E se… não existissem semanas de moda?
Marina Colerato nos leva a pensar em outros mundos e outras modas em sua nova coluna.
E se não existissem semanas de moda? Talvez essa pergunta soasse absurda dois ou três meses atrás. Hoje, com todos os desfiles e eventos cancelados por causa do novo Coronavírus, imaginar um mundo sem semanas de moda deixa de ser um desafio e se apresenta como realidade. A pandemia, vale dizer, nos forçou a mudanças abruptas no nosso cotidiano e o “e se”, que antes não ousávamos mencionar, tornou-se uma constante, colocando interrogações onde só havia certezas. Ficamos agora com a missão de encontrar alternativas, outras rotas, as dúvidas e possibilidades nos inundam.
Nessa toada, te convido a nunca abrir mão do questionamento que se faz presente. Pensar para além do que está posto exige um pouco de audácia, curiosidade e, claro, vontade de galgar outros caminhos. O “e se” será meu convite mensal para você pensar, comigo, outros mundos e outras modas. Essa vontade e desconforto, são, em partes, responsáveis por me fazer ocupar o lugar no qual me encontro hoje: à frente de uma mídia independente, o Modefica, abordando sustentabilidade a partir de uma perspectiva pró-interseccional. Me sinto grata e desafiada a expandir meus (inesgotáveis) questionamentos aqui na ELLE Brasil.
Voltemos agora ao nosso questionamento inicial para dar início a essa jornada: e se não existissem semanas de moda? Se uma temporada de respiro nunca foi permitida nem na imaginação, a pandemia chegou para impor um pouco de reflexão sobre a real necessidade de despender recursos, de todos os tipos, para manter um modelo de publicidade e negócios que veio do século passado.
O debate sobre a relevância das semanas de moda está longe de ser novo. Um ponto nevrálgico da questão tem viés econômico. Organizar um desfile dentro de uma semana de moda é extremamente custoso. Por outro lado, não há nenhuma pesquisa, nenhum dado confiável de que o investimento traga retorno. Para as marcas, é uma aposta sem contraprova. Depois, tem a viabilidade financeira do próprio espetáculo em si: o quanto os patrocinadores enxergam, e de fato têm, algum tipo de benefício em despejar somas consideráveis de dinheiro em eventos cada vez mais esmaecidos?
Porém, permitir-se imaginar o fim das semanas de moda extrapola questões meramente financeiras. Tem a ver com pensar sobre qual indústria da moda queremos, e estamos dispostos a construir, frente a tantas demandas urgentes da nossa década como trabalho digno, respeito à diversidade, às pessoas, à Terra e, acima de tudo, responsabilidade frente ao maior desafio enfrentado pela humanidade hoje, a crise climática. Demandas, vale a pena lembrar, que as semanas de moda nunca conseguiram endereçar de forma relevante.
Antes mesmo da pandemia forçar o cancelamento dos eventos do primeiro semestre, a discussão foi aquecida por uma pesquisa com profissionais da indústria da moda estadunidense, como editoras de moda e beleza, stylists, jornalistas, etc, feita pelo site americano Fashionista. Os resultados formam uma boa base argumentativa para afirmar que as semanas de moda são um desperdício de tempo e dinheiro, são nocivas para saúde mental das pessoas e que, apesar da mágica e da fantasia de alguns desfiles, muitos são completamente sem sentido.
O planeta está em chamas
“Nosso planeta está realmente pegando fogo”, afirmou um respondente. “Todos nós precisamos dar uma olhada no mundo e deixar de ser tão egoístas. Não acho que posso continuar apoiando a moda até ela encontrar uma maneira de existir com responsabilidade”.
É inegável que as semanas de moda se tornaram um estímulo ao excesso: excesso de desfiles, excesso de eventos, excesso de viagens, excesso de produção de coisas completamente inúteis e excesso de informação só para citar alguns. Esses excessos alimentam (e são alimentados) por uma indústria que já extrapolou todos os limites (podemos citar um caminhão de lixo têxtil sendo desperdiçado a cada segundo no mundo ou a emissão de 1.2 bilhão de toneladas de CO2, emissões 21 vezes maior do que as emissões dos setores de aviação e navegação combinados, como exemplos).
Frente à pressão incontornável, que se tornou latente com grupos como o Extinction Rebellion e seus movimentos XR Fashion Action e Boycott Fashion, há quem tente plantar algumas árvores ou reciclar o próprio lixo (o que era o mínimo, com a moda, se torna o máximo). Mas a realidade é que medidas do tipo não podem ser consideradas medidas de fato uma vez que não têm nenhum tipo de compromisso com a figura maior.
Um caminho muito mais interessante e efetivo dentro do sistema posto é o movimento feito pela Semana de Moda de Copenhagem, que apresentou, em janeiro deste ano, seu Sustainability Action Plan 2020-2022. A estratégia busca incentivar mudanças positivas na indústria da moda escandinava, reinventar o modelo de negócio da semana de moda e reduzir o impacto negativo do evento. Tanto o evento assumiu responsabilidades e metas quanto estipulou uma estratégia de ação para garantir que as marcas presentes estejam atuando para sustentabilidade ativamente.
