A importância de falar sobre transparência na moda
Em meio à pandemia, crise econômica e colapso climático, 40 grandes marcas e varejistas divulgam suas práticas e processos por meio do Índice de Transparência da Moda Brasil 2020.
Foi divulgada nesta sexta-feira (27.11) a mais recente edição do Índice de Transparência, um relatório que analisa em que medidas grandes marcas e varejistas do mercado têm publicado sobre seus processos e práticas sociais e ambientais ao longo de toda sua cadeia de valor. A iniciativa é encabeçada pelo Fashion Revolution, organização global que busca uma moda justa para as pessoas e para o planeta.
É que transparência é algo ainda escasso nessa indústria. Se você entrar no site de sua marca favorita agora e procurar informações sobre quanto a costureira recebeu por determinada peça e quais recursos naturais foram usados em cada etapa produtiva, é provável que não encontre. Por isso, é importante a ação de organizações independentes nesse sentido.
Em 2020, o Índice chega à sua terceira edição no Brasil, com avaliações de 40 grandes marcas e varejistas do mercado nacional. São 221 indicadores que cobrem tópicos relacionados a condições de trabalho, trabalho escravo contemporâneo, igualdade de gênero, igualdade racial, emissões de gases de efeito estufa, descarte de resíduos têxteis, combate da crise climática, entre outros. A escolha de analisar grandes empresas tem uma explicação: “é onde se encontram os maiores impactos, os mais negativos”, diz Eloisa Artuso, coordenadora do projeto no Brasil e diretora educacional do Fashion Revolution.
O relatório não é de sustentabilidade, tampouco um ranking de quem ganhou ou quem perdeu. “O Fashion Revolution não incentiva e nunca incentivou [as marcas] a se colocarem como vencedoras; a gente disponibiliza os gráficos em faixas de porcentagem para entender o padrão de comportamento”, explica a diretora. Para a instituição, “a transparência sozinha não representa o tipo de mudança sistêmica e estrutural que queremos ver dentro da indústria da moda, mas ela ajuda a revelar as estruturas em vigor para que possamos entender como mudá-las.”
Dentre os nomes pesquisados em 2020, a pontuação média foi de apenas 21%. Nas faixas de pontuação acima de 50%, aparecem C&A (74%), Malwee (68%), Renner (59%), Youcom (59%), Hering (57%), Havaianas (55%) e Osklen (51%). Vinte marcas estão na faixa de 0-10%, e as outras 13 (Brooksfield, Carmen Steffens, Cia. Marítima, Colcci, Colombo, Di Santinni, Fórum, Leader, Lojas Avenida, Lojas Pompéia, Moleca, Olympikus e TNG) zeraram.
Destaques do Índice de Transparência da Moda Brasil 2020
- Clima: Mesmo com a indústria da moda sendo responsável por cerca 4% das emissões totais de gases de efeito estufa (GEE), conforme a McKinsey, apenas 5% das empresas analisadas publicam anualmente a pegada de carbono ou as emissões de GEE de sua cadeia de fornecedores – é nessa etapa que se concentra a maior proporção das emissões de carbono dentro do ciclo de vida de uma peça de roupa.
- Gênero: 75% da rede produtiva no Brasil (ABIT) e 80% no mundo é composta por mulheres. Contudo, elas ainda são minoria em cargos de liderança. Recebem, em média, 20% a menos que os homens ocupando os mesmos cargos (IBGE) e, na indústria da moda. são poucas marcas (apenas 30% no Índice de 2020) que divulgam suas políticas para equiparação salarial em relação a seus funcionários diretos e indiretos. O número cai drasticamente para 8% quando analisado como essas políticas serão colocadas em prática.
- Raça: O racismo estrutural ainda dinamiza as relações sociais e trabalhistas e gera uma diferença salarial de 31% entre brancos e negros (IBGE). Apenas 18% das analisadas no Índice 2020 publicam ações com foco na promoção de igualdade racial entre seus funcionários; 10% publicam a distribuição por cor ou raça dentro da empresa, considerando diferentes níveis hierárquicos, e nenhuma publica as diferenças salariais sob a perspectiva racial dentro da empresa.
A pandemia escancarou a necessidade de transparência na moda
Com a pandemia do novo coronavírus, ficou mais claro como a indústria da moda opera e sustenta suas estruturas de poder. A crise econômica desencadeada afetou toda a indústria têxtil e do vestuário, que está entre as 40 atividades mais impactadas negativamente no Brasil, conforme o Diário Oficial da União (DOU). Porém, os mais vulneráveis são os que mais sofrem: diversas grandes marcas cancelaram pedidos prontos ou em andamento logo no início da pandemia, deixando à deriva, sem salário e renda, seus trabalhadores e trabalhadoras.
Essa quebra de contrato e irresponsabilidade por parte das grandes empresas têm relação direta com suas práticas de compra. Elas são a forma com que as marcas se relacionam com seus fornecedores – aqueles terceirizados – e referem-se a prazos de entrega, pagamento e produtividade. Com a carência de transparência, pouco sabemos como é essa intermediação, mas com a pandemia não restaram dúvidas que elas privilegiam os interesses das grandes empresas. “Muitas dessas grifes usaram cláusulas de força maior para cancelar seus contratos”, conta Artuso.
