A Batalha do futuro

Responsável por virar o rumo da história da moda em 1973, a Batalha de Versalhes completa 50 anos este mês. De lá para cá, muitas coisas
mudaram. Outras, nem tanto.

Em novembro de 1973, o jornal estadunidense Newsday anunciou que uma noite de gala beneficente seria realizada no Palácio de Versalhes, na França, com o objetivo de arrecadar fundos para reformar a construção do rei Luís XIV. “O palácio velho, cheio de vazamentos e cupins, precisa de 60 milhões de dólares para a restauração”, justificaram com acidez.

Até então, isso era tudo o que se sabia: o Grand Divertissement à Versailles, como foi oficialmente designado, seria um evento de caridade destinado a conseguir dinheiro para restaurar a construção histórica. Mal sabiam eles que a descrição eufemista envelheceria tão rápido quanto as pragas que se espalhavam no local. Depois da celebração do dia 28, a história da moda ganhou capítulos que estão sendo escritos até hoje.

Realizado no Théâtre Gabriel, casa de ópera inaugurada em 1770 para a celebração do casamento de Luís XVI com Maria Antonieta, o baile foi batizado de Batalha de Versalhes pela imprensa. O motivo é que a principal atração da noite era um duelo épico.

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De um lado, os anfitriões: cinco dos maiores costureiros franceses. Do outro, os convidados: meia dezena de grandes estilistas estadunidenses. Oscar de la Renta, Bill Blass, Anne Klein, Halston e Stephen Burrows enfrentaram Yves Saint Laurent, Hubert de Givenchy, Pierre Cardin, Emanuel Ungaro e Marc Bohan, à frente da Dior. Cada time deveria desfilar suas melhores criações naquele cenário cheio de pompas. Venceria quem apresentasse o espetáculo mais impactante.

Contradizendo todas as expectativas, os estadunidenses venceram. E a repercussão dessa vitória foi um ponto de virada para os rumos que a moda seguiria a partir daí.

Depois da celebração do dia 28, a história da moda ganhou capítulos que estão sendo escritos até hoje.

Aline Mosby, uma das jornalistas mais célebres da época, declarou que essa foi “a primeira vez que a França reconheceu que os Estados Unidos têm designers”. A frase sintetiza bem o cenário daquele período.

Em 1973, a relevância da moda mundial se reduzia a Paris. Apenas a alta-costura francesa era vista como um sinônimo de criatividade e refinamento. O prêt-à-porter, que na época engatinhava enquanto campo de interesse, nem era visto como moda.

Se atualmente, mesmo com o avanço de tantos debates sociais, a elite continua ditando boa parte das regras, nos anos 1970, era inimaginável que qualquer manifestação que saísse das rédeas burguesas tivesse seu momento de glória.

Sim, o movimento hippie vivia sua ascensão, mas calças flare e camisetas psicodélicas não eram exatamente vistas como uma explosão criativa. Não na moda, que é esse território contraditório e cheio de nuances que seguimos tentando compreender. Tradição e aristocracia eram palavras de ordem. Naquela noite, porém, a elite francesa deitou.

Para quem vive no mundo em 2023, deve ser difícil imaginar uma realidade em que os Estados Unidos estejam em desvantagem em alguma coisa. A maior potência econômica e militar do planeta, os donos do xeque-mate na geopolítica, os detentores da New York Fashion Week e do MET Gala. Pois bem: apesar do poder bélico já consolidado, a Guerra Fria em curso e a superioridade política alcançada, os EUA não eram definidos apenas por seus governantes.

Ao final da década de 1950, foi iniciado no país o movimento pelos direitos civis dos afro-americanos, alavancado por Malcolm X e Martin Luther King Junior – dois dos maiores líderes de toda a história do movimento negro. A cena ballroom, que reunia, e reúne, a comunidade LGBTQIAPN+ em diversas experimentações artísticas, ocupava cada vez mais boates escondidas.

A juventude fervilhava e lutava para construir as bases de vários conceitos de pluralidade que conhecemos hoje. As ruas foram priorizadas em detrimento da ostentação europeia. E isso, claro, influenciou a moda da época, que queria tudo, menos a mesmice.

A vitória dos estadunidenses na Batalha de Versalhes significou que a moda mundial estava pronta para celebrar o novo. De 36 modelos, dez eram negras — naquele tempo, isso era muita coisa. Os vestidos trazidos do outro lado do Atlântico se movimentavam, destacavam as curvas do corpo, o que era um atentado contra as silhuetas rígidas da alta-costura – e um bálsamo para quem ansiava pela ousadia.

