A desigualdade racial no Brasil começa no pré-natal da gestante negra – apenas 27% delas recebem acompanhamento adequado durante a gravidez. No parto, essa disparidade é escancarada – a violência obstétrica atinge uma em cada quatro mulheres no país, e mais da metade delas (65,9%) são negras. E o que pré-natal e nascimento têm a ver com envelhecimento?
A qualidade e a quantidade desses atendimentos de saúde são fatores decisivos para a expectativa de vida do feto, como atestam pesquisas. Assim, quando negros iniciam a vida de forma tão desigual, é como se seus bebês já nascessem envelhecidos, com o racismo roubando deles mais e mais tempo de vida.
Os números não negam. Envelhecer no Brasil não é direito, é luxo. A expectativa de vida das pessoas negras no país não passa dos 67 anos, contra 73 das brancas, como mostra o Relatório Anual de Desigualdade Social, do Núcleo de Estudos da População, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
O estudo A cor da morte mostra que a morte branca é causada por doenças, enquanto a morte negra advém de causas externas, de complicações da gravidez e parto, transtornos mentais e causas mal definidas. Resumindo: mortes evitáveis caso a população negra tivesse acesso a saúde, moradia digna, alimentação adequada, trabalho, educação, enfim, direito à cidadania plena.
“Eu costumo dizer que temos dois Brasis: um que envelhece e outro que luta para envelhecer”, afirma Alexandre da Silva, doutor em saúde pública pela Universidade de São Paulo e professor da Faculdade de Medicina de Jundiaí (SP). O pesquisador evoca o conceito de envelhecimento ativo para se referir a condições básicas para um envelhecimento de boa qualidade, que passa por educação, trabalho e lazer, além de considerar aspectos do acesso à saúde como o (não) acolhimento em centros de saúde – o horário de funcionamento desses centros, a ciência do paciente sobre os cuidados que ele precisa ter e as condições socioeconômicas que o possibilitam ou o impedem de fazê-lo.
Solitude X solidão
Um estudo inédito de Alexandre da Silva identificou discrepâncias até na forma como a solidão impacta as negras e as brancas. Ao envelhecer, mulheres negras experimentam a solidão – uma velha conhecida de muitas, que sofrem o abandono dos pais e a solidão afetiva nos relacionamentos no decorrer da vida, entre outros. Já as brancas vivem a solitude.
Alexandre explica a diferença: “A mulher negra idosa, quando está sozinha, está sozinha mesmo, porque houve perda de seus pares ao longo da vida, perda precoce de familiares mais novos (como filhos e netos) e, normalmente, ela não conseguiu se organizar financeiramente para se aposentar. Com a mulher branca, há uma situação que a leva a viver sozinha, mas ela não está só. Se ela passa mal, ainda há uma rede de apoio para acionar”. O pesquisador também demonstra, com base no estudo Saúde, bem-estar e envelhecimento, que negros visitam menos a casa de outras pessoas e recebem menos visitas em casa do que brancos. “Não é questão de gosto. Há uma condição modulada pela sociedade para que eles não consigam fazer isso, porque precisam trabalhar muito, por exemplo.”
Outra dimensão da solidão que acomete negras idosas está relacionada à intelectualidade. As que estudam mais costumam ser as exceções no ambiente profissional.
A física Sonia Guimarães: no corpo docente do ITA há 29 anos.Foto: Arquivo pessoal
É o caso de Sonia Guimarães, que, aos 65 anos, acumula uma trajetória de pioneirismos. Professora do Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA), foi a primeira docente negra a ser contratada pela instituição, em 1993, e, na época, era a única mulher a ter uma cadeira no departamento de física do instituto. Antes disso, em 1989, também foi a primeira mulher negra a conquistar um doutorado em física no Brasil.
“Creio que, se um dia eu chegar a professora titular, serei a primeira de novo. Já são 29 anos de ITA, mas eles estão cuidando muito bem para que isso jamais aconteça. Já pensou eu ser a primeira negra de novo? Agora como professora titular? Eles não iam aguentar!”, diz brincando.
Solteira, a ausência de um companheiro não faz falta a ela. “Estar só é a glória para mim. Mais do que estar só, adoro ser independente. Adoro fazer as coisas que eu quero quando eu quero. Isso me traz felicidade. Eu me coloco em primeiro, segundo e terceiro lugar antes de pensar num relacionamento.”
Outro tipo de solidão também acomete Janete da Costa, 65 anos. Ao se aposentar como professora, com 50 anos, a empresária decidiu fazer uma nova graduação – teologia – e abrir uma empresa alimentícia, a Free Soul Food, com a filha. Hoje, ela acumula prêmios por promover e incentivar uma alimentação saudável e sustentável, mas não encontra seus pares nos círculos que frequenta. “As pessoas da minha idade têm outros compromissos e as pessoas com que convivo são muito mais jovens. Em alguns grupos, sinto que não sou ouvida nem respeitada”, diz, atribuindo o comportamento ao racismo e ao etarismo.
Janete tenta lidar com o racismo que sofre com bom humor, com estratégias que criou ao longo dos anos para que as agressões não a destruíssem. Ainda afeta, mas a maturidade a ensinou a levantar da cadeira e ir embora quando não se sente confortável.
