Djonga como veio ao mundo

No quinto álbum de sua carreira, o rapper mineiro dá um mergulho dentro de si, abraça suas contradições, expõe suas fragilidades e apresenta um álbum sensível e potente.

“O disco começa no ‘nós’ e termina no ‘eu’. Tenho feito tudo pensando em ‘nós’ e muitas vezes me esqueci do ‘eu'”, diz Gustavo Pereira Marques, o Djonga, sobre o seu mais novo trabalho, Nu. O título não foi escolhido gratuitamente. Nas oito faixas do álbum, o quinto da carreira do mineiro, Djonga não sente medo de dizer o que pensa nem de expor suas vulnerabilidades e fragilidades.

Resultado de um encontro íntimo do rapper com ele mesmo, Nu traz reflexões sobre as angústias do agora, relacionadas ao contexto desolador da pandemia de Covid-19. Insegurança, instabilidade e ansiedade permeiam o drama vivenciado pela classe artística com a ausência de shows. Também estão presentes temas como autoestima, família, amor, afeto, contradições, luta antirrascista, ego e o cancelamento – a capa do álbum traz a cabeça de Djonga em uma bandeja, com celular e dedos apontados para ela.

Mantendo a tradição, o lançamento foi no dia 13 de março, conhecido como #Djongaday por quem acompanha a caminhada do cantor – é nessa data que ele sempre lança seus álbuns. Disponibilizado nas plataformas de streaming e no canal de YouTube do artista, já nos primeiros dias contava com milhares de visualizações em todas as faixas.

Nascido em Belo Horizonte, Djonga cursou história até o sétimo período na Universidade Federal de Ouro Preto, mas deixou a carreira acadêmica para se dedicar à música. Aos 26 anos, o rapper, escritor e compositor carrega diversos prêmios e indicações na música nacional e internacional. Consagrado em eventos como Multishow e APCA, ele foi o primeiro rapper brasileiro indicado à categoria de melhor artista internacional no BET (Black Entertainment Television) Hip Hop Awards – premiação estadunidense dedicada a pessoas negras no entretenimento.

Nesse álbum, mais introspectivo, sem medo de pautar as relações humanas e se posicionar, Djonga mais uma vez crava seu nome como um dos rappers mais importantes da atualidade. Em tempo: “nu”, em bom mineirês, também é uma versão reduzida da interjeição “Nossa Senhora!”, usada para expressar admiração e espanto.

Em um bate-papo sincero, Djonga fala sobre o disco novo, sentimentos, sua relação com as redes sociais e traz boas reflexões – a principal delas, talvez, seja sobre a necessidade de estar bem com você mesmo para poder estar bem no coletivo. Confira:

E aí, Djonga! Como você e sua família estão?

Todo mundo bem, graças a Deus! A gente está num processo. Acho que são dois momentos: no primeiro momento da pandemia , eu estava lançando Histórias da minha área, fiquei sem show, sem tudo. E tem aquele momento que dá uma afrouxada: as mortes começaram a diminuir e eu acho que todo mundo se permitiu encontrar um parente, sabe? Fazer umas coisas. Ano passado, a gente fez alguns trampos: videoclipe, pá! Inclusive, o polêmico show (em dezembro, Djonga foi bastante criticado nas redes sociais por lotar um show no Rio de Janeiro), eu também fiz. Mas foi a única vez que saí pra fazer uma parada dessa. Fora isso, eu gravei alguns clipes, fiz alguns trampos e agora a gente está voltando praticamente pra estaca zero. Não só a gente, na música, mas o país inteiro. A parada se agravou demais, né? Muito por causa do desgoverno que a gente tem e um pouco por responsabilidade de cada um de nós também. Muitas vezes, as pessoas têm que trampar pra sobreviver, não tem jeito.

Como se sente em relação a isso?

Eu acho que é mais um sentimento de impotência do que de tristeza. Você lançou uma música, está todo mundo curtindo sua música e você não pode mostrar ela da forma que você já está habituado, saca? É um sentimento muito de impotência.

