Ninguém ignora que a cozinha brasileira contemporânea é o resultado da influência gastrocultural dos imigrantes que para cá vieram ao longo da história. Portugueses, italianos, japoneses, alemães, libaneses e, mais recentemente, franceses e coreanos aportaram por aqui, em maior ou menor número, por motivos vários. E todos trazendo na bagagem seus hábitos de mesa, que foram adaptados às ofertas de insumos e possibilidades locais. Nessa, fizeram nascer pratos “brasileiros” com os mais diversos cacoetes internacionais. Taí o bife à parmegiana, jamais visto em Parma.
Noutra ponta, o que pouco se reconhece é que a grande, e talvez a maior, influência sobre a formação da cozinha brasileira seja a dos milhões de africanos escravizados que aportaram aqui forçosamente por pelo menos três séculos. Não que as heranças africanas para a mesa brasileira não sejam conhecidas. Afinal, todo o Brasil sabe da existência do acarajé, do dendê e do vatapá. Mas a essa cozinha afro-brasileira reserva-se sempre o lugar do exótico, estigmatizado e desprestigiado. “Muitas vezes vista como comida de menor valor técnico ou refino gastronômico”, diz dona Carmem Virginia, apresentadora e chef de cozinha de seu restaurante
Altar Cozinha Ancestral.
“Por que as pessoas reclamam que o acarajé custa 18 reais, mas pagam 30 por um hambúrguer numa boa? Você já teve a oportunidade de ver o processo de preparo do acarajé? É tudo muito trabalhoso e complexo, tudo manual, o feijão limpo e quebrado tem de ser moído na hora, para depois bater a massa. Sem contar todos os preparos que vão no recheio: o vatapá, que leva camarão e castanha na massa, o caruru com quiabo picado a mão e o vinagrete”, lista a chef. “A luta é vista, mas não é valorizada”, afirma.
Para Carmem, o Brasil deveria ter muito mais orgulho de consumir o acarajé em descoladas lanchonetes do que um hambúrguer. “Se esse é um alimento que é a base para alimentar divindades, deve ser tratado como a comida da realeza que ele é. Um patrimônio imaterial ancestral da nossa cultura, que vem passando por gerações de mulheres potentes por séculos.”
Mesa farta no Kitanda das Minas.
Priscilla Novaes, chef à frente do restaurante Kitanda das Minas e autora do livro Ajeum – O sabor das deusas, concorda que o racismo estrutural estende suas garras inclusive nas escolhas gastronômicas da nossa sociedade. “Sabemos que muita gente ainda se acha no direito de diminuir nossa comida, inclusive trazendo seus preconceitos em forma de opinião, conselho ou dica. Mas o fato é que nossa comida existe e resiste através dos tempos e gerações.”
Não por acaso, o livro organizado pela chef, como resultado do trabalho do Coletivo Mulheres de Ori, traz em suas páginas a trajetória das mulheres negras afro-brasileiras, suas memórias transatlânticas e toda a contribuição delas na formação socioeconômica e gustativa da sociedade brasileira. “A palavra kitanda, por exemplo, hoje aportuguesada para quitanda, vem das feiras e mercados de Luanda, usada para definir ‘as feiras onde se vende de tudo'”, comenta a autora no capítulo que aborda a tecnologia social de organização econômica das vendedoras de tabuleiro, trazidas ao Brasil pelas africanas escravizadas.
Para Priscila, a gastronomia afro-brasileira é uma forma de conexão ancestral tão marcante quanto a arte, a dança e a moda. A exemplo de pratos presentes no seu cardápio, como o baião-de-dois, a moamba de galinha e o acaçá (bolinho de milho branco) servido com a calda de coco queimado ou rapadura vinda do Quilombo do Vale do Ribeira. “É uma forma de lançar um olhar de amor para a minha ancestralidade não só na comida, mas no meu negócio como um todo, da decoração à escolha dos fornecedores.”
Os ingredientes do Kitanda das Minas vêm da produção dos quilombolas do Vale do Ribeira, por meio da Cooperquivale, uma cooperativa de manufaturados e hortifrútis cultivados pelo Sistema Agrícola Tradicional Quilombola. “Faz toda diferença pra mim saber de onde vem, como é feito, e que esse alimento faz parte da minha história e conserva modos tradicionais e ancestrais de cultivo. Você vai fechando uma cadeia positiva, um círculo virtuoso de ressignificação”, explica a chef.