É o que também norteia Sonia: “Meu orixá já me disse que não tenho que esquentar a cabeça com isso. Tenho que me preservar e agir de forma estratégica”. A rotina da física costuma ser agitada, equilibrando as aulas no ITA com dezenas de lives e reuniões em grupos de pesquisa e extensão de incentivo à inserção de mulheres na ciência. O seu compromisso inadiável é, no entanto, com as escolas de samba de São Paulo. Ela e a irmã desfilam em pelo menos três agremiações diferentes desde o início dos anos 2000. Na água, percorre todos os dias 1,6 mil metros nas aulas de natação (“Meu treinador acha que estamos indo para a França, sabe? Para as Olimpíadas”) e faz 50 minutos de hidroginástica. “Só vou me aposentar no dia em que eu tiver alguma atividade para fazer, ainda não sei o quê. Meu Deus, não sei o que quero ser quando crescer!”, diz.
“Quando se fala de mulheres mais velhas ressignificando a sua geração, aparecem sempre mulheres brancas. Nunca mostram mulheres negras na mesma proporção e importância. Não somos vistas como mulheres, mas como objetos de trabalho. É como se a sociedade dissesse que não temos mais serventia”, desabafa Janete.
Janete da Costa: depois da aposentadoria, ela abriu sua própria empresa.
A sensação de Janete é corroborada por Angela Davis em seu livro Mulheres, raça e classe. Vista como propriedade no sistema escravista, a mulher negra era, antes de tudo, uma trabalhadora em tempo integral para seu proprietário e, apenas ocasionalmente, esposa, mãe e dona de casa. “A julgar pela crescente ideologia da feminilidade do século 19, que enfatiza o papel das mulheres como mães protetoras, parceiras e donas de casa amáveis para seus maridos, as mulheres negras eram praticamente anomalias”, escreve a filósofa.
“Quando se fala de mulheres mais velhas ressignificando a sua geração, aparecem sempre mulheres brancas. Nunca mostram mulheres negras na mesma proporção e importância.”
Janete da Costa, empresária
A impressão que se passa ao ouvir essas mulheres negras e idosas é que nada ou muito pouco mudou em suas vidas. O corpo sente o passar do tempo, a coluna já não é mais a mesma, os joelhos idem, mas o racismo e o machismo perduram. A subjugação que sofrem ao chegar à terceira idade está amalgamada a opressões estruturais, não tendo como dissociá-las. “A sociedade continua me vendo como uma mulher negra supostamente idiota e incapaz”, comenta Sonia.
Cultura afro reverencia anciãos
A lógica ocidental que privilegia os jovens em detrimento dos mais velhos não cabe nas religiões de matriz africana. A cultura afro-brasileira tem como gênese a ancestralidade. Ser um ancião no candomblé é ser guardião da tradição, da memória de um povo. Não se aprende candomblé nos livros. Aprende-se ouvindo, falando, cozinhando.
Aos 84 anos, Mãe Meninazinha d’Oxum, ialorixá do Ilê Omolu Oxum, localizado na Baixada Fluminense, reverencia o tempo todo os que vieram antes dela: “Eles chegaram primeiro, eles têm o conhecimento do candomblé antes de mim. Ai de nós se não fossem eles!”
Para as religiões de matriz africana, a oralidade é um elemento essencial. Histórias silenciadas durante tantos anos dos livros escolares encontravam abrigo nos lábios dos mais velhos, que não deixaram a memória morrer. Daí um provérbio africano que diz que “quando um ancião morre é como se queimasse uma biblioteca”.
Mãe Meninazinha d’Oxum: “Ialorixá não é profissão, é missão”.
Foto: Alex Ferro
O sistema escravocrata não se contentava em aprisionar e coisificar corpos negros. Era preciso capturar o espírito livre, retirar deles a dignidade, o que envolvia romper a ligação de negros escravizados com suas origens, memória e ancestralidade. Por isso, em seu ilê, Mãe Meninazinha faz e ensina o que aprendeu com os que vieram antes, mostrando que os passos dados hoje vêm de longe.
Por ser de axé, a sacerdotisa sofre ainda com o racismo religioso. Levantamento da CCIR (Comissão de Combate à Intolerância Religiosa), do Rio de Janeiro, mostra que quase 180 terreiros tiveram suas atividades encerradas em 2019. Um salto de quase 100% se comparado a 2018, quando houve 92 denúncias. Esse número pode ser muito maior, já que, por medo, muitas vítimas não denunciam. Na tentativa de mapear o racismo religioso em todo o solo brasileiro, o Ilê Omolu Oxum, em parceria com a Renafro (Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde), lançou a pesquisa Respeite o meu terreiro, que recebe respostas até o dia 30 de maio.
Maria do Nascimento veio ao mundo em 1937, numa família baiana, toda de orixá. Foi iniciada na religião pela avó, na década de 1960, e desde então se dedica ao culto. Diz que não trabalhou no terreiro: “Ialorixá não é profissão, é missão”. A anciã brinca com o seu apelido, Meninazinha, para dizer que ainda tem muito a viver e que não teme o envelhecimento nem a chegada da morte.
“Tempo é orixá. É só na Angola que se cultua esse orixá, mas o tempo está presente em todas as nações (de religiões de matriz africana, como ketu e nagô) porque o tempo está aí para todos nós. O tempo tem que passar, e nós também.”
Foto: Alex Ferro