Por que amamos tanto Elena Ferrante?

A vida mentirosa dos adultos, nova obra autora italiana, comprova que a "febre Ferrante" está longe de passar. Nesta entrevista, a psicanalista e crítica literária Fabiane Secches analisa simbolismos e ambivalências presentes nos livros da autora que arrebata leitores pelo mundo.


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Ilustração: Victor Aguiar Magalhães



O lançamento na Europa de A vida mentirosa dos adultos (editora Intrínseca), no final do ano passado, foi digno daqueles de J. K. Rowling, a autora da saga de Harry Potter, nos idos anos 2000. Vitrines cobertas com panos para esconder a capa, cronômetros marcando a contagem regressiva para a hora do lançamento, jornalistas recebendo o livro de madrugada, criptografado e com senha, discussões sobre as obras da autora em clubes e livrarias chamadas de “Ferrante Night” em cidades como Turim, Milão, Nápoles e Roma.

O fenômeno em torno da autora italiana, apelidado nas redes sociais de “febre Ferrante”, parece não ter perdido nada da força desde o final da tetralogia napolitana de A amiga genial, há cinco anos. E com razão, já que este novo romance mantém o mesmo patamar de densidade psicológica e escrita bem construída dos outros trabalhos da autora, que coleciona fãs famosos pelo mundo, como Hillary Clinton, Patti Smith, James Wood, Michelle Obama, entre outros. Em maio, a Netflix já anunciou que a obra vai virar série, ainda sem data de estreia. Este mês, A vida mentirosa dos adultos chega ao Brasil pela Intrínseca exclusivamente para os assinantes do clube de livros da editora. Para o público em geral, ele será lançado nas livrarias brasileiras em setembro.

A história gira em torno de Giovanna, uma menina de família abastada e aparentemente bem estruturada, que sofre uma reviravolta quando vê o casamento de seus pais desabar e insiste em se aproximar de uma tia controversa, nada benquista pela família. Narrado em primeira pessoa, como nas demais obras de Ferrante, o livro faz um mergulho na adolescência da garota, dos 12 aos 16 anos, sem nunca escorregar em clichês ou saídas heroicas. Ninguém, no mundo de Ferrante, é facilmente definido.

Para entender as questões emocionais e literárias que perpassam por esta e pelas outras obras de sucesso de Elena Ferrante, conversamos com a psicanalista e crítica literária Fabiane Secches. Mestre e doutoranda em Teoria Literária e Literatura Comparada pela USP, Fabiane lançou recentemente o excelente estudo Elena Ferrante, uma longa experiência de ausência (editora Claraboia).

Mulher de oculos vestida de vermelho.

Fabiane Secches: “Ferrante nos oferece um espelho incômodo”.Foto Divulgação/Claraboia

Você escreve numa passagem do seu livro que “embora a escrita de Ferrante nos dê a impressão de que a leitura fluirá sem dificuldades, talvez seja com as nossas dificuldades internas que acabaremos nos confrontando”. Quais são os aspectos da obra da autora que fazem com que ela tenha essa densidade emocional?

Kafka dizia que um bom livro é como um machado capaz de quebrar o mar congelado que nos habita. Para mim, essa é uma boa imagem para falar de Ferrante e, por isso, vez ou outra, recorro a ela. Com suas personagens, Ferrante nos oferece um espelho incômodo, mas também nos convida a um exercício que considero mais radical e mais importante do que o de empatia: o de alteridade. Somos e não somos aquelas mulheres, então, se muitas vezes nos identificamos, também nos estranhamos aqui e ali, ampliando nosso campo sensível e, com isso, quem sabe, enriquecendo a nossa visão de mundo.

Qual é o simbolismo que você vê entre a ambiguidade que Ferrante costuma criar em suas personagens principais, que duelam entre a essência (o lugar de onde vieram) e a identidade forjada (após uma educação formal)?

Existe um embate entre a civilização e a barbárie, um embate entre o mundo dos livros (cultura) e o universo do bairro (violência). Esse embate tem algumas outras representações, como o uso do italiano culto versus o uso do dialeto, por exemplo. De um lado, está a desordem, a ilegalidade, a brutalidade, o caos. Do outro, a ordem, escola, a literatura, a escrita, o cosmos. Mas a obra de Ferrante desafia arranjos esquemáticos — é na sobreposição dessas duas esferas que se desenrolam seus enredos.

Em relação a Dias de abandono, você faz um paralelo entre a personagem Olga, que foi abandonada pelo marido, e A mulher desiludida, do conto de Simone Beauvoir, e também com Emma Bovary, de Flaubert. O que aproxima estas personagens?

Embora sejam personagens diferentes em muitos aspectos, são mulheres que se desorganizam e definham diante do “abandono”, cada uma à sua maneira. Olga teme pertencer a uma linhagem trágica de mulheres “sem amor” que acabam enlouquecendo ou morrendo, linhagem da qual Anna Kariênina, de Tolstói, e Dido, de Virgílio, também seriam descendentes. Então Dias de abandono é também o relato do esforço de Olga em não repetir os passos de suas antecessoras contra uma força quase irresistível que a empurre a fazê-lo.

