​O cinema que vem da Nigéria

Essa indústria, que nasceu no improviso, foi impulsionada por um cenário social instável e por uma necessidade comercial, hoje é uma aposta do streaming. Conheça Nollywood.

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Em 2018, Lionheart, dirigido por Genevieve Nnaji, fez história ao se tornar o primeiro longa-metragem nigeriano adquirido pela Netflix. No ano seguinte, a produção estaria no meio de uma controvérsia, ao ser desqualificada para concorrer ao Oscar de filme internacional por ter muitos diálogos em inglês. A decisão da Academia, que seguia as regras, gerou protestos de gente como a diretora Ava DuVernay (de A 13ª emenda).

Lionheart é o símbolo da evolução de uma indústria de cinema que nasceu no improviso no país africano e que ficou conhecida como Nollywood – uma brincadeira com a união de Nigéria e Hollywood, assim como Bollywood é uma junção de Bombaim (hoje Mumbai) e Hollywood. O termo Nollywood surgiu para abarcar uma indústria efervescente, surgida no país entre o fim da década de 1980 e início dos anos 1990, que lança até 2,5 mil filmes por ano (o Brasil apresenta, em média, entre 100 e 180 filmes por ano). Esse número faz de Nollywood a segunda maior indústria cinematográfica do mundo, atrás de Bollywood e à frente de Hollywood, além de gerar muito dinheiro, mesmo sendo originalmente títulos feitos em poucas semanas e com orçamentos bastante modestos, de menos de 20 mil dólares. Para ter uma ideia, a média do orçamento em Hollywood é de 6 milhões de dólares.

Mas como uma indústria cinematográfica tão pujante nasceu em um país do continente africano, alheia aos olhos de boa parte do mundo? “Eu gosto de falar que Nollywood não começou por causa do amor pelo cinema, essa coisa de ‘Ai, a gente precisa incentivar a cultura’. Foi uma estratégia puramente comercial”, conta à ELLE Ana Camila Esteves, curadora e pesquisadora do cinema nigeriano.

O país foi formado pelos britânicos com a unificação de diversos reinos, tornando-se protetorado e depois colônia até sua independência, em 1960. Desde então, sofreu uma série de turbulências políticas, com golpes de Estado, guerra civil e uma ditadura militar brutal nos anos 1980, ao mesmo tempo que o dinheiro do petróleo fluía no país. Foi nesse contexto que surgiu Nollywood. Com a instabilidade política e a violência nas ruas, muita gente ficava em casa. Ao mesmo tempo, as salas de cinema foram fechadas. “Na época, as fitas VHS tinham acabado de chegar à Nigéria. Os comerciantes precisavam desaguar essas fitas e pensaram: vamos gravar programas em VHS e vender? E aí deu certo. Nollywood começou assim”, explica Esteves.

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Cena de “Lionheart”, de Genevieve Nnaji, sobre uma mulher que precisa se provar em um mundo masculino.Foto: Reprodução

Uma brecha no mercado

Baseados na tradição do teatro itinerante iorubá e nas telenovelas, os filmes de Nollywood eram feitos com pouquíssimo dinheiro, tempo e recursos cinematográficos bastante limitados. Não havia preocupação com fotografia ou direção de arte, só os produtores eram creditados. O filme-marco desse início é Living in bondage (1992), dirigido por Chris Obi Rapu, escrito por Kenneth Nnebue e Okechukwu Ogunjiofor e produzido por Ogunjiofor. Deu mais do que certo. Como diz Charles Igwe, pioneiro na produção desses vídeos, no documentário Good copy, bad copy (2007), “havia uma brecha no mercado”. A Nigéria, afinal, tem hoje cerca de 210 milhões de habitantes. Não era possível um grupo tão grande de pessoas, divididas em 250 grupos étnicos, não ter nenhum tipo de conexão com uma produção audiovisual com a qual se identificasse.

Essa produção implantou um novo modelo, diferente daquele de Hollywood e mesmo de Bollywood, baseados nas salas de cinema. “Quando Nollywood apareceu pela primeira vez, há 30 anos, foi um desenvolvimento revolucionário, como a primeira grande indústria cinematográfica do mundo baseada inteiramente em tecnologias de vídeo analógico, desde a filmagem até a pós-produção e a distribuição em fitas de vídeo”, escreveu o professor Jonathan Haynes no artigo “A cena contemporânea do cinema nigeriano”. “Foi igualmente revolucionário, como uma forma prolífica de cultura popular africana no cinema. Um instrumento prodigioso por meio do qual as histórias nigerianas eram contadas, aproveitando ou libertando as energias narrativas de uma vibrante cultura nacional.”