Existem muitos jeitos de ser preto
Para a chef carioca Andressa Cabral, à frente do contemporâneo Meza Bar e do novíssimo Yaya Comidaria Pop, a busca é por esse lugar de reinterpretar o que é cultura preta e protagonismo preto. “Não estou disposta a disfarçar minha pretitude. Trago no meu trabalho uma gastronomia de assinatura preta autoexplicativa para além das interpretações dos olhares racistas, que insistem em colocar nossos trabalhos em lugares estigmatizados. “O Yayá confessa tradição e raiz preta em tudo – na decoração, na música, no ambiente – e, por isso, muita gente insiste em colocá-lo como restaurante baiano. As pessoas ainda interpretam tudo que é preto no Brasil como baiano. Para mim, o futuro é justamente nós, pretos, podermos levar nossa pretitude aonde quisermos e transitar por tudo com liberdade e sem medo de estigmas.”
Isso é algo que a chef e pesquisadora já pratica na sua outra casa mais antiga, o Meza Bar, na Zona Sul do Rio de Janeiro. Segundo ela, seu trabalho no gastrobar traz tanta pretitude quanto no Yayá, mas enquanto esse último aposta no pop (de cultura popular, que emana do povo), na ancestralidade, na comida de quintal, de terreiro e nos lustres de cabaça, o outro é totalmente autoral, contemporâneo e afrofuturista.
Saão do Meza, no Rio.
Andressa conta que o Meza foi todo pensado de forma afrocentrada para trazer pretitude nos detalhes: seja por meio da música black, da logomarca que traz grafismos ancestrais (indígenas e africanos), passando pelos coquetéis do bar (assinados por ninguém menos do que o mixologista e bartender Laércio Zulu) e pelos ingredientes que compõem a cozinha. “Tenho jiló, rabada, macaçá, inhame, coco e dendê compondo pratos autorais contemporâneos de assinatura preta. Precisamos urgentemente avisar que existem muitos jeitos de ser preto e exercer sua pretitude”, alerta a chef.
Na própria Bahia, mais precisamente em Itacaré, na região conhecida como Costa do Cacau, no sul do estado, o chef Ícaro Rosa propõe uma cozinha preta baiana que vai além do convencional e transita sem amarras entre o clássico e o contemporâneo no seu restaurante
Jiló, anexo à pousada de mesmo nome. No cardápio, o chef carioca radicado na Bahia apresenta pratos tradicionais como bobó de camarão ao lado de criações autorais, como nhoque de aipim com creme de bacalhau e crocante de fumeiro ou o rosbife de carne de sol, maionese de manteiga de garrafa e picles da casa. O trabalho de Ícaro só prova que Andressa tem razão: não existe só um jeito de fazer comida afro-brasileira. A tal liberdade de fluir por diferentes técnicas levando consigo sua bagagem é de fato urgente.
A África é um continente plural
Tentar reduzir a cozinha preta brasileira a ícones famosos do Recôncavo Baiano não passa de mero cacoete racista brasileiro. Não só porque existem inúmeras cozinhas afro-descendentes espalhadas ao redor do mundo graças à diáspora africana patrocinada pelo sistema escravagista, mas também porque existem muitas cozinhas africanas, que emanam dos 54 países do terceiro maior continente do globo.
Falar de uma cozinha preta africana é tão ou mais reducionista quanto falar de cozinha europeia ou americana. Prova disso é a nova onda de imigrantes africanos que têm chegado ao Brasil nos últimos dez anos, trazendo consigo a possibilidade de conhecermos uma gastronomia africana ainda mais ampla e diversa. Nesse contexto está o chef Sam, à frente do
Mama África La Bonne Bouffe, em São Paulo, que propõe uma cozinha inspirada em pratos da República de Camarões, onde nasceu.
Queridinho do master chef Erick Jacquin, Sam, radicado em São Paulo há sete anos, trabalha ingredientes típicos de seu país de origem e, ao mesmo tempo, íntimos de nós brasileiros, como camarões, amendoim, abóbora, banana e frango. À primeira vista, os preparos podem parecer inusitados, mas um olhar mais atento logo consegue identificar paralelos com a cozinha brasileira. Como os beignet macala, bolinhas de massa frita dos quais provavelmente descendem nossos bolinhos de chuva, ou o arroz jollof, bem temperado com páprica, tomates e servido com alguma proteína. Qualquer semelhança com nossos arrozes não é mera coincidência.
As similaridades não param por aí. O menu do chef Sam inclui ainda o rico cuscuz marroquino acompanhado de camarões e vegetais frescos, peixe inteiro assado na brasa e o fufu, um creme firme, que pode ser à base milho ou mandioca, que muito lembra a polenta e o angu mineiro.
Falando em Minas Gerais, a banana frita, muito comum nas mesas do estado, é figura fácil nas guarnições do Mama África. Mais uma prova de que a África sempre esteve presente à mesa brasileira – e cabe à desconstrução dos olhares antirracistas saber exaltar essas potências.
Frutos do mar na Yaya Comidaria Pop.