Ponto de interrogação

O que é a intimidade na era do mostra tudo?

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Ilustração @viamagalhaes

Fiquei aqui pensando nessa história de intimidade. Clichês, dicionários, capas de revista, aquele papo todo sobre superexposição nas redes. Essas imagens enfileiradas como um papiro interminável sobre as mais variadas irrelevâncias, avalanches de um vazio estridente, pequenas lanternas guiando os afogados num mar de quase nada

Intimidade, identidade, parece que vamos associando umas coisas por aí. Eu te mostro o que você quer ver? Te digo que sou assim em casa, no quarto, na cama, por dentro. Assim como? Como você quer. Como eu quero. Como eu quero que você veja porque acho que é assim que você vai gostar de ver. De repente, gostar de mim. Mas, afinal, que diabos somos eu e você?

A gente vai crescendo pensando em identidade como segurança e como defesa. Seja você mesmo, mas só se for muito parecido com aquele modelo bem melhor que você. Brigue contra um padrão desde que você se adapte a outro. Desde que você se encaixe em se encaixar.

Se eu sou como o outro, acho que ele talvez não vá me atacar porque, bom, não seria muito lógico atacar alguém tão semelhante. Mas como eu vou saber como ele é de verdade, a verdade esse negócio misterioso. Como é o outro “na intimidade”?

Complicado. Mas dizem que ficaria menos angustiante se, sei lá, a gente desse um jeito de padronizar a intimidade. Dizem que seria melhor. Padronizar não só as perfeições mas também as imperfeições. Criar uma grande normalidade inclusiva, ultracontrolada.

E daí que tem três ou quatro, noves fora 5 mil mortos por dia à sua volta, não pire, fique de boa, relaxe, cadê o autocuidado? Pode se revoltar, mas dentro do encaixe, pode surtar e lamentar o caos, dizer que perdeu o controle e quer sumir. Inclusive pega bem, é bacana fazer isso, mas nos limites do meme, do fazer uma social, do mostrar um certo perfil. Pode mudar nas pequenas coisas, reclamar sem passar dos limites, mas não venha com radicalidades, não sinta no grau o inferno que às vezes é estar vivo nesse mundo lidando em sociedade. Seja funcional.

Tentamos, mas o tédio aumenta, a angústia parece que cresce. E vamos esmagando tudo isso, sufocando tudo isso até que essa voz fique calada. E muitas vezes nesse processo perdemos qualquer vontade, ou desabamos ou seguimos na bateria mínima, cumprindo objetivos quase sem prazer em um mundo que parece progressivamente empobrecido nos mais variados sentidos.

Mas aí alguma coisa dentro da gente diz que a intimidade pode ter outra natureza. Que é algo sempre desencaixado, que não tem no prêt-à-porter. Alguma coisa que tem sim a ver com o outro, mas de um jeito que pode ser criativo, estimulante, não estático, não cópia exaustiva. Alguma coisa que tem a ver com a gente, mas não no modo de uma identidade de base fixa, onde vamos acrescentando tijolinhos, onde só podemos fazer isso, onde somos condenados a isso.

A intimidade pode ser um espaço amplo de experimentação. Se der, se sentir uma faísca, tente aí. Por que não?