Em entrevista para a edição impressa da ELLE, em março, Mano Brown comentou que se sente o “paizão da galera”, falando da nova geração. Você concorda?

Ah, cara, é isso aí mesmo! Ele é paizão. Eu ligo pra ele, a gente tem umas reuniões pra conversar, nós dois, pelo menos de 15 em 15 dias, sabe? Eu falo pra ele o que eu estou sentindo, ele fala bastante as coisas que está sentindo também. Me ensina muito, porque muitas das coisas que eu estou vivendo hoje, ele já viveu. Só que o grande lance é que a minha época é diferente, né? Então, quando eu falo pra ele: “Ó, a galera tá pegando no meu pé por isso”. Ele diz: “Mas, então, pegaram no meu pé também”. Aí, eu falo: “Pois é, mas na sua época não tinha internet”. Aí, a gente começa a refletir juntos. (risos) É uma relação muito proveitosa. Eu acho que trago pra ele coisas que ele já viveu de uma forma atualizada, de uma forma nova. É uma relação que eu acho boa para os dois, mas, pra mim, é sem palavras! É minha inspiração mesmo! O maior rapper que existe e existiu na face da Terra – não só no Brasil, não. Pô, é foda! É um cara que não tem aquele sentimento de achar ruim outras pessoas chegando, muito pelo contrário.

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Fotos: Jef Delgado

Como foi produzir um álbum tão íntimo e lidar com suas próprias contradições, com seus próprios sentimentos?

Eu dou graças a Deus por ser uma pessoa contraditória. É nessa dialética que eu aprendo, que eu viro uma pessoa melhor. Eu tenho preguiça daquelas pessoas que se dizem ou tentam parecer coerentes o tempo todo. Eu não sou esse cara. Eu sou o cara que incomoda o outro, que incomoda a si mesmo e que lida com isso da melhor maneira possível. Se eu tentasse pôr essa máscara de coerência, de certo o tempo todo, eu nunca mudaria diversas coisas. Esse lugar de incoerência é um lugar em que todo mundo está, mas só algumas pessoas têm coragem de assumir. Eu assumo esse discurso desde o começo, da contradição, tá ligado? Por explorar tudo isso, esse é o disco que eu mais gosto. Porque é o disco do Gustavo pro Djonga. É uma declaração do Gustavo pro Djonga e, ao mesmo tempo, do Djonga pra todo mundo! Do Djonga enquanto artista, mas do Djonga enquanto pessoa também, falando assim: “Pô, calma aí, né, velho? Não espera tudo de mim”.
Sempre que eu tomo uma decisão é mais difícil. Às vezes, pode gerar um efeito que não é tão interessante. E o disco começa no ‘nós’ e termina no ‘eu’, justamente por isso. Tenho feito tudo pensando em “nós”, muitas vezes me esqueci muito do “eu”, do que eu estava pensando. Toda hora ter que dar as posições que todo mundo espera de você, sacou? Eu não sou esse cara. E, por não querer ser esse cara, eu vou ser a pessoa que vai falar algumas coisas que vão incomodar às vezes. E eu quero incomodar até nós mesmos, sabe?

“Eu dou graças a Deus por ser uma pessoa contraditória. É nessa dialética que eu aprendo, que eu viro uma pessoa melhor. Eu tenho preguiça daquelas pessoas que se dizem ou tentam parecer coerentes o tempo todo.”

Nós também temos responsabilidade por diversas coisas erradas que estão acontecendo no mundo. Diante dessa responsa, a gente tem que refletir também. Não é porque todo mundo está falando na internet que está certo, tá ligado? Eu quero ser o cara que traz essas reflexões. Não sobre um assunto específico, mas de um modo geral. Na minha música, na minha arte, eu tenho tentado trazer essas reflexões pra mim, e é isso que tem me salvado.
Isso tem me colocado com a cabeça muito no lugar. Menos certezas, sabe? Está todo mundo cheio de certezas e nós estamos entrando num problema muito grave, que é de nos matar entre nós. Para fazer valer as nossas certezas, enquanto os caras lá em cima estão ganhando dinheiro, só ficando mais poderosos, só ficando mais fortes e continuando a controlar tudo. Esse disco é sobre isso. De uma maneira meio louca, meio esquizofrênica, meio confusa, mas é isso.