Em Um amor incômodo, há uma filha tentando encontrar os vestígios da mãe, enquanto vive uma ambivalência entre não querer se parecer com ela e resgatar aquilo que as unia. Como você vê esta relação entre mãe e filha, tantas vezes conflituosa, no romance de Ferrante?

As relações humanas são sempre representadas com complexidade na obra de Ferrante. Isso significa que os afetos não se excluem, mas sim coexistem — muitas vezes, simultaneamente. Amor e ódio, atração e repulsa, admiração e inveja, carinho e hostilidade. Um pólo não nega o outro, por isso a história de Délia e da mãe Amália, em Um amor incômodo, ou de Elena Greco e da amiga Lila, na tetralogia napolitana, são ambivalentes.

O sentimento de estar à deriva, em situações limite, é uma constante nas personagens de Ferrante. São mulheres despedaçadas, portanto, as obras parecem permeadas de pessimismo. Por outro lado, elas não sucumbem, sempre sobrevivem. Como você vê este contraste?

Acho que eu diria que elas quase sempre sobrevivem. Se você tomar as jornadas de Délia, Olga, Elena Greco e Giovanna como referência, é verdade: são sobreviventes. Também Celina, a narradora do livro infantil de Ferrante, pode ser pensada dessa forma. Mas temos histórias de mulheres que morrem, que desaparecem, que, em alguma medida, acabam sucumbindo.

Quanto às mulheres que sobrevivem a situações limítrofes, acho que a autora faz um retrato bonito de resiliência, mas nunca de um caminho que seja triunfante. Qualquer posição mais afortunada acaba soando frágil, são conquistas que permanecem sempre em disputa. Gosto dessa via que não transforma suas personagens em heroínas exemplares, mas sim em mulheres vulneráveis, humanas — ainda que também sejam resilientes.

Você explica em seu livro que leitmotiv (motivo condutor) é o conceito que, na literatura, faz o autor repetir sempre o mesmo tema. Qual é, para você, o grande tema de Elena Ferrante?

A palavra que melhor define a obra de Ferrante, para mim, é ambivalência (do latim: ambas as forças). As relações humanas, principalmente as mais íntimas, são retratadas sempre de forma conflituosa, o que soa muito honesto, porque talvez espelhe o que encontramos em nossas vidas.

As personagens da tetralogia A amiga genial, Elena e Lila, parecem tão reais que a maior parte dos leitores acredita se tratar de uma história autobiográfica. Quais são os recursos que a autora usa para dar esta impressão?

São personagens tão verossímeis porque são complexas como as pessoas são fora dos livros. Ferrante faz uma construção detalhada de suas vidas: conhecemos as suas fragilidades, seus sentimentos e pensamentos menos nobres e mais sombrios, porque acompanhamos suas trajetórias errantes, seus medos, suas repetições. Mesmo a personagem de Lila, que é retratada por Elena Greco de maneira idealizada, ainda assim tem uma história marcada pela violência e pela hesitação. Conhecemos suas famílias, seus trabalhos, suas alegrias, paixões e perdas, ou seja: conhecemos o mundo que as rodeia e que as permeia. Com habilidade, Ferrante nos leva a crer que estamos diante de pessoas concretas e não de personagens literárias. Isso não acontece apenas com as protagonistas, mas também com Nino Sarratore, por exemplo, que já entrou para o rol de grandes personagens da literatura.

Pensando nos conflitos entre Elena Greco e Lila, na tetralogia napolitana, como você vê a construção da amizade entre mulheres na obra?

Em Frantumaglia, Ferrante diz que a amizade é um caldeirão de sentimentos bons e ruins em permanente ebulição. Gosto dessa definição, que traz uma perspectiva mais complexa — e menos idealizada — das relações humanas. Mesmo as relações mais longas e queridas são permeadas por conflitos. Observá-los me parece muito mais interessante do que negá-los, numa tentativa de assepsia.

Sobre o último livro, A vida mentirosa dos adultos, quais são as diferenças e aproximações que você vê entre a personagem adolescente Giovanna, que precisa lidar com a separação dos pais, e a dupla de meninas de A amiga genial?

Acho que a diferença mais óbvia é a classe social a que pertencem. Enquanto Elena Greco (a narradora de A amiga genial) nasceu e cresceu num bairro pobre na periferia de Nápoles, Giovanna (de A vida mentirosa dos adultos) é de uma região mais abastada da cidade. Filha de professores, teve uma infância cercada de amor e de cuidados, foi infinitamente mais protegida do que Elena — que conhece a violência desde muito cedo. Quanto à aproximação mais direta entre as personagens, tanto uma quanto a outra estão recontando suas histórias em busca de um fio narrativo que organize e dê sentido a experiências caóticas de vida. A escrita entra como um artifício precário, mas, ainda assim, importante para ambas.

Dois livros lado a lado.

O novo livro da autora italiana, em duas versões: com a capa que chega em setembro às livrarias (à esq.) e com a capa para o clube de livros