difícil responder em uma só sentença para quem nos vestimos. É para muita gente, é para nós mesmos, é para o mundo. Fato é que todas estas dimensões exigem uma intimidade individual, para saber sua própria definição de cuidado. E, nesses tempos, ele é item de sobrevivência. Mas não pense que não será conflituoso: tudo é. Fugir do conflito é fugir de si mesmo. Nunca damos conta de tudo que somos, inclusive na hora do vestir. Talvez Freud explique mesmo: ”A gente trabalha, na psicanálise, a ideia de que nos alienamos de nossa própria imagem. Formamos uma imagem do eu que não dá conta de tudo que somos, e começamos a acreditar que somos só aquilo, quando, na verdade, somos muito mais”, finaliza Paulo.