No teaser de lançamento, uma das atrizes fala que você será condenado à degola em plena praça pública, como vem acontecendo há séculos. Isso diz muito sobre o racismo no Brasil, que cancela pessoas negras sistematicamente. Como você sente o peso do cancelamento?

Incomoda mais na medida em que afeta a minha família, as pessoas que eu amo. Eu sou cancelado desde sempre. Cresci achando que eu era feio, que não merecia estar nos lugares. Foi assim que eu cresci. Eu não vou abaixar a cabeça e sair simplesmente pedindo desculpas, igual todo mundo faz, e amanhã está fazendo a mesma coisa de novo, tá ligado? Acho que o interessante disso tudo é que me faz refletir até que ponto eu quero estar compactuando com certas estruturas e certos espaços. E acho que desse circo eu não tô mais a fim de fazer parte. Por isso, estou mais distante das redes sociais, principalmente do Twitter. Acho que é um lugar muito raso pra fazer o que todo mundo tenta ou se propõe a fazer ali. O cara quer em 200 letras definir o rumo da história, sacou? Eu não posso aceitar isso nem comigo nem com ninguém. São construções muito caras para nós, muito antigas. Não é só chegar e falar um texto que a gente sabe que todo mundo vai dar like, vai curtir porque é o assunto do momento.

“Estou mais distante das redes sociais, principalmente do Twitter. O cara quer em 200 letras definir o rumo da história, sacou? Eu não posso aceitar isso nem comigo nem com ninguém.”

Mataram vários manos nossos, pretos, rolaram as manifestações, os assuntos eram trend todo dia no Twitter, mas lá não foi ninguém, cara. Eu fui nas manifestações e, assim, foi muito pouco perto do tanto de gente que tuíta. Essa galera parece que só existe ali na internet, naquele mundinho. Tem uma galera que passa dos limites direto, que acaba machucando as pessoas em lugares que não têm nada a ver, machucando a família da pessoa. A galera pede posicionamento dos familiares da pessoa contra a pessoa, que loucura é essa? Eu não posso fazer parte desse bagulho. Eu tenho dois filhos, Jorge e Iolanda. Podem fazer o que for, eu vou xingar eles aqui dentro de casa, mas não vou publicamente sambar em cima da derrota dos meus filhos, nunca. Nós todos erramos, mas nasce um em cada esquina, pra sair acabando com todo mundo a cada erro? Nasce um Mano Brown por esquina? Um Djonga por esquina? Uma Karol Conká por esquina? Um Projota por esquina? Nasce? Se nasce, os caras matam logo na hora, tá ligado? A gente sempre tem essas discussões de uma maneira mais interna, mas a parada é ficar ali, alimentando algo que só fortalece uma pessoa: Mark Zuckerberg, que está ficando cada vez mais milionário. É isso.

Você costuma assumir a direção dos videoclipes. Como é essa experiência?

Eu faço isso desde os meus primeiros clipes. Faço questão de que a imagem seja a mais perfeita possível, pra galera entender o que eu quero dizer. Eu chego e falo: “Cipozão (o diretor de fotografia e videomaker Túlio Cipó), quero um cavalo, eu tomando tiro”. Ele pensa o resto junto comigo: “Não, pera aí, o cavalo não dá pra colocar, mas dá pra gente colocar um elefante”. Então, a gente vai junto, montando a parada, alinhando. São pessoas em quem eu acredito e que acreditam em mim. Eu amo arte de um modo geral e é legal demais poder participar dessa parte do áudio visual. Dentro de casa, tenho a Malu (Malu Tamietti, casada com Djonga), que estuda cinema. Ela me ajuda muito em tudo! Na parte estética e também por trás, ali nos bastidores, ela arregaça as mangas e faz a parada acontecer. Talvez eu tenha ideias muito boas, mas quando junta ela e a Nicole (Nicole Balestro, empresária da CEIA, produtora que cuida dos trabalhos de Djonga) o bagulho fica mais doido ainda. Tô cercado de mulheres muito foda!