O Índice 2020 também permite visualizar o cenário: apenas 12% das empresas divulgam suas políticas de pagamento de fornecedores, com prazos máximos estipulados, enquanto somente 8% publicam o percentual de pagamentos aos fornecedores realizados dentro do prazo e de acordo com os termos acordados, dentre as 40 analisadas.
Colocando a transparência em prática: conheça a tecnologia blockchain
Já imaginou poder ter transparência sobre o percurso da sua peça de roupa e saber quanto cada costureira recebeu por ela? A Alinha já. O instituto, co-fundado em 2014 por Dariane Santos, empreendedora social, implementou em 2018 o blockchain em suas atividades. A tecnologia surgiu em meados de 2008 com as criptomoedas, para garantir rastreabilidade sem a mediação obrigatória de uma instituição financeira. “Você não precisa de nenhum intermediador, as próprias pessoas que fazem parte daquela transação confirmam cada informação, então é uma forma descentralizada de garantir a confiança”, explica Santos.
A Alinha conseguiu, em 2017, aporte financeiro do antigo Instituto C&A (hoje Laudes Foundation) para tirar do papel o blockchain. Hoje já são mais de 20 oficinas de confecção contempladas. Alicia Vargas, costureira que utiliza a tecnologia em seu negócio, relata que a implementação ajudou a melhorar sua estrutura e valorizar seu trabalho. “Tem mais transparência porque você já vê o preço da peça, a valorização da mão de obra, o preço justo, e ajuda a estruturar melhor a oficina para todo o processo de produção”, conta.
A dinâmica funciona da seguinte forma: os trabalhadores das oficinas recebem notificações, normalmente em seus próprios celulares, para confirmarem uma informação que a marca aponta; se todos confirmarem, uma TAG com um código é gerada, automaticamente gravada no sistema da Alinha e disponibilizada para a marca, que a insere em suas peças e permite o rastreamento por parte do consumidor. “Se você comprou uma blusa, você vai saber qual foi o ciclo de produção, quanto gerou de renda, quem foram as pessoas envolvidas, quanto ela [costureira] ganhou, qual serviço ela fez”, conta Santos.
Etiqueta com rastreabilidade do projeto AlinaFoto: Divulgação
Vargas conta que com o blockchain pode saber o preço, prazo de entrega, pagamento e quantidade, mas ainda assim não tem todas as informações da marca contratante. Isso mostra como os próprios trabalhadores não têm total transparência sobre os processos em que estão envolvidos. “Depois que sai a produção da minha oficina não sei a margem de lucro, por quanto que é vendida, nem onde”, compartilha a costureira.
Cuidado com o greenwashing transparente
A transparência é uma porta de entrada, mas quando entramos não temos certeza do que veremos na casa. Santos explica que “é muito raro as marcas que querem mostrar esse nível [elevado] de transparência”, porque muitas vezes o que se revela são mazelas sociais e ambientais de uma indústria da moda cheia de problemas a serem resolvidos.
Muitas empresas podem usar a transparência como um greenwashing (prática que ocorre quando empresas usam discursos de sustentabilidade falaciosos). “Acontece das marcas se colocarem como as mais sustentáveis, as mais transparentes do Brasil – e isso é mentira por que a gente analisa um recorte pequeno do país”, reforça Artuso.
Ter uma pontuação elevada no Índice de Transparência não significa ser é a mais transparente, tampouco realmente justa com a classe trabalhadora e preserva a natureza. Um exemplo palpável é a C&A: a gigante holandesa tem a maior pontuação no Índice brasileiro de 2020, mas cancelou pedidos já prontos ou em andamento de seus fornecedores em plena pandemia, deixou à deriva seus trabalhadores indiretos e integrou a lista do #PayUp – campanha que pressiona as grandes marcas a honrarem seus contratos e pagarem seus trabalhadores. Artuso questiona: “todas as [empresas analisadas] publicam políticas, contratos de relacionamentos, pagamentos, direitos trabalhistas… mas na hora da vida real, será que essas políticas apresentadas no site estão realmente sendo colocadas em prática?”
Para driblar o greenwashing, ela também destaca a criação de políticas públicas que olhem especificamente para a indústria da moda quanto às responsabilidades sociais e corporativas das empresas. “Deveria ser mandatório a publicação de um relatório de responsabilidade social e de sustentabilidade todos os anos”, sugere.
A falta de rastreabilidade da cadeia produtiva permite violações trabalhistas e de direitos humanos. Rastrear e garantir a integridade dos trabalhadores dessa cadeia, além de urgente, é bem possível. “Não é uma barreira tecnológica”, comenta Santos, que só vê uma virada das grandes marcas quando houver uma mudança de pensamento e objetivo, para além do lucro a qualquer custo.
Índice de Transparência da Moda Brasil 2020
Uma análise de 40 grandes marcas e varejistas do mercado Brasileiro, classificadas de acordo com a quantidade de informações disponibilizadas sobre suas políticas, práticas e impactos sociais e ambientais.
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