Mas a moda, repetindo, é um território contraditório e cheio de nuances. Cinquenta anos se passaram e muitos desses avanços foram substituídos por um retrocesso. Não é preciso de muito aparato para saber que a moda estadunidense não se tornou um exemplo impecável de inclusão depois desse dia. Mas esse papo vem mais à frente. Por hora, voltemos ao desfile.

A festa do ano

O grande nome por trás da organização da Batalha de Versalhes é Eleanor Lambert, uma lenda da publicidade estadunidense. Em 1943, ela criou um evento chamado Press Week, voltado para apresentar coleções para jornalistas e compradores. Permitiu a entrada de fotógrafos, o que era terminantemente proibido pelo mercado até então.

As semanas de moda como conhecemos hoje começaram a se estruturar a partir daí, e a criação do Conselho de Designers de Moda da América é só mais um de seus feitos. Do lado francês, quem comandava era a baronesa Marie-Hélène de Rothschild, a maior locomotiva social de Paris. Juntas, elas tinham o jogo de cintura essencial para manobrar o ego dos investidores milionários e dos gênios criativos.

O que era uma noite beneficente, antes mesmo de acontecer, se tornou a festa do ano. A imprensa ficou obcecada e as organizadoras ofereceram um banquete para continuar alimentando as manchetes. Pré-festas, jantares luxuosos e burburinhos em torno de celebridades eram algumas das estratégias.

Deu certo: na noite da Batalha, quem tinha que aparecer apareceu. A princesa de Mônaco, Grace Kelly, cruzou a porta de entrada com um vestido branco Dior e capa vermelha Madame Grès, acompanhada de seus rubis e diamantes. Andy Warhol e a clássica peruca platinada também estavam lá, assim como Elizabeth Taylor e Jane Birkin. Nos palcos, Josephine Baker foi encarregada de encerrar o desfile dos franceses, enquanto Liza Minnelli foi a artista escolhida pelos estadunidenses.

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Como é de bom-tom, os anfitriões foram os responsáveis por dar início à festa. Em uma apresentação que durou mais de uma hora, os franceses trouxeram orquestra, cenários grandiosos, encenações à la ópera. Todos os designers apresentaram seus looks em carros alegóricos artesanais, que refletiam a essência de cada marca.

A Dior trouxe uma abóbora, em referência à Cinderela. Um foguete surgiu em cena na hora de Cardin. Yves Saint Laurent colocou a cantora francesa Zizi Jeanmaire para cantar. Com tanto requinte e investimento, o clima era quase de deboche. Para eles, era óbvio que ganhariam à custa das glórias do passado. Mas a plateia, que borbulhava de tanto champanhe, guardou aplausos inesperados para os visitantes. Não dava mais tempo de colocar a vassoura atrás da porta.

Em uma apresentação sem pausas de trinta minutos, os forasteiros serviram tudo o que o público queria. Se “babado, confusão e gritaria” fosse um jargão da época, certamente alguém teria lançado tal descrição.

Com o tema Cinderela em Paris, todos apresentaram coleções autorais, com roupas maleáveis, leves, que pareciam dançar no corpo das modelos. Elas, aliás, foram coreografadas pela dançarina Kay Thompson, da Broadway – um escândalo de presença de palco, que nada se parecia com o “acting cabide” que segue forte até hoje. Liza Minnelli abriu o show cantando “Bonjour, Paris”, o que capturou de forma irresistível até o mais resistente dos patriotas.

A performance enérgica foi dosada na medida certa e não tirou o protagonismo das roupas. Aqui, Stephen Burrows, único designer negro do baile, merece uma menção honrosa. Num ambiente majoritariamente branco, o designer não só colocou mais modelos negras para desfilar, como também fez referências diretas ao voguing, dança que é um dos maiores símbolos da cultura ballroom. Burrows apresentou vestidos de malha (mais um ultraje para a alta-costura), lingeries transparentes e silhuetas invertidas. A curva inesperada na barra dos vestidos lembrava uma folha de alface, e a aristocracia europeia gritava exasperada.

Bill Glass referenciou os anos 1920, Oscar de la Renta apostou na sensualidade dos vestidos esvoaçantes, Halston fez um show de mágica. Anne Klein, única designer mulher, trouxe uma coleção inspirada na África. (Infelizmente, Anne faleceu precocemente de câncer de mama no ano seguinte.)

