O que estamos pensando sobre o clássico batom vermelho?

Ferramenta de empoderamento ou enganação mercadológica? Levamos o debate para o grupo da ELLE no Facebook e você confere aqui o mergulho que demos na questão.


origin 238
Ilustração: Gustavo Balducci



Tudo começou com um post que eu fiz lá no ELLE, O grupo – grupo da ELLE Brasil no Facebook (que, por sinal, se você ainda não entrou, está esperando o quê?). Estava curiosa em saber como o pessoal está usando o clássico batom vermelho hoje em dia. Apesar de ser um dos itens de maquiagem mais tradicionais que existem, foi interessante perceber como a sua potência é percebida de mil maneiras diferentes. Para a Tais Possobom, por exemplo, ele é sua marca registrada. “Uso porque me sinto ‘toda natural, bonita para caramba’ com ele. Acho que o batom em si não representa empoderamento ou afronta. Aqui no Brasil, percebo até uma conotação de fetiche nele. Ainda que não o use por isso, não desconsidero a leitura social que ele implica”, escreveu. “Eu cresci uma garota tímida, insegura. Quando percebi que não queria mais ser assim, mudei minha atitude e o batom vermelho se tornou indispensável para mim”, contou Duda Santiago. Bianca Pinotti, por sua vez, não vê problema em entender o batom como empoderador: “Só não pode parar por aí, né? Empoderamento é mais do que roupa e maquiagem”, reforça. Dayeny Bernardino, que trabalha com a gente aqui na ELLE e cuida da nossa presença nas redes sociais concordou. “Mas, confesso que me incomoda um pouco quando a indústria da beleza tenta monetizar em cima desse sentimento que é muito pessoal no fim das contas.”

Pois é, a história do acessório é longa e cheia altos e baixos. Alguns historiadores consideram que os antigos sumérios são os responsáveis pelo surgimento do batom que teria se dado por volta de 3500 a.C.. Mas, há controvérsias: no Egito Antigo, ocre vermelho e gordura eram usados para enrubescer os lábios. Na antiguidade grega, o uso desse tipo de maquiagem estava associado à prostituição. Era como um marcador social que diferenciava estas do restante das mulheres da sociedade. Em Roma, o uso do batom não se limitava ao gênero: quem pintava os lábios, na verdade, o fazia para denotar classe e status.

O batom vermelho e as sufragistas

O batom vermelho aparece ao longo dos séculos em diferentes contextos e essa multiplicidade simbólica do acessório que transita entre o sagrado e o profano se mantém por quase todo o decorrer dessa linha do tempo. No período medieval, a igreja dizia que os lábios avermelhados “desafiavam deus e sua obra”. Ainda assim, a alta sociedade europeia insistia em emplacar o item como distintivo de superioridade. Posteriormente, no século 16, as mulheres que ousassem usar o batom vermelho poderiam até ser julgadas e perseguidas como bruxas. Em 1912, a canadense que se radicou nos Estados Unidos Elizabeth Arden tenta virar o jogo. A cosmetóloga e empresária pioneira no campo da maquiagem tinha um salão em Nova York que distribuiu 15 mil unidades do bastão rubro para as apoiadoras do movimento sufragista que marchavam em frente ao estabelecimento. Ali, ele representava solidariedade e resistência. Vale lembrar, no entanto, que essas manifestações eram compostas por mulheres brancas da alta sociedade estadunidense. Como bem aponta a fundamental filósofa Angela Davis, o sufragismo fechava os olhos para as demandas das mulheres negras. “Embora as correntes da escravidão tivessem sido rompidas, a população negra ainda sofria as dores da privação econômica e enfrentava a violência terrorista de gangues racistas cuja intensidade não se comparava a da escravidão”, escreveu em Mulheres, raça e classe (1981).

“As sufragistas usavam o batom como arma de expressão e afirmação. Estavam confrontando os homens brancos. Mas, onde estavam as mulheres negras? O batom vermelho tem um lugar e um peso completamente diferente para nós”, reflete a cosmetóloga e esteticista Josi Helena. Professora da Escola Madre, ela trabalha com beleza há 15 anos e conta que começou a entrar nessa seara quando percebeu a falta de oferta para as mulheres negras no mercado de maquiagem. “Esse foi o questionamento que me trouxe até aqui. Por que não tem produtos para pele negra? Por que a maquiadora desse salão acha que não precisa saber maquiar a pele negra?”

image 1763
A empresária e cosmetóloga Elizabeth Arden distribuiu batons vermelhos para as militantes do movimento sufragista nos Estados Unidos.
Foto: Getty Images

Segundo Josi, há uma camada estética no racismo. A cor da pele, o cabelo, o nariz e os lábios são elementos visuais. Assim, a mulher negra, não raro, se percebe tentando esconder essas características para não ser perseguida ou condenada. “Ela é quase obrigada a pedir desculpas pelos lábios que tem, sabe? ‘Ai, não vou passar batom porque chama atenção’. Para mim, tem mais é que chamar atenção, mesmo! É bonito e merece ser visto e apreciado”, argumenta. “O batom é uma pauta delicada entre as mulheres negras. Quando se fala em maquiagem para os lábios, o confortável e mais comum é um brilhinho, uma cor mais neutra, menos chamativa… O vermelho ainda é uma construção em andamento para muitas de nós.

