O metaverso é a nova obsessão do mundo tecnológico. É provável que você tenha ouvido falar no termo nas últimas semanas, como a nova tendência do momento, o substituto para a internet ou como o novo foco de Mark Zuckerberg. A influência está em todos os lugares: se você usa filtros de realidade aumentada, investe em criptomoedas ou se dedica aos jogos online, está vivenciando uma parte do metaverso. Mas o que significa isso?
Como outros conceitos tecnológicos, a origem está na ficção científica. Mais especificamente, em
Snow crash, livro distópico de Neal Stephenson publicado em 1991, que se tornou um mapa para o futuro do Vale do Silício. Na obra, o metaverso é um espaço virtual semelhante ao mundo real em que os humanos interagem entre si por meio de avatares, termo popularizado pelo mesmo livro.
Outro exemplo sci-fi que explica o conceito é
Jogador nº 1, livro de Ernest Cline adaptado ao cinema em 2018 por Steven Spielberg. Na produção, o OASIS é um espaço virtual em que é possível transitar por diferentes experiências e múltiplos universos ficcionais, onde avatares interagem entre si – a moto de Kaneda em Akira aposta corrida com o Delorean de De volta para o futuro, por exemplo. Todas essas características estão na base do que seria um metaverso.
Em um metaverso, você não só acessa a internet, como faz em seu celular ou computador, mas está efetivamente dentro dela por meio de seu avatar, jogando, comprando e socializando. Da mesma forma que a internet móvel transformou a maneira como vivemos, trabalhamos e nos relacionamos, o metaverso seria uma nova transformação, passando por inovações como o
design digital, a blockchain e a realidade estendida, junção de VR (realidade virtual) com AR (realidade aumentada).
Um metaverso completo envolve uma série de características como um número ilimitado de membros, sincronicidade entre os usuários e a interoperabilidade dos ativos. Essa versão ainda está distante pelas limitações atuais de processamento e rede, mas big techs como a Microsoft e a Nvidia estão investindo pesado para trazer esse conceito para a realidade, assim como o Facebook – ou melhor, Meta.
No final de outubro, Mark Zuckerberg anunciou que a Facebook Inc. foi rebatizada como Meta, deixando claro o posicionamento da empresa. “O metaverso é a próxima fronteira para conectar pessoas, assim como eram as redes sociais quando começamos”, disse o fundador da gigante da internet no evento Facebook Connect 2021. Dias antes, a empresa já havia divulgado planos de contratar 10 mil funcionários para trabalhar na construção desse espaço. A plataforma de rede social permanece com o mesmo nome, o que muda é denominação da controladora do grupo, que detém também o Instagram e o Whatsapp, entre outros negócios.
Mark Zuckerberg interage com seu avatar em evento do Facebook Inc., agora rebatizado de Meta.Reprodução
Jogo da vida
O mais próximo que temos de um metaverso são os mundos virtuais dos jogos multiplayer – quando você ouve o termo hoje em dia, normalmente é a esses ambientes que ele se refere. O próprio Second Life, fenômeno dos anos 2000, se inspirou diretamente em
Snow crash. Esse papel de vanguarda dos games ocorre não só por serem mais intensivos em uso de processamento, mas por terem sido adotados como forma de socialização pelas gerações mais novas, afetadas pelo isolamento da pandemia e pela toxicidade das redes sociais. Além disso, são divertidos – experimentar o metaverso jogando é muito mais atraente do que via escritórios virtuais, como propõem Google e Facebook.
“Os jogos são as novas redes sociais. É onde as gerações Z e Alpha socializam. Eles estão liderando a inovação porque seus usuários são, eles mesmos, inovadores”, diz Cathy Hackl, chief metaverse office e CEO do Futures Intelligence Group, agência que ajuda marcas de luxo a desenvolver estratégias para o metaverso. “As redes sociais são sobre postar e ganhar likes, comentários e engajamento. Os jogos são sobre socializar e construir mundos, essa é uma grande mudança.”
Os principais atores dessa mudança, como o Fortnite e o Roblox, se definiram como metaversos e assumiram novos focos principais: o conteúdo gerado pelos usuários e as experiências compartilhadas. Um exemplo disso são os shows virtuais. Nos últimos anos foi possível assistir apresentações de Travis Scott, Lil Nas X e Pabllo Vittar nessas plataformas, mostrando novas funções sociais além de seu gameplay inicial – o Fortnite, por exemplo, surgiu como um jogo de tiro.
Travis Scott no show realizado no Fortnite, que reuniu um público virtual de 14 milhões de pessoas, ou melhor, avatares. Reprodução
E a moda no meio disso tudo?
A moda tem um papel essencial no metaverso por meio dos avatares, nossos representantes nesses mundos. Nesses espaços, é possível expressar visualmente sua identidade, sem as restrições da sociedade ou limitações físicas. “A moda é o que você bota em seu avatar, o que te empolga. Você pode ser mais criativo em relação ao seu estilo e à sua expressão pessoal”, explica Lindsay Aamodt, diretora de marketing do IMVU, metaverso em que os usuários negociam mais de 27 milhões de itens por mês.
