Tudo sobre os jogos de poder (e as polêmicas) dos trajes olímpicos
Looks da cerimônia de abertura da Tóquio-2020 e modelos usados nas competições expõem o que nações têm de melhor, mas também revelam conflitos geopolíticos, misoginia e nacionalismo
Engana-se quem imagina que os trajes de gala desfilados nesta sexta-feira (23) no Estádio Olímpico de Tóquio pelas 203 delegações do torneio são simples roupas. Estão mais para casca visível de uma história intrincada de polêmicas, misoginia e jogos de poder que cerca o guarda-roupa esportivo dos últimos anos. Se a cerimônia de abertura da Olimpíada marcada para esta manhã – já noite no Japão – serve de vitrine para os países mostrarem, por meio da moda, o que têm de melhor, ela também é retrato da geopolítica e do lugar que cada nação quer ocupar no imaginário do mundo.
A começar pelos anfitriões da festa. Ainda que o país se apresente na vanguarda da inclusão por meio dos trajes desenhados pela varejista Aoki, os primeiros criados para servir tanto aos atletas olímpicos quanto aos paralímpicos, a memória dos dias de glória suscitada por essas roupas que resgatam os looks da Olimpíada de 1964, sediada no país, não teriam poder de apagar a recente.
Em fevereiro passado, o diretor do comitê organizador local e ex-primeiro-ministro, Yoshiro Mori, teve de renunciar ao cargo após o vazamento de falas misóginas ditas por ele em uma reunião.
O executivo disse aos colegas organizadores que a falta de mulheres no comitê se justificaria pelo fato de elas falarem “demais”. “Se uma mulher levanta a mão para falar, as outras se sentem compelidas a fazer o mesmo. Então, temos de garantir que o tempo delas seja monitorado ou elas não param, o que é irritante”, disparou, contradizendo a tônica de país do futuro vendida ali.
Looks da delegação japonesa desenhados pela varejista AokiDivulgação
Os números do Fórum Econômico Mundial, divulgados em março, ilustram o que está por trás das falas absurdas de Mori. O Japão ocupa a 120a posição no ranking de desigualdade de gênero, num levantamento feito com dados de 156 países. Lá, as mulheres estão em 37% dos cargos no mercado de trabalho, mas em apenas 14% das vagas de liderança corporativa, a despeito da meta imposta em 2015 pelo atual primeiro-ministro Shinzo Abe de que, em 2020, seriam 30%.
Não seria correto, entretanto, jogar toda a culpa da misoginia escancarada nas costas do Japão. As olimpíadas e os campeonatos mundiais, independentemente do lugar onde ocorram, são espelho do policiamento sobre o corpo feminino impetrado em posições retrógradas das federações esportivas.
Na última segunda-feira (19), por exemplo, a Federação Europeia de Handebol aplicou uma multa de 150 euros a cada jogadora da seleção feminina de handebol de praia da Noruega porque elas se recusaram a usar biquínis na partida que lhes garantiu o terceiro lugar no campeonato europeu. De acordo com a cartilha da federação, os homens devem usar shorts, e as mulheres, uma peça justa com corte “em ângulo para cima em direção à perna”.
Os códigos não são tão diferentes na Federação Internacional de Badminton, que, há dez anos, implementou uma regra para obrigar as jogadoras a usar vestidos ou saias nas competições. Indo além, a Federação Internacional de Futebol, a poderosa FIFA, chegou a eliminar a seleção feminina do Irã durante as eliminatórias para as Olimpíadas de Londres porque, em um jogo contra a Jordânia, elas usavam véu islâmico. Saíram chorando do campo.
Jogadoras de futebol do Irã saem chorando do campo em Amã, em 2011, após eliminação pela FIFA. O motivo? Usavam véu.Foto: Mehdi Toutunchi/AFP/GettyImages
A influência do patriarcado, curiosamente, não passou incólume pela régua dos uniformes japoneses. De todas as delegações, a do Japão é uma das poucas que colocou saias – neste caso, com comprimento abaixo dos joelhos – no guarda-roupas das atletas do país. O detalhe, sutil, encontra eco na ideia de fundir o tradicionalismo e a modernidade que a cultura japonesa emula desde a reconstrução do pós-guerra, num esforço de ampliar o que se convencionou chamar soft power.
