Carta da editora

A vida embrulha tudo.

Resolvi escrever à mão esse texto, bem old school. Isso aqui não é uma carta? Mas a razão é bem outra. Eu me lembrei de uma reflexão de Rudolph Steiner, filósofo e fundador da antroposofia, sobre a importância da escrita à mão, em oposição ao digitar. Ele fala que o anjo se deleita com o movimento das nossas mãos, se aproxima e nos inspira. Um músico, um pintor ou um marceneiro conhecem esses momentos de inspiração, angelicais de tão belos. O movimento no caso deve ser consciente, e não automático, como o teclar.

Para abordar de um modo mais objetivo esta edição da ELLE View, focada nas mulheres de 50 anos para cima e com a qual eu colaborei um bocadinho, gostaria de lembrar que a idade é uma questão de convenção, de arranjo para satisfazer um modelo econômico, social, que define a gente (todos, todas e todes de qualquer idade) como mercadoria. Espreme a pessoa, espreme até não poder mais. Quando ela perde a utilidade, não é mais produtiva, ela se aposenta e é descartada feito lixo. O preconceito, como o chamado etarismo, vem muito daí, da lógica binária, que pensa o mundo e as pessoas sob uma ótica mercadológica e simplista – jovem e velho, bom e ruim, certo e errado, branco e preto… Mas gente não é mercadoria.

Já um olhar mais inspirador sobre esta edição identifica um fio condutor, que perpassa toda a revista, muito fresh e animador: o conceito de liberdade.

Na moda, do alto dos seus 79 anos, Rei Kawakubo encarna plenamente esse espírito de liberdade, inovação, subversão. Rosa Negra, a coleção de inverno 2022 de sua Comme des Garçons, é radiografada aqui.

E quem diria que quatro mulheres lindas e talentosas da passarela (são as capas da ELLE) descobririam o glamour da idade? Alessandra Berriel, Marina Dias, Pathy Dejesus e Silene Zepter revelam ao editor Luigi Torre o que o tempo trouxe de bom para a vida profissional e a cabeça de cada uma. Por falar em cabeça, se no seu íntimo você sente, por uma questão política, filosófica, que precisa liberar os cabelos brancos, vai fundo. Essa edição te ajuda a caprichar na trajetória. Mas, se a empreitada não te apetece, manda ver na tinta – a liberdade tem todas as cores.

Para peles, digamos, mais cansadas, a repórter Barbara Rossi montou um guia de maquiagem sem prescrição do tipo “pode isso, não pode aquilo, esconde as rugas”. O conceito é usar a maquiagem a seu favor! E, por favor, coroas também amam. Rola match, só não rola tanta DR quanto antes. Igualmente libertador se a dupla ganhou maturidade, porque, de maduros infantis e jovens envelhecidos, o mundo está cheio.

A velhice tem um lado especialmente desumano e cruel. Atinge em cheio as mulheres negras – quando elas conseguem chegar à velhice, neste país de desigualdade racial de dimensões colossais. Excelente texto faz um retrato dessa realidade.

Por fim, o mau humor da velhice dá as caras quando vivido antes da hora na pele dos millennials, geração em conflito com o tempo. Na outra ponta, os mais velhos aproveitam o tempo que agora sobra e se jogam em negócios novos e criativos. Dicotomia que mostra que a vida é complexa. Como diz Guimarães Rosa, ela “embrulha tudo… esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem”.

Força na peruca!

Beijo,

Bell Kranz
Editora convidada

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Foto: Bibi Fragelli