Ilustração: Lais Oliveira
Segundo o dicionário Oxford, identidade é o “conjunto de características que distinguem uma pessoa ou uma coisa e por meio das quais é possível individualizá-la”. Identidade é o que nos marca nesse mundo, o que faz com que sejamos únicos. É o que nos liberta. Mas também é, muitas vezes, o que nos aprisiona.
Nos últimos meses, com cada vez mais frequência, temos visto todas as polêmicas em torno do “identitarismo”. Eu uso aspas, pois esse termo, mesmo que sob uma boa intenção, foi apropriado por pessoas e grupos que tentam, na verdade, acabar com discussões legítimas em torno das diferentes identidades que compõem o nosso tecido social.
A última polêmica em torno do “identitarismo” se deu quando Linda Thomas-Greenfield, embaixadora dos Estados Unidos na ONU, votou contra a resolução brasileira de pausa para ajuda humanitária em Gaza, por ocasião dos bombardeios israelenses. Linda é uma mulher negra. A imagem dela com a mão para o alto, vetando uma resolução que seria aprovada de forma quase unânime, ficará marcada na história. E esse episódio serviu, infelizmente, como uma alegoria utilizada por todas aquelas pessoas que tentam diminuir as pautas de representatividade.
“Uma mulher negra como ministra do STF? Mas a Linda Thomas-Greenfield nos mostrou que ser mulher negra não significa estar ao lado dos oprimidos!” foi o tipo de coisa que vimos nas redes sociais, inclusive no campo progressista. Um tipo de pensamento, sob muitos aspectos, racista. Greenfield não representa todas as mulheres negras. Nenhuma mulher negra tem o poder de representar todos os pensamentos, vontades, desejos, falhas e demandas de todas as outras mulheres negras. Ainda bem. Mas, diante da lógica excludente dos que não querem mudar o mundo, os grupos historicamente marginalizados e invisibilizados precisam continuar a ser resumidos e estereotipados.
A luta por representatividade é uma das mais importantes da nossa geração. Mas qualquer representatividade não é suficiente, qualquer representatividade não basta.
Margaret Thatcher não é a representação de todas as mulheres brancas. Fernando Holiday não é a representação de todos os homens gays. E eles são, justamente por tudo que defendem ou defenderam em suas trajetórias, exemplos de que a identidade não basta. Consciência de classe, letramento racial e entendimento de gênero são fundamentais, precisando estar presentes na vida de todas e todos nós. Uma mulher trans que, por exemplo, se alie com conservadores ou que replique discursos fundamentalistas não faria nenhuma diferença positiva na luta por dignidade das pessoas trans. Pelo contrário, seria um retrocesso para todo o grupo.
Por isso, as identidades não podem ser romantizadas. Todo corpo é político, mas nem toda política é inclusiva, acolhedora e coletiva. A luta por representatividade é uma das mais importantes da nossa geração, pois estamos todas cansadas do “identitarismo” dos homens brancos, que se promovem e se protegem. Mas qualquer representatividade não é suficiente, qualquer representatividade não basta. Senão, corremos o risco de criar um monstro em que grupos minorizados passam a ser representados apenas por figuras reacionárias que sabotam suas próprias identidades.
O “identitarismo” é, antes de mais nada, uma armadilha. Ele distorce lutas e demandas reais, ao mesmo tempo que desinforma e despolitiza, voltando a fragilizar quem tenta ter sua identidade visível, validada e valorizada.
Precisamos quebrar as armadilhas e fugir dos monstros que nos aprisionam e nos devoram. Criar um mundo de dignidade para todas as vidas é uma tarefa coletiva.
Lana de Holanda Pelech é mulher trans/travesti, comunicadora, escritora e feminista decolonial. Escreve a newsletter A Palavra Não Lida.