Em 2020, os jogadores gastaram globalmente 54 bilhões de dólares dentro dos games, boa parte em skins, itens que alteram a aparência de seu avatar. Até 2025, a previsão é que essa quantia passe dos 74 bilhões.
“As pessoas sentem que podem ser quem quiserem na plataforma. Um quinto dos 48 milhões de jogadores diários do Roblox atualiza seu avatar todos os dias, e metade atualiza mensalmente. Nossos usuários amam customizar seus avatares, refletindo seu estilo na vida, mas também experimentando looks que não usariam no mundo real”, explica Christina Wootton, VP de parcerias com marcas do Roblox. “É uma ótima forma para marcas testarem novas ideias de uma forma sustentável e com poucos riscos.”
Christina cita o trabalho de alguns dos designers de sua comunidade, como cSapphire, Missmudmaam e Rook Vanguard, que venderam milhões de itens, muitos deles com estéticas próprias impossíveis no mundo real, e que participaram ativamente das colaborações com as marcas.
A Gucci, vanguardista na integração com os games, escolheu o Roblox para receber seu Jardim Gucci, em maio. Mais de 20 milhões de visitantes frequentaram o espaço e puderam adquirir versões virtuais dos itens da marca – uma bolsa foi vendida por 4.115 dólares, mais que o valor de sua contraparte física. O Roblox também foi sede do Vans World, experiência que condensa o espírito da marca californiana em um game de skate similar aos jogos da série
Tony Hawk’s pro skater.
Em setembro, a Balenciaga lançou uma série de skins no Fortnite, acompanhada de uma coleção física inspirada pelo game, marcando o passo mais relevante da moda em direção ao metaverso. Essa foi a segunda colaboração de Demna Gvasalia com a Epic, depois de Afterworld, jogo/coleção da marca lançado em 2020. “Afterworld, em minha opinião, é um momento pivotal na moda e foi só o começo de como a marca está explorando o metaverso e o que pode ser nos espaços virtuais. A Balenciaga no Fortnite e nos Simpsons mostra que a marca não tem medo de inovar”, analisa Cathy.
Só nos últimos meses, Gucci e Ralph Lauren colaboraram com a rede social sul-coreana de avatares Zepeto, casas como Louis Vuitton, Burberry e Dolce & Gabbana apostaram nos NFTs e a realidade aumentada se tornou uma constante na hora de experimentar peças. Se hoje é essencial para as marcas de moda manterem presença nas redes sociais, em um futuro muito próximo, essas empresas vão precisar de estrategistas para o metaverso.
“A indústria da moda verá mais marcas entrando nesse espaço e criando experiências culturalmente relevantes para as novas gerações, desenvolvendo, por sua vez, novas fontes de renda”, afirma Hackl.
Antes de as marcas chegarem a esses espaços, os usuários já estavam criando e vendendo seus próprios itens, e esse é um dos pontos-chaves dessa integração. “A moda pode interagir com o metaverso de uma forma autêntica ao se engajar com as comunidades que já habitam espaços virtuais”, explica Cathy. “Ouvir os usuários finais nesses mundos e como eles querem se engajar com a marca é muito importante. Não construa simplesmente o que acha que eles desejam. Envolva-os no processo e, quando possível, cocrie e colabore com eles.” Para Cathy, o metaverso permite estender nossa identidade para além do mundo físico e não ficar confinado nele. “Isso abre muitas possibilidades para os criativos. O metaverso vai desbloquear um novo nível de criatividade humana que nunca vimos antes”, conclui.
Identidade
E como funciona a construção da identidade nesses espaços virtuais? Na visão de Dani Amatte, professora de design na Universidade Federal de Alagoas (Ufal) e pesquisadora do metaverso, ela se inicia pela liberdade de escolha quanto ao seu personagem, conforme as opções disponíveis. “É comum que o jogador projete naquele avatar seus desejos relativos à sua aparência, atribuindo muitas vezes, de forma inconsciente, características estereotipadas daquele tipo de corpo que escolheu. Há também aqueles que se aproveitam disso para projetar no mundo digital uma existência que não podem vivenciar no mundo físico”, diz.
“Assim como nos vestimos para apresentar aos outros uma declaração visual da nossa personalidade, construímos nossos avatares sobre a mesma premissa, possuindo nos metaversos uma camada de liberdade ainda maior.” Ainda assim, questões que afetam a moda do mundo real acabam vazando para esses espaços: “Acabamos reproduzindo nesses universos aspectos da sociedade em que habitamos. Reproduzimos até questões mais complexas, como processos de subjugação de outros povos e objetificação dos corpos”.
Desfiles no metaverso
Em maio deste ano, o IMVU protagonizou uma das principais experiências com moda até agora: o primeiro desfile dentro da plataforma. “Quando vimos que os jogadores estavam criando seus próprios desfiles virtuais, eu disse: ‘Precisamos fazer o nosso próprio desfile, com marcas reais'”, conta a diretora de marketing do game, Lindsay Aamodt.