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Fotos: Jef Delgado

Você é um cara jovem, apesar da longa caminhada. Na música “Ó quem chega”, você fala que tem 26 anos com mente de 62. É no sentido de ter que amadurecer muito rápido pelas cobranças, pelo cansaço?

Sinto demais, mas eu estou tentando ser mais leve. Eu não quero ser só esse cara de 62, eu quero ser o cara de 26 com a mente de 15, sabe? Falando merda, brincando, apanhando de novo pra aprender. É foda ser o tempo todo esse cara, que é pai do Jorge, da Iolanda, dono da Quadrilha, dono do estúdio Sensação. O cara que tem que administrar a equipe ali na rua, o cara que também tem que fazer a produção do clipe. Tem hora que eu quero esquecer essas coisas também e foda-se, sabe? Estou tentando ser mais leve, fazendo trilha de moto, andando de bike. Coisas que eu gosto e deixei de fazer porque minha vida virou trampo. Essa coisa de ser figura pública é difícil por causa disto: você vira escravo do trampo. É difícil você ficar o dia inteiro trabalhando dentro de casa. Minha energia é muito pra fora, eu sou zero pra dentro. Quando estou em casa o dia inteiro, parece que estou controlando um trem. Chega a noite, eu não estou nem com sono. Então, o esporte tem me ajudado muito: quando eu chego cansado, todo quebrado, eu consigo dormir melhor. Está sendo a melhor terapia.

Na música “Xapralá”, você comenta que o segredo é se amar, “eu nem me amo tanto/ xapralá”. Como é a questão da autoestima na sua vida? Como você tem se olhado no espelho?

Agora, eu estou no melhor momento. Agora, eu me amo, sim! No momento em que eu estava escrevendo aquele disco, estava pensando muito se eu me amava mesmo. Eu estava acordando e mexendo no celular, tá ligado? Aí, eu falei: “Que é isso?” Me afastei das redes por isso. A galera é muito loka, fala que foi estratégia. Não, se tornou estratégia com o tempo, mas eu me afastei porque eu queria mesmo. Nem foi por causa do cancelamento – até porque eu odeio esse termo. Eu sumi porque não estava me amando. Estava pensando o tempo todo em tudo, menos no meu prazer. Como eu quero mandar a galera se amar, ter autoestima, sendo que a minha depende de um feat (parceria)? Não pode ser. Neste momento, eu estou focado nas coisas que têm mais a ver comigo. Eu me sinto mais à vontade de falar isso pra galera!

“Eu sumi porque não estava me amando. Estava pensando o tempo todo em tudo, menos no meu prazer. Como eu quero mandar a galera se amar, ter autoestima, sendo que a minha depende de um feat?”

Como foi ser indicado ao prêmio internacional BET Awards ano passado (Djonga foi indicado na categoria “melhor artista internacional”, vencida pelo artista britânico Stormzy)?

A gente estava concorrendo com uma galera que fala inglês, né? A barreira da língua atrapalha, mas eu não me conformo com o segundo lugar de nada, não, entendeu? Um dia eu vou lá trazer esse título. Mas eu me sinto honrado por ter participado, porque é difícil quebrar essa barreira com os caras que inventaram o rap, né? Os caras não costumam nem olhar pra gente. Então, é um trabalho que foi materializado em mim, mas que vem desde o Thaíde, Dj Hum, Racionais, Dina Di, Negra Li… De alguma forma, a gente representa todo mundo que passou por aqui antes e fez esse bagulho acontecer.

Você já se sentiu pressionado a ter que…

Ter que me mudar pra São Paulo ou pro Rio pras coisas darem certo? Nem fodendo! Já tô respondendo sua pergunta antecipadamente. (risadas) Eu gosto de ficar aqui, ver minhas montanhas assim, de longe, ir na minha cachoeira, andar de bicicleta, entendeu? Eu gosto disso! Acho que o Rio tem um lance mais parecido, porque tem praia, mais biodiversidade, mas mesmo assim eu não me identifico tanto assim, não. Eu sou BH mesmo, tá ligado?