Que os filmes não tivessem grande qualidade artística e fossem praticamente amadores não importava tanto. “Não podemos ir para as escolas de cinema em Los Angeles, mas podemos contar nossas histórias com nossos filmes. A fotografia é péssima, a atuação é horrível, mas são nossas histórias”, disse Igwe.

Só que, com o tempo, jovens realizadores começaram a estudar cinema, e muitas vezes fora. “Eles não queriam se afastar totalmente de Nollywood, mas queriam fazer cinema”, explica Ana Camila Esteves. Eram cineastas como Kunle Afolayan, com produções como Sete anos de sorte e A lição de Moremi. O diretor continuou apostando em produções populares, de entretenimento, profundamente nigerianas, mas com fotografia, direção de arte e figurinos elaborados. Nasceu assim a Nova Nollywood. É ela que ocupa a aba Nollywood encontrada hoje na Netflix, que anunciou neste ano uma parceria para a produção de três filmes com Afolayan. O primeiro, Difícil de engolir, ou Swallow, estreou no dia 1º de outubro no endereço.

 

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O diretor Kunle Afolayan, um dos expoentes da Nova Nollywood.Foto: Divulgação

Roupas glamourosas

A Nova Nollywood também surgiu bem quando empresários nigerianos começaram a reabrir os cinemas, originalmente para exibir os filmes de Hollywood. E os novos filmes nigerianos, pensados cinematograficamente, encaixavam-se perfeitamente na nova demanda. Essas produções falam de pessoas ricas, sempre metidas em roupas glamourosas, casas luxuosas, carrões. “É completamente diferente do universo da Nollywood, em que todo mundo é pobre e faz de tudo para ganhar dinheiro”, explica Esteves. Assim, a Nova Nollywood apresenta uma outra face do país, derrubando os estereótipos de pobreza e guerra civil. “A roupa, principalmente, é um marcador de riqueza muito importante nessas produções, especialmente em comédias românticas e filmes de casamento”, diz a pesquisadora.

As produções da Nova Nollywood também tinham qualidade para viajar para os festivais internacionais. Ainda não para os mais autorais, como Cannes e Roterdã, mas certamente para o festival de Toronto, no Canadá, que sempre foi aberto a propostas mais comerciais. E foi lá que se deu o encontro entre o cinema nigeriano e a Netflix, que decidiu então investir no país e na África do Sul, que contam com estruturas cinematográficas. “Eles estão tentando ampliar porque perceberam que dá certo. As pessoas querem ver esses filmes. Há um interesse global nessas produções vindas da África”, diz Esteves. Afinal, além dos milhões de nigerianos e africanos em geral, há os milhões espalhados pela diáspora pelo mundo inteiro.

Existe só o temor de que se acabe reforçando outros estereótipos sobre a Nigéria, em particular, e o continente africano, em geral. “Eles apostam claramente em uma ideia de cinema”, diz Esteves, citando que os três primeiros filmes africanos adquiridos pela plataforma tratam de vulnerabilidades de mulheres na região. Para ela, há a bandeira da diversidade, mas, na prática, a seleção de filmes acaba reforçando certos estereótipos porque opta por um tipo de produção com um olhar limitador. Ao mesmo tempo, não há nenhuma outra plataforma investindo na África como a Netflix.

Mais recentemente, surgiu uma nova onda de cinema autoral também vinda da Nigéria, que vem sendo chamada de Beyond Nollywood (Além de Nollywood). São filmes como
Eyimofé, de Arie e Chuko Esiri, exibido no Festival de Berlim e premiado na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo no ano passado, e Juju stories, do coletivo Surreal 16, vencedor do festival de Locarno, na Suíça. Produções como essas estão correndo festivais mundo afora e sendo observadas com olhos atentos pela crítica. As três vertentes – Nollywood, Nova Nollywood e Além de Nollywood – provam que o cinema nigeriano é vibrante, diverso e merece atenção.

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Cena de “Por uma vida melhor”, de Kenneth Gyang, sobre uma jornalista que se passa por prostituta para expor o tráfico de mulheres.Foto: Divulgação

 

Para saber mais sobre cinema africano

E-book Cinemas africanos contemporâneos – Abordagens críticas, com organização de Ana Camila Esteves e Jusciele Oliveira (Sesc). Aqui.

Catálogo da Semana de Cinema Negro de Belo Horizonte.
Aqui.