O evento, transmitido pelo YouTube, contou com um line-up de jovens designers que fazem sucesso com a geração Z, como Mowalola, Collina Strada, Mimi Wade, Gipsy Sport e Freak City. As principais peças foram leiloadas depois, na forma de NFTs.
“Nós tínhamos visto os Animorphs do desfile da Collina Strada na NYFW, e eu pensei que poderíamos fazer isso no IMVU: criar um desfile que não fosse somente logos em camisetas. Nós poderíamos explorar de verdade a criatividade da moda de uma maneira que desafia os limites que temos no mundo físico”, conta Lindsay.
No desfile da Collina Strada para o IMVU, a estilista e fundadora da marca, Hillary Taymour, exibiu avatares com cabeças feitas de flores se fundiam por meio das roupas com cavalos-marinhos, gatos e caracóis, em uma extensão das ideias apresentadas em sua coleção de outono, em que humanos se transformavam em animais inspirados na série
Animorphs, e pré-outono, em que havia desenvolvido uma série de games sobre a emergência climática. Foi nessa apresentação no IMVU que surgiram as peças adornadas por cabeças de cavalo, inspiradas pelo passado de hipismo da designer, que reapareceriam em seu desfile seguinte e no Met Gala, com Kim Petras exibindo o look que parou o tapete vermelho.
“Acho que eles
(os metaversos) oferecem um escape, algo para sonhar. Um lugar em que o caos fica para trás e você pode se soltar. Sempre tento criar uma perspectiva positiva e divertida sobre os mundos e lugares que criamos, que vem sendo uma forma de liberação durante a pandemia”, conta Hillary.
Metaverso brasileiro
No Brasil, a maior referência de metaverso é o Cidade Alta (CDA), servidor da modalidade roleplay do Grand Theft Auto V (GTA V). Nele, streamers e influenciadores interpretam personagens na metrópole virtual de mesmo nome. Essas histórias podem ser duelos cinematográficos entre criminosos e polícia, mas também podem ser existências mais incomuns nos games, como jornalistas, mecânicos e médicos.
O grande sucesso do servidor está na integração com as outras plataformas, uma das premissas para um metaverso. São 1.024 jogadores simultâneos – no começo de 2020, eram apenas 128, mas os acontecimentos do servidor rendem uma média de 250 mil espectadores nas plataformas de streaming, 2 milhões de views diários no YouTube e TikTok e 250 mil membros no Discord. A maior parte desse público pertence à Gen Z, apesar de só maiores de idade poderem jogar – e, diferentemente do que acontece no game, onde a classificação +18 é solenemente ignorada, o servidor costuma ser bem rígido no controle da faixa etária dos participantes.
Essa audiência transformou o Cidade Alta em um centro para experiências sociais e eventos de marcas. Neste ano, por exemplo, o servidor recebeu um desfile de Carnaval – com direito a shows de Léo Santana, Luísa Sonza e Monobloco – e uma parada LGBTQIA+. “Em todos os roteiros e histórias que a gente acaba criando dentro da plataforma, tentamos de alguma forma nos conectar com alguma coisa ou evento que a gente consiga trazer pra vida real”, diz Paulo Benetti, CEO da Outplay, empresa responsável pelo server.
A tarde cai na Cidade Alta, a metrópole virtual que é palco das emoções do GTA V.Reprodução
Recentemente, o servidor anunciou a parceria com a plataforma de NFTs Dropull para integrar os itens do jogo com criptoativos, mais um passo em direção à consolidação como um metaverso. O primeiro drop envolveu carros, o ativo mais valioso dentro do servidor, mas as possibilidades estão abertas para outros tipos de itens.
O CDA desenvolveu até mesmo um estilo de moda característico, com cabelos coloridos, camisas de futebol e um mix de peças esportivas e de streetwear. “As pessoas interpretam personagens que acabam ditando muito o estilo de como são na vida real. Às vezes, eles usam uma peça que não tem condições de adquirir fora do jogo, às vezes, escolhem a peça porque usam a mesma na vida real. O Cidade Alta dita comportamentos dessa geração Z e também dos streamers”, conta o CEO, citando como exemplo um streamer que adquiriu um carro fora do jogo após usá-lo para vencer uma corrida importante no game.
Em 2021, o CDA teve seu principal momento fashion: uma colaboração com a Piet, do designer Pedro Andrade, que também atua como diretor criativo da equipe de eSports LOUD. A coleção foi lançada simultaneamente dentro e fora do jogo, como parte do evento Baguncinha, que levou as competições e músicas do jogo para o mundo real e se esgotou em poucos minutos.
Coleções lançadas no metaverso, que repercutem mais do que aquelas do mundo físico, como se vê, já são uma realidade. Como profetizou Cathy Hackl no Twitter: “A próxima Coco Chanel provavelmente é uma garota de 10 anos que atualmente está desenhando skins para avatares no Roblox”.