TOUCH-SCREEN-ME
Em sua coluna de estreia, Erika Palomino reflete sobre infomania, relações e consumo intermediados por telas.
No ultrapassado mês de janeiro, a marca internacional de luxo Balenciaga lançou sua coleção numa campanha feita de vídeos em que “modelos” aparecem como apresentadores de telejornais distópicos. Ali, a “moda” ganha um contorno de “vida real” tão irreal quanto factível – tão real e palpável quanto a alta-moda, em relação ao acachapante noticiário que invade nossas telas: números, projeções, gráficos, além de cenas que nem os piores filmes de cinema-catástrofe poderiam produzir, com “líderes” bizarros protagonizando barbáries políticas, sociais e culturais. A mídia e, com ela, os jornalistas, debatedores, âncoras (até o William Bonner) voltam a ocupar nossas conversas e nossa vida.
Essa campanha da Balenciaga ilustra alguns tópicos. Vejamos. “Uma imagem vale mais que mil palavras”, já dizia o memorável filósofo chinês Confúcio. Nessa inversão absoluta imposta pela pandemia, nós, os zettabytes sapiens – que vivemos bombardeades e acossades por umas 5 mil imagens por dia – tivemos que voltar a trabalhar com a palavra. E se você está lendo esse texto, e se esta “revista” está de volta (longa vida à nova Elle!), é porque a palavra importa. O meio é a mensagem, já dizia outro confúcio, Marshall McLuhan, visionário criador da aldeia global em que nos encontramos correntemente.
Isolades, sem encontro, sem abraço, tocamos telas. Nelas, por elas, consumimos, vemos, lemos, vivemos. Post, post, post, stories, memes, tiktoks e quetais. Streaming de vídeo, de áudio, podcasts, existência on demand. Sob demanda, reagimos. Lives, vivo ou ao vivo, quando penso, e logo existo, na live dos outros. Vivo a vida dos outros e comento, claro, e também revejo no YouTube, dou play no celular. Reposto. Compartilho, salvo. Pra ver se alguma hora alguma coisa faz sentido. A sobrecarga vem cada vez maior e, somada ao noticiário da peste, produz a infomania, “termo utilizado para descrever o crescente distúrbio enfrentado por grande parte da sociedade: a dificuldade de se desconectar da internet e o consumo irrefreado de informações indistintas”. A infomania é o novo FOMO, né? Alguém já disse isso –não foi o Confúcio, talvez o Contardo, mas talvez não; tenho visto tanta coisa… Minha infomania anda bombando: tem dias em que só paro quando choro.
“Fear of missing out”, o velho medo de estar perdendo alguma coisa ou algo, quando nos sentimos excluídos do rolê, e só nos resta acompanhar pela internet, ficou tão datado quanto aquele janeiro pré-covid, quando aquele era todo o medo que tínhamos. De lá pra cá, tantas coisas mais perdemos, tanta gente mais. “São dois pra lá, dois pra cá”, e perdemos também Aldir Blanc, filólogo brasileiro.
Tela é superfície. “Se antes não sabíamos que partilhamos as superfícies do mundo, o sabemos agora”, escreve outra filósofa, a sempre-genial Judith Butler, em Traços Humanos nas Superfícies do Mundo, da N-1 Edições, falando em como, ao descobrir que podemos nos contaminar ao tocar objetos ou pessoas, nos aproximamos da doença e da morte. “Nesse sentido, as superfícies do mundo nos conectam, no limite elas estabelecem que somos igualmente vulneráveis”, ela prossegue. “É essa condição de contato e de encontro ao acaso, de roçar uns nos outros ou em qualquer coisa nos rodeando, que se tornou potencialmente fatal.” Ela fala isso e eu penso no Carnaval. “A superfície que uma pessoa toca carrega o traço dessa pessoa, hospeda e transfere esse traço, afeta a próxima pessoa cujo toque pousa ali”. Ela fala isso e eu penso em roupa, em afago e afeto, em afecção. E nos “bons encontros” sugeridos por Espinosa, outro filósofo, esse das felicidades e das éticas.
Penso em corpos, em corpas, em roupas, e penso também nas peles de papel, que é como o xamã Davi Kopenawa se refere aos livros, no lindíssimo e tristíssimo A Queda do Céu. No nevoeiro desses pensamentos, nessas sobreposições atordoadas dos dias e insônias que estamos atravessando, penso no papel também do que vestimos, na relevância e no que tem de concreto tudo isso para os dias de hoje. Aqui volta a Balenciaga.
“O objeto conecta pessoas de modos invisíveis, às vezes indecifráveis; logo, pessoas são interconectadas e não apenas indivíduos isolados”, explica Butler. No capitalismo, o valor do objeto, transformado na tal da mercadoria, “é determinado pelo valor que os consumidores se dispõem a pagar”, ela cita a filosofia marxista. Quanto a gente está disposta a pagar? E pelo quê?
Vamos continuar consumindo, isso é certo. Mas de diferentes formas. Muitas vezes, sem tocar em nada. Comprando também por meio de telas. Nosso cérebro vai continuar buscando recompensas, que estarão nas balenciagas que cabem no tamanho de nossos novos bolsos. Demanda, desejo e alienação, já dizia Lacan. E a moda, aquela que vive do desejo, terá que se adaptar, porque agora sonhamos diferente: um olho aberto, outro fechado. Estamos tendo que reaprender – também – a sonhar. E qual a primeira coisa que você vai comprar? Vai pedir para descer todos os jeans da loja? Investir num salto? Quem sabe um delineador para usar com sua máscara? Desejos objetificados ou mais máscaras?
A moda, que bom, não se encontra tão somente na Balenciaga, muito pelo contrário (veja mais na “Belanciege” de Hito Steyerl, por exemplo). Está na forma e nos códigos como nos relacionamos, em como comunicamos e em como nos comunicamos, não apenas e muito menos em como nos vestimos. E as modas e os modismos, e os comportamentos, e nossas relações, inter-relações e conexões traduzem nossas sociedades, refletem o espírito dos tempos.
O Zeitgeist, nosso amigo mais volátil, anda meio desenxabido, verdade, com as fronteiras algo borradas. Mas se olharmos bem pela tal da neblina e nas tantas telas pelas quais interagimos hoje, conseguiremos ver, lá no fundo, um céu azul como o deste feriado.
Para ler conteúdos exclusivos e multimídia, assine a ELLE View, nossa revista digital mensal para assinantes