Essa expressão é usada para definir o conjunto de emblemas, muitas vezes estereotipados, que identifica uma nação e pode ser usado como cartão postal para vendê-la. O soft power da China, envolta numa escalada de silenciamento imposta à vizinha Hong Kong e no uso da força para repreender a liberdade de expressão, é a força que ela representa no contexto econômico mundial.
Atletas apresentam uniforme da China para as Olimpíadas de Tóquio-2020 desenhado por TIm Yip.Foto: Lintao Zhang/Getty Images
Em vez de colocar sua indústria em primeiro plano, optou, espertamente, por mostrar que o país não está mais para chão de fábrica do Ocidente. As roupas de sua delegação, batizadas de “trajes de dragão campeão”, foram desenhados pelo figurinista Tim Yip, vencedor do Oscar pela direção de arte do filme O Tigre e o Dragão, cuja assinatura serve de recado ao mundo sobre o potencial criativo de seus estetas e a ambição de lhes ver ganhar espaço na cultura pop.
Os looks vermelho e branco têm corte reto, compostos de calça e casaco, e reinterpretam a túnica-mao, só que ao contrário do abotoamento comum ao traje histórico, o fecho central é uma linha vermelha que vai até o colarinho, arrematado com uma haste.
Mas o tigre asiático terá de lidar com o fato incômodo de que a equipe da Índia, em protesto contra o país, decidiu desfilar sem uniforme oficial patrocinado. A delegação cortou relações com a empresa de materiais esportivos chinesa Li-Ning após o agravamento do conflito entre os dois países na fronteira do Himalaia, na região que compreende a Caxemira.
Delegação da Índia posa com camisetas que usará na cerimônia de abertura após boicote à China.Foto: Getty Images
O saldo de dezenas de mortos no vale de Galwan, ainda em 2020, resultou numa campanha de boicote dos indianos que, agora, ofusca o marketing de uma China que almeja sediar mais uma vez os Jogos Olímpicos.
Sem calças padronizadas, os atletas indianos têm à disposição apenas uma camiseta em comum, que pesca da bandeira do país as cores azul, laranja e branca. Não que a simplicidade seja um problema.
O espírito olímpico ultrapassa qualquer barreira de conflito cultural na escolha do Cazaquistão. Uma das maiores estilistas do país, Saltanat Baimukhamedova, dona da grife Salta, reuniu os atletas de cidades rivais do país para criarem juntos um conjunto de uniformes com diferentes tons de azul.
Ela abriu mão de sua tesoura para ouvir os atletas e entender as necessidades e os gostos de cada um, dividindo o processo criativo desde a escolha dos tecidos até a modelagem das peças.
Atletas do Cazaquistão posam com looks criados em parceria com a marca Salta.Foto: Divulgação
Foi por meio de um atleta que outro país, a Libéria, ganhou um dos uniformes mais bonitos e comentados desta Olimpíada. Machucada pelo descalabro de guerras civis que dizimaram milhares de pessoas, a nação, criada no século 19 em um intento dos Estados Unidos de fundar um território para onde pudesse deportar ex-escravos afro-americanos, ganhou desenhos de Telfar Clemens.
Ele próprio filho de pais liberianos, o estilista foi contatado no início do ano pelo velocista Emmanuel Matadi, que convenceu Clemens a criar uniformes para a equipe. O pedido logo viraria cerca de 70 peças para todas as ocasiões da competição, entre leggings, shorts, calças, blusas de corrida e, claro, trajes de gala.
Sobram modelos para a pequena equipe desacreditada pelo mundo, que agora ostentará os cortes transversais, as linhas que emolduram a bandeira liberiana e uma estrela desconstruída pelas mãos de um dos estilistas mais bem quistos pela nova geração de fashionistas americanos. “Eles [os atletas] disseram, ‘enlouqueça’, então eu fiz”, disse o designer ao jornal The New York Times.
Atletas usam uniformes desenhados por Telfar Clemens para a delegação da Libéria.Jason Nocito/Reprodução
PORTA-BANDEIRA
O verniz patriota é uma constante na maioria dos trajes olímpicos, tanto os que aparecem nas cerimônias de abertura e encerramento quanto aqueles criados para o dia a dia dos atletas na vila olímpica e nas competições propriamente ditas. O Brasil desponta como exemplo.
