Ponto de interrogação

Quem tem medo dos 50?

 

 

A única vez em que tive medo de envelhecer foi aos 20 anos. O medo de fazer 30, de não ser nunca mais jovem, porque, segundo o mundo à minha volta, o prazo de validade das mulheres “realmente bonitas e jovens” acaba aos 30. Daí para a frente, seria entregar os pontos, correr atrás do tempo e aceitar um lugar cada vez mais apertado.

Então, ao longo dos 30 eu decidi morrer para isso tudo. E foi ótimo ter morrido para esse esquema, que jamais fez sentido para mim e que jamais mostrou vocação para acolher tudo o que eu queria fazer de mim. É bom às vezes desistir, se retirar para ver que a gente na verdade não desistiu, só resolveu abandonar uma carcaça e fazer pele nova feito uma cobra.

Mudei muita coisa, encerrei muitos ciclos e, durante anos, lidei com o processo do meu luto, do luto daquela vida, daquele modo de fazer as coisas deixado para trás, daqueles valores que às vezes me assombravam feito um fantasma. Evidentemente, fiz assim também porque tive condições de fazê-lo. Uma certa estrutura de apoio, um trabalho que me sustentava, algum tempo para dedicar aos meus pensamentos etc. E, fique claro, não rompi com tudo, não acho que mudei o mundo a partir do meu umbigo, mas pude construir a experiência de passar a organizar meus dias segundo outra perspectiva.

Mesmo depois da pele trocada tem ainda e sempre uma porção de coisas com as quais lidar. Pode ser difícil porque, além de tudo, aqueles que deveriam estar do nosso lado em setores diversos, da saúde mental à mídia, estão muitas vezes em cima do saltinho, cheios de mandamentos supostamente úteis sobre como devemos fazer as pazes com isso e com aquilo. Insuportáveis com seu moralismo de manual, que até pode dar certo alívio de momento, mas que machuca fundo quando insiste em enjaular o que não tem governo nem nunca terá.

Às vezes, a sua verdade não depende de paz nenhuma, mas de aceitar a complexidade e o prazer das suas guerras, seu desejo de que elas sejam infinitas enquanto durem. Pode ser que a felicidade média seja para você um tédio e o pior dos castigos, pode ser que seu arranjo seja sempre desarranjado aos olhos dos outros, pode ser que você não queira ser “consertada” nem mesmo a partir dos melhores parâmetros e intenções. Pode ser um monte de coisa, mas estão sempre querendo nos convencer de que existe uma maneira mais certa, inclusive no que se refere à sua interpretação pessoal da idade.

O seu jeito de ter 50, 60, 90 é o que querem padronizar sem nenhuma necessidade a não ser a de controle social. Mas seu direito coletivo de ter condições materiais para estar viva, de ser acolhida, e não encarada como um peso na estrutura social, como um resto a ser descartado, isso querem deixar para o “empreendedorismo” individual, do cada um por si.

Penso nas pessoas de quem décadas de vida são roubadas. Com preconceito, exploração, pobreza, miséria, para que no topo da pirâmide esse mundo siga organizado como uma máfia de vampiros.

A juventude é valorizada não só em sua ocorrência relativamente natural, cronológica, mas porque também está ligada à ideia de seguir vivendo bem ao longo dos anos. E o acesso a esse bem-viver está regulado pelos mecanismos de desigualdade social, econômica.

A maioria das mulheres trans do nosso país jamais chegará aos 50, porque a média de vida entre elas é de 35 anos. E isso não tem a ver com biologia. Mulheres pobres morrem mais cedo, levam vidas muito duras, ficam mais doentes. Sem acesso a benefícios trabalhistas e previdenciários, com o desmonte absurdo da saúde pública, elas perdem também o acesso ao tempo de sua existência. Isso nos faz repensar o núcleo terrível do etarismo, no que de fato ele se baseia, para além da ponta do iceberg que às vezes enxergamos.

Por essas e outras, aqui dos meus 40, não tenho mais saco para discutir infinitamente coisas como cabelo branco, botox e minissaia sem considerar, por exemplo, o racha de classes e raça que existe dentro dessa conversa. Acho mesmo que temos de avançar. Isso não quer dizer que não possamos abordar a moda no que ela pode ser muito útil. Acredito que devemos usá-la para tensionar o discurso cultural em todos os seus limites. Há muito potencial de mudança nessa pressão.

Para os meus 50, espero ver mais mulheres de 70, 80, 90 anos vivendo bem, vivendo segundo sua autoria, segundo sua própria arte, seu próprio caminho. Espero ver melhores condições para envelhecer, não só para mim. As que vieram antes de nós alimentam nosso futuro. Que esse alimento possa ser cada vez mais feito de inspiração, lutas e vitórias coletivas, e cada vez menos de medo, desigualdade e gestão de privilégios.