No dia 22 de novembro de 1963, um comerciante do Texas chamado Abraham Zapruder decidiu ir até a Dealey Plaza filmar a passagem de John F. Kennedy por Dallas, que visitava a cidade com o objetivo de aumentar a sua popularidade entre o eleitorado sulista. Admirador do presidente, Zapruder buscou um bom lugar para assistir a comitiva e acabou, sem querer, criando o vídeo mais preciso do momento em que Kennedy foi atingido por uma bala.
Sua gravação, de 28 segundos, foi vendida à revista Life e representa um marco no uso de registros feitos por cidadãos comuns como parte da narrativa jornalística. O New York Times descreve o episódio como um precursor do que hoje chamamos de user-generated content (UGC), um termo cujo significado vem mudando consideravelmente desde que foi abarcado pela publicidade e, mais recentemente, com a crescente popularidade de um novo ator, o “UGC creator”.
Um híbrido de influenciador, ator e freelancer de social media, esses trabalhadores fazem parte da gig economy, funcionando como um cardume de pequenas agências individuais que ajudam marcas a divulgar produtos em escala e com foco em performance. Como muitas tendências da internet, há também um mercado lucrativo para quem ensina outros a entrar nesse nicho. Embora a maioria trate a atividade como complemento de renda, não faltam promessas de quem diz ser possível abandonar um emprego formal e viver só disso.
Antes de mergulharmos nesse fenômeno, porém, proponho que voltemos um pouco no tempo para examinar o termo user na expressão user-generated content.
Quando surgiu como uma tendência de marketing, o UGC tinha como foco o usuário. Eram marcas buscando depoimentos espontâneos de clientes a fim de repostá-los em seus perfis como forma de oferecer uma visão mais autêntica de seus produtos sendo utilizados por “pessoas reais na vida real”. As coisas começaram a se emaranhar quando as empresas perceberam que poderiam incentivar mais desse tipo de conteúdo ao promover campanhas específicas ou cenários instagramáveis.
Diferentemente de Zapruder, que não tinha a intenção de ofertar sua filmagem e acabou ficando tão abalado pela experiência de ter gravado um assassinato que nunca mais comprou ou usou outra câmera, o UGC estimulado pela publicidade passou a funcionar como uma troca consciente. As marcas lançavam ações e os usuários interagiam com elas na expectativa de conquistar algo que ainda não estava completamente definido. É que, no início, a ideia de ter sua foto repostada não era tão calculada nem vista como uma estratégia de crescimento — até porque, naquela época, ser influenciador não era o sonho de 75% dos jovens brasileiros. A motivação girava em torno de participar, sentir-se visto, celebrar ter sido escolhido dentre tantos. Claro, isso também carregava algum nível de exposição de capital econômico, cultural ou social, mas eram tempos mais simples.
Campanhas como a #ShareACoke, da Coca-Cola, exemplificam esse período. Com nomes personalizados nas garrafas, a ação transformou momentos singelos de pessoas comemorando a descoberta de seu nome nas embalagens em divulgação gratuita. No Brasil, um exemplo notável é o Instagram da Farm, que começou sua incursão no mundo do conteúdo feito por marcas por meio de um blog e até hoje utiliza a #tonoadorofarm como um incentivo para clientes postarem fotos vestindo suas peças — e milhares delas fazem isso de bom grado na esperança de serem destacadas no perfil de uma marca que se coloca como uma representante do estilo carioca. Ou seja, aparecer lá acaba sendo um endosso de que você também faz parte do universo criado por eles.
No lugar em que nos encontramos hoje nas redes sociais, é difícil traçar uma linha definidora de quem é ou não é um influenciador. Com tantas categorias, que vão do mega e do macro ao micro e ao nano, a impressão é que todo usuário com uma conta aberta e alguma intenção por trás de suas postagens está apenas esperando pela sua grande descoberta. Aquela primeira #publi que, enfim, o legitimará como um integrante do mercado da influência. Nesse cenário, em que todos somos influenciadores em potencial, será que se referir a user-generated content como uma forma de conteúdo autêntica/espontânea/sem intenções comerciais continua fazendo sentido?
A transferência de foco do user para o content
Quando as marcas não puderam mais ignorar o Facebook (e depois o Instagram e, agora, o TikTok), um desafio se instaurou. De repente, as campanhas caríssimas feitas por agências tradicionais não davam mais conta de sustentar feeds que precisavam de dezenas de posts por mês para alimentar um algoritmo faminto por atualizações. A contratação de influenciadores ajudava, mas, quanto mais expressivos eles eram, maiores seus cachês, o que sempre representou uma barreira financeira para ações em grande escala.
Para muitas companhias, o UGC então caiu como uma luva, pois os clientes acabavam fazendo o trabalho de postar por elas — às vezes recompensados com brindes ou descontos, mas na maior parte do tempo apenas com “visibilidade”. Assim, hashtags estilo #tonoadorofarm foram espalhadas em sacolas de compras, nas paredes das lojas, em eventos e campanhas digitais. Se bem-sucedida, a ideia gerava awareness espontâneo pelas redes, como no caso da Coca-Cola, se não, ao menos rendia mais insumos para o calendário de conteúdo da marca.
Obviamente, o poder do UGC vai muito além de preencher o feed. Ele se apoia em uma verdade simples: ninguém gosta de ser interrompido no meio do scroll por algo alienígena, como um anúncio superproduzido entre vídeos e fotos caseiros. Por isso, ao integrar-se ao fluxo natural, ele alcança um potencial de conversão que campanhas tradicionais raramente conseguem.