Na passarela de hoje, e até o final dos Jogos, os competidores vestirão signos que remetem à natureza e à bandeira brasileira. Além das peças esportivas tingidas de verde, azul e amarelo, confeccionadas pela marca esportiva chinesa Peak Sports, as cores foram coladas nos uniformes casuais lançados pela Riachuelo, outra varejista patrocinadora do time brasileiro.
Nos pés, os atletas calçam um dos maiores ícones do ideal de “soft power fashion” deste lado de cá do Atlântico: os chinelos de borracha Havaianas. A marca do grupo Alpargatas é unanimidade no segmento de “flip flops”, como são chamados os calçados de tira, e amealham clientes pelo mundo desde que a empresa tornou o mercado internacional um dos grandes focos do negócio.
Traje completo da Wöllner, combinado às Havaianas, que será desfilado na cerimônia de abertura da Tóquio-2020Foto: Divulgação
Os trajes de gala desta cerimônia são um capítulo à parte. A grife carioca Wöllner venceu um duelo de grifes – não reveladas – promovida pelo Comitê Olímpico Brasileiro (COB), que elegeu a marca entre outras que submeteram seus projetos para a organização do Time Brasil. Desconhecida pela ala da costura independente, a marca tem seus negócios concentrados na confecção de roupas casuais e, principalmente, na produção de acessórios customizados para empresas.
À ELLE, o fundador da etiqueta e ex-velejador, Lauro Wöllner, explica que os conjuntos de bermuda e camisa estampadíssimos remetem à fauna e à flora amazônica, mas também homenageiam a sede desta Olimpíada ao relacionar o desenho do pirarucu à carpa, peixe que é signo de renascimento na cultura japonesa.
“Fizemos pesquisas nas formas dos quimonos e na imagem das carpas, imaginando modelos de roupas que carregassem essa energia do Brasil, essa coisa de praia e aura solar”, diz Wöllner, otimista com a recepção dos modelos pela audiência.
O ginasta Arthur Nory posa com o look inspirado nas carpas japonesas e na Amazônia para os Jogos Olímpicos.Divulgação
Para o Brasil, os Jogos devem servir quase como uma faxina temporária na imagem negacionista do governo sobre a pandemia de coronavírus e a devastação dos biomas que o mundo se acostumou a ver no noticiário recente. A bandeira e as medalhas nos pescoços, segundo Wöllner, podem suplantar qualquer pessimismo.
“Que país tem vergonha de levantar a própria bandeira? Devemos parar de olhar pequeno e ver o cenário maior. Daqui a alguns dias, quando começarmos a torcer, todos estaremos levantando-a. Sem querer politizar, quis transmitir [com as roupas] o que de bom a gente merece.”
A camisa, que carrega o nome da marca no peito e tem fundo tingido de roxo sobre uma base de algodão, é leve, a pedido do COB, para que os atletas aguentem o calor do verão japonês. Mas, apesar da boa vontade e assim como ocorreu com os trajes criados pela estilista Andrea Marques para a Rio-2016, os da Wöllner foram achincalhados pelo tribunal da internet e comparados ao guarda-roupa espalhafatoso do personagem Agostinho Carrara, do seriado A Grande Família.
Eles não foram as únicas vítimas desse tipo de patrulha estética. Quando a marca esportiva russa Bosco concebeu os uniformes da equipe da Espanha para Londres-2012, viu-se numa enrascada por causa das peças com elementos gráficos sinuosos, colados em roupas vermelhas e amarelas, apontadas pelos espanhóis como uma tentativa frustrada de recriar a roupa de toureiro.
Para a Tóquio-2020, o comitê trocou a varejista russa pela grife esportiva espanhola Joma Sport, que concebeu os trajes da delegação com traço minimalista. As linhas diagonais dos fraques foram suavizadas e, na cor branca, compuseram looks monocromáticos quando combinados ao vestido vermelho com laço para as mulheres e ao conjunto de calça marinho e blusa vermelha para os homens.
O que não fez sentido em 2012 e foi corrigido agora, quase uma década depois, foi a escolha por uma marca estrangeira, um tiro fora do alvo tendo em vista que a Espanha é celeiro de talentos do design e dona de um mercado de moda pujante que vai muito além da Zara.