“A mulher negra é quase obrigada a pedir desculpas pelos lábios que tem, sabe? ‘Ai, não vou passar batom porque chama atenção’. Para mim, tem mais é que chamar atenção, mesmo! É bonito e merece ser visto e apreciado”, Josi Helena

Nesse processo de abertura, a internet tem um papel importante. Nas redes sociais, pretas e pretos estão produzindo conteúdo sobre maquiagem e cobrando uma reforma há muito necessária no mercado de beleza. No Instagram, Josi, por exemplo, tem mais de 20 mil seguidores. “Falo diretamente com quem quer me ouvir. Quando a gente se vê, uma segura na mão da outra. Estamos impulsionando uma coragem que começa no batom vermelho, mas vai para muito além dele. A postura muda e, com ela, a gente consegue ver o mundo de outro lugar, enfrentar os desafios de um jeito diferente.”

image 1764
Rihanna usando o Lip Stunna, batom vermelho líquido de sua marca, a Fenty Beauty

Divulgação / Fenty Beauty

O que pode um batonzinho?

No livro Red Lipstick: An Ode to a Beauty Icon (2019), a jornalista nova-iorquina Rachel Felder relembra outras interseções entre o batom vermelho e o ativismo político. De acordo com a autora, o líder da Alemanha nazista Adolf Hitler tinha ogeriza aos lábios vermelhos e, por isso, as mulheres dos países aliados apostavam na tendência como provocação anti-fascista. Em 2018, na Nicarágua, a hashtag #YoSoyPicoRojo (“eu sou boca vermelha”) saía em apoio à libertação de manifestantes antigovernamentais. A movimentação se inspirava em Marlen Chow Cruz, socióloga de 68 anos que foi detida ao lado de outras mulheres e levada para a prisão El Chipote, conhecida por seu histórico torturador. Ali, encontrou um batom vermelho e o compartilhou com todas as suas companheiras de cárcere. Em dezembro de 2019, aproximadamente 10 mil chilenas saíram às ruas pelo país com olhos vendados e lábios vermelhos contra a violência sexual.

E, por fim, na cultura pop brasileira, ele teve seus momentos de glória há cinco anos. Em 2015, a youtuber Julia Tolezano (mais conhecida como Jout Jout) viralizou com o vídeo “Não tira o batom vermelho” que se levantava contra o relacionamento abusivo. A cantora Clarice Falcão, naquele mesmo ano, gravou um videoclipe para a sua releitura de “Survivor”, hit das Destiny’s Child, em que diversas mulheres se pintavam com o acessório. Os lucros da venda da canção no iTunes foram revertidos para a ONG Think Olga. Depois disso, um monte de marcas de maquiagem tentou entrar na onda lançando campanhas para seus produtos que, apesar de se dizerem apoiadoras do empoderamento feminino, por vezes, sequer se comprometiam em trazer algum retorno material à causa. O que, como apontou Dayeny, lá no começo, passa a impressão de oportunismo e, por isso, desgastou a imagem do batom vermelho nos últimos tempos.

“Por mais que usar um batom vermelho signifique empoderamento para parte das mulheres, me soa como se fosse um poder controlado. Está super dentro dos padrões de feminilidade, do que é aceitável e desejável pela sociedade. Serve às empresas de maquiagem e cuidados com a pele, não choca realmente e ainda deixa a mulher sempre prestando atenção na aparência (para não borrar, manchar o dente, sair no centro da boca). Uso, gosto, entendo o valor que tem para várias, mas questiono a permanência a longo prazo como simbologia”, criticou Lygia Cruz lá no nosso grupo. No limite, são diversas as interpretações que o batom vermelho pode ter frente a nossa sociedade. Para usá-lo, talvez, a gente precise de uma dose extra de confiança exatamente para enfrentar o desconhecido dentro do olhar julgador dos outros. Eu demorei para entrar na onda, mas uma vez que me dei essa chance, foi transformador. E para você?

Para ler conteúdos exclusivos e multimídia, assine a ELLE View, nossa revista digital mensal para assinantes