Na outra ponta, está o usuário/influenciador consolidado ou aspirante (acho pertinente que em seu “Guia de Publicidade por Influenciadores Digitais”, o Conar se refere a influenciadores simplesmente como usuários), que também precisa produzir conteúdo. O fato é que, por mais criativo que ele tente ser, é impossível escapar das marcas, tão integradas à nossa rotina que mal percebemos sua presença. Mencioná-las não é apenas inevitável, mas virou também um artifício, uma forma de atrair atenção. No fundo, é como um teste informal: produzir de graça hoje para, quem sabe, garantir um contrato amanhã.
É exatamente nesse jogo de interesses calculados que surge essa categoria em debate, que é o UGC creator. Embora essa variedade de “operário da internet” não seja exatamente nova — com pessoas se dedicando à atividade há anos, especialmente nos Estados Unidos e na China —, sua presença tem crescido de forma exponencial no Brasil. Se antes era uma estratégia utilizada principalmente por empresas menores, que não dispunham de orçamentos fartos para investir em grandes influenciadores, hoje a demanda (e principalmente a oferta) de UGC creators vive um boom no mercado, que busca a pulverização de seus investimentos.
Incluo aqui também os programas de links de afiliados e os e-commerces com suas táticas de gamificação, que recompensam consumidores com pontos ou moedas por resenhas, gerando uma avalanche de comentários curiosos como “ainda não usei, mas recomendo”. Essa dinâmica transforma o consumo em algo remunerado. Agora, as pessoas são incentivadas a consumir, comentar e até jogar, guiadas por recompensas.
UGC creator: 101
Em resumo, o UGC creator é um produtor freelancer de conteúdo que cria materiais promocionais sob demanda para marcas com concessões de direitos extensas (às vezes vitalícia), permitindo o uso em mídia, e normalmente por valores muito abaixo do que um influenciador cobraria. Ao contrário deles, esses criadores não precisam ter uma audiência própria, apenas produzir vídeos, fotos ou textos que simulem a autenticidade de um usuário comum. Esse material é então usado diretamente pelas marcas, muitas vezes sem nenhum aviso ao público de que foi encomendado.
Em sua maioria, as marcas utilizam plataformas de anúncio de campanhas (o próprio TikTok possui uma), recebem diversas opções e escolhem as que mais se adequam ao que precisam, podendo ainda pedir alterações. Também é frequente vermos marcas ou agências procurando formar suas próprias redes de UGC creators utilizando apelos como: “Já pensou em ganhar dinheiro para receber produtos em casa e criar vídeos sobre eles de onde estiver, sem precisar ter seguidores?”
É como se o UGC creator fosse mesmo um ator, mas enquanto na televisão os comerciais carregam uma transparência implícita — todos sabem que estão assistindo uma propaganda —, no ambiente digital é muito mais fácil soar como um cliente que passou por todo o processo de compra. É essa autenticidade aparente que o torna tão valioso para as estratégias de marketing atuais.
Na teoria, é uma situação em que todos saem ganhando: os criadores fazem dinheiro, as empresas atingem mais gente e os consumidores têm acesso a uma visão prática e acessível dos produtos antes de comprá-los. Contudo, apesar do alto potencial de conversão, é inegável que essa prática habita uma zona cinzenta por haver controle criativo e remuneração — não que isso pareça incomodar qualquer parte envolvida, pois o que não faltam são pessoas com a expressão UGC creator como descrição em seus perfis, dando a pista de que o que está sendo postado não é espontâneo.
É que, com a alta do serviço, surgiram com ele os perfis que não apenas produzem conteúdo para marcas utilizarem em seus feeds, mas também criam vídeos-portfólio — reviews não pagos, desenvolvidos para demonstrar habilidades e atrair futuras parcerias.
Você já deve ter percebido que, como resultado, navegar pelas redes sociais hoje em dia se assemelha a entrar em um gigantesco shopping, que nunca fecha: um mercado interminável, onde “pessoas comuns” estão sempre vendendo algo. A princípio, parece que o produto anunciado é para você, mas, muitas vezes, o verdadeiro item à venda é o próprio indivíduo — sua promessa, sua potencialidade, sua tentativa de capturar a atenção de uma marca que talvez ainda nem a tenha notado.
As tendências de marketing indicam que esse movimento está longe de desacelerar, com projeções apontando um crescimento significativo em 2025. O que pode mudar um pouco o cenário é que algumas empresas já começam a investir no desenvolvimento de seus próprios funcionários como criadores UGC (nesse caso, chamado de EGC, employee-generated content) enquanto marcas menores ou mais autorais deram a volta e têm evitado se associar a quem se divulga como UGC creator por eles terem deixado muito explícito como funcionam as coisas e considerarem que agora falta neles, exatamente, a autenticidade.
O UGC creator é fascinante porque encapsula os sintomas da nossa era digital. Ele representa mais um passo no processo de eliminação de lastro que dominou a internet: cursos que ensinam a criar cursos, reviews de lugares nunca visitados, dropshipping de produtos sem estoque, UGC de itens nunca comprados, inteligência artificial que se retroalimenta. Paradoxalmente, vejo que o seu grande trunfo é, justamente, expor o jogo. Quase como um favor involuntário, ele evidencia a lógica que sempre esteve por trás do marketing de conteúdo. Talvez, com as cartas finalmente expostas, estejamos mais próximos de alcançar alguma forma de liberdade.