No âmbito das emissões de gases de efeito estufa, o evento se comprometeu em reduzir sua pegada de carbono em 50% até 2023. Também colocou a mesma meta para marcas que queiram desfilar na semana. Elas precisarão rastrear sua rede produtiva e fornecedores para mapear e reduzir suas emissões de GEE. Outra meta importante está relacionada à redução de resíduo. Enquanto o evento tem a ambição de se tornar resíduo zero até 2022 há um chamado para as marcas interessadas em participar dos desfiles mostrarem como estão trabalhando para explorar outros modelos de negócio focados em circularidade e tratando questões como superprodução, excesso de estoque, etc.
Assumir compromissos, imputar responsabilidades e mensurar resultados. Se queremos apagar as chamas, não há outro caminho para ser percorrido para além de ir ao encontro do incêndio.
Comunidade e bem-estar
Porém, não é só a questão ambiental que salta aos olhos e merece reflexão quando falamos do fim das semanas de moda. Saúde mental é uma pauta subestimada, mas necessária se temos qualquer intenção de falar sobre bem-estar do planeta e das pessoas. Na pesquisa do Fashionista, 58,5% dos respondentes concordam de alguma forma que a semana de moda é prejudicial à saúde mental. E isso não tem a ver com o trabalho, mas sim com o ambiente: “você pode facilmente se sentir tão inútil durante a semana de moda, e pode virar meio que um sentimento destruidor”, dizia uma das respostas dentre várias outras que relatam sentimentos de inferioridade, ansiedade e falta de pertencimento.
Além de todo o stress de “receber o convite”, há também uma hierarquia de importância para lidar com: quem se senta na fila A ou B ou simplesmente fica de pé. Dependendo do lugar que te dão, você vale mais ou menos. Por trás das passarelas, quem entra no camarim e quem não entra também se torna uma disputa de classe. Coisas tranquilas de serem toleradas uma vez ou outra se transformam em um fardo pesado e nocivo depois de uma semana inteira, duas vezes por ano todos os anos.
Nesse sentido, nos permitir pensar para além das semanas de moda é possibilitar a ideação de uma comunidade de moda, de fato. É sobre criar espaços mais acolhedores e realmente possíveis de se tornarem campos de trocas importantes e positivas. Temos falado tanto sobre comunidade e colaboração nessa indústria, mas praticado pouco os valores que sustentam estas duas ideias. A prova disso é que, caso contrário, as pessoas não se sentiriam uma droga dentro do que pode ser considerado o evento mais importante do setor em vários lugares do mundo.
Quando falo de comunidade, é importante dizer que falo de uma comunidade ampla que inclui fornecedores, costureiras e costureiros, funcionários. Com a crise do novo coronavírus, ficou claro como muitas empresas têm muita dificuldade em dar suporte à sua rede em tempos difíceis, quem dirá olhar com atenção e ter responsabilidade com quem faz as roupas. Demissões em massa de um lado e fornecedores completamente endividados por pedidos prontos cancelados, com milhares de costureiras e costureiros sem salário, de outro. Isso nos faz questionar o quanto é preciso balancear a imagem e o marketing com a criação e produção. Um papo tão velho quanto as semanas de moda em si, eu sei. Mas o coronavírus chegou para escancarar que a estruturação de uma indústria mais resiliente no âmbito econômico é urgente e isso passa por avaliar necessidades, estratégias e para onde vai o dinheiro.
Muitas outras possibilidades
Desfiles de moda acontecem há mais de um século. É natural que nosso cérebro esteja condicionado a pensar neles como única possibilidade interessante de se apresentar uma coleção. Mas a verdade é que existem várias formas de fazer isso. Experiências imersivas, showrooms para coleções totalmente comerciais, experimentações virtuais. Quando a varejista C&A lançou sua coleção arco-íris em parceria com a Pabllo Vittar, ela não fez um desfile, mas optou por chamar a própria Pabllo para um pocket show aberto na R. Augusta, em São Paulo. Há alguns anos, a estilista Fernanda Yamamoto, que desfilava em temporadas intercaladas na SPFW, decidiu abrir seu ateliê para as pessoas interessadas em conhecer a coleção e seu processo produtivo e assim aproximar público e marca. Ou seja, existem opções e formas realmente vanguardistas se estivermos dispostos a quebrar com as tradições. Afinal, a moda não é sobre isso?
A partir de uma provocação do antropólogo, sociólogo e filósofo Bruno Latour, fiquei pensando sobre as atividades que não gostaria de ver sendo reativadas pós-pandemia, como e por quê. Estudando, pesquisando e escrevendo sobre questões ambientais, redes produtivas e gênero há seis anos, é claro que as atividades que me vêm à mente invariavelmente tangem essa tríade. Mas para ampliar a reflexão e ouvir outros pontos de vista, resolvi chamar algumas pessoas para compartilhar a visão delas acerca das provocações do Latour. O fim das semanas de moda apareceu na primeira resposta. Um indício de que um mundo novo talvez não possa conviver com elas.
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