O gala arrecadou 260 mil dólares, quase quatro vezes acima da meta. Os vestidos do evento estavam estimados em cerca de 2,5 mil dólares. E a Batalha de Versalhes era o assunto mais comentado em qualquer lugar do mundo, embora pouquíssimo se falasse sobre a tal reforma do palácio. Ninguém parecia lembrar que todo esse dinheiro era para controlar cupins. Só o glamour da coisa importava.

Robin Givhan, crítica sênior do Washington Post e única jornalista de moda a ter na estante um prêmio Pulitzer, escreveu um livro inteiro dedicado ao evento histórico (uma leitura obrigatória para quem se interessa por história da moda, inclusive). Em A Batalha de Versalhes: a noite que mudou a história da moda, Robin narra os acontecimentos com uma riqueza sublime de detalhes, sem abandonar o olhar crítico e a conversa franca. “Versalhes não alterou o padrão de beleza, mas provou que fugir do aceito e esperado pode produzir resultados triunfais”, escreveu. E lá vamos nós para aquele papo sobre as contradições.

A Batalha do futuro

Daqui, de 2023, 50 anos à frente, refletir sobre um evento dessa dimensão é um exercício que exige fôlego. São muitas camadas: o que os Estados Unidos fizeram com o espaço conquistado, o que a França realmente perdeu, quais foram os grupos sociais que mais se beneficiaram, até que ponto a moda realmente evoluiu depois disso, como os designers que participaram seguiram suas carreiras.

E veja: questionar algumas facetas da Batalha de Versalhes não significa debater seus méritos. Eles são inquestionáveis. Com o passar dos anos, as contribuições estadunidenses com a moda só aumentaram. Vieram aí o glamour hedonista da era disco, a explosão da cultura drag, o streetwear impulsionado por grupos marginalizados, a ascensão do alto luxo estadunidense, o nascimento de novas etiquetas, Nova York no circuito da moda mundial etc.

Nisso, o fazer criativo que abriu portas para os estadunidenses parece ter sido absorvido pela lógica capitalista exploradora. É óbvio que a roupa precisa ser vendida e que a moda é um pilar econômico
gigantesco, mas foi a obsessão pelo lucro que levou alguns estilistas, com o combo completo dos privilégios, como Halston e Yves Saint Laurent, ao declínio. A própria New York Fashion Week, que já foi considerada a semana de moda mais autêntica da temporada, hoje se destaca muito mais pelo seu apelo comercial.

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Um evento que é interessante de observar é o baile do MET (Metropolitan Museum of Art), que acontece anualmente em solo nova-iorquino e se intitula como “o maior evento de moda do mundo”. A festa arrecada fundos para o museu e sempre apresenta uma exposição de acordo com o tema. No último ano, o homenageado foi Karl Lagerfeld, que, convenhamos, apesar de realizar um trabalho indiscutivelmente relevante por décadas, foi publicamente preconceituoso e racista em diversas ocasiões.

Em 2022, foi a vez de homenagear a Gilded Age, a era do ouro, prestígio e conquista dos estadunidenses. Ou melhor, de alguns deles — já que boa parte da população negra e pobre vivia em precariedade e exploração. Em 2021, o vocabulário de moda e a antologia histórica foram os temas escolhidos. Uma pena que a exposição pulou algumas partes da linha do tempo e apagou nomes históricos que ajudaram a construir esse império. Tipo Willi Smith e Patrick Kelly, que foram designers extremamente importantes nos EUA e nunca receberam o prestígio que mereciam.

Na Batalha de Versalhes, a moda era restrita à elite e majoritariamente produzida por homens cisgênero, brancos e abastados. “Normal”. Mas o que justifica a reprodução dessa lógica até hoje? Cinco décadas se passaram e, apesar de muita coisa ter mudado, outras parecem estáticas, congeladas no mofo de um tempo aristocrata.

E, para não deixar tudo na conta dos Estados Unidos, temos aí um vasto leque de maisons e conglomerados europeus que compartilham da mesma estrutura anciã. O legado do desfile-espetáculo também parece se manter firme. O que é divertido, faz sentido com o digital e toda essa conversa das redes e likes, mas também tem lá seus poréns. Um desfile de moda, ainda que tenha performances e frufrus, ainda é um desfile.

Apresentar roupas bem-feitas, principalmente quando se tem recursos, é quase sempre mais eficiente que a megalomania. O estilista mineiro Mateus Cardoso, que acabou de estrear no SPFW N56, é um excelente exemplo disso. Falar que moda é uma construção social pode parecer uma frase batida, mas dizem os educadores que a repetição é uma excelente ferramenta de aprendizagem. Nada está dado em uma estrutura que se movimenta, e sempre dá para avançar. Sobre isso, Versalhes ensinou bem.