HERÓIS DA MODA
O apreço por nomes icônicos do estilo nacional dá a tônica das escolhas dos comitês organizadores de cada delegação. Numa das mais longevas parcerias entre moda e performance, a Emporio Armani assina mais uma vez os looks da italiana, depois de criar os uniformes do país para as olimpíadas de Londres e do Rio, além de manter parceria com a seleção de futebol.
“Estou encantado com essa parceria renovada, que confirma minha conexão profunda com o esporte”, disse o estilista Giorgio Armani em comunicado.
As roupas carregam as três cores da bandeira nacional, reproduzidas no formato gráfico da versão japonesa de um desenho de sol, com três linhas diagonais. Dentro das roupas, há a inscrição Fratelli d’Italia (irmãos da Itália), retirada do hino nacional.
Modelos em campanha de divulação da Emporio Armani de seus trajes olímpicos.Foto: Divulgação
Outro ícone da moda que assinou os trajes do time de seu país foi a Lacoste. A delegação da França emulará os quimonos japoneses em parcas, usadas como sobreposição dos looks compostos por bermuda, shorts, calça e a indefectível camiseta polo com o símbolo do jacaré.
Um dos pontos fortes desta coleção é a mistura rica em grafismos, cores e detalhes dos aviamentos que tiram a obviedade dos trajes e ainda prestam homenagem aos dois países, o da marca e o do anfitrião.
A francesa Lacoste criou os looks da delegação de seu país com conjuntos tricoloresFoto: Divulgação
A delegação do Reino Unido, por sua vez, não usará nesta Olimpíada o athleisure de Stella McCartney, que assinava os looks dos britânicos e, agora, cede lugar à grife Ben Sherman. Na toada nacionalista que permeia boa parte dos trajes exibidos nestes Jogos Olímpicos, as cores e as linhas da bandeira foram desmembradas nas peças de pegada sessentista.
No forro das jaquetas, vê-se o leão símbolo nacional e o escrito “força através da unidade”, cujo tom se conecta à saída do Reino Unido da União Europeia, em um brexit acordado em janeiro de 2020 após quatro anos de negociações traumáticas tanto para o bloco quanto para os britânicos. O recado não soaria mais óbvio.
Desenhados pela marca Ben Sherman, os looks do Reino Unido pedem “união”.Foto: Divulgação
Na mesma toada moderninha viajou a delegação do Canadá, para exibir ao mundo uma via estética streetwear que, se por um lado é onipresente nas ruas, nunca havia levado os contornos de roupa urbana aos eventos esportivos.
O país fechou parceria com a loja de departamentos Hudson’s Bay para apresentar uma coleção incomum de jeanswear, cujas jaquetas receberam pichações e causaram um misto de horror e alegria entre os canadenses pelo teor pouco convencional usado na criação das roupas.
Jaqueta do guarda-roupas urbano desenhado pela Hudson’s Bay para a delegação do Canadá.Foto: Divulgação
Poucas nações, porém, expõem a veia nacionalista tão ao pé da letra como faz os Estados Unidos. Em um espetáculo calculado de autossuficiência, os americanos ostentam na cerimônia e em todos os eventos desta Olimpíada as roupas criadas e produzidas pela Ralph Lauren.
Talvez a mais americana entre as grifes do país, ela costurou o jogador de polo no peito dos atletas em roupas que remetem à indumentária preppy, a subcultura jovem associada aos uniformes das escolas elementares frequentadas pela elite dos EUA.
No melhor estilo Gossip Girl, a delegação passeará com ternos engomadinhos, cujos materiais carregam uma tecnologia de resfriamento pioneira, a RL Cooling, que regula a temperatura do corpo a depender da temperatura do ambiente.
Atletas exibem o traje desenhado pela Ralpha Lauren que leva a tecnologia de resfriamento RL Cooling.Foto: Divulgação
“À medida que nossos atletas olímpicos e paralímpicos se destacam no cenário global neste verão, estamos orgulhosos de ter o apoio contínuo de uma marca cuja abordagem cuidadosa sobre como podem servir aos nossos atletas beneficia exclusivamente a equipe dos Estados Unidos”, disse o vice-presidente da área de produtos para consumo do comitê americano, Peter Zeytoonjian.
Vale grafar o “exclusivamente” da frase. Afinal, que outra palavra caberia melhor para definir o subtexto desse jogo de poder que é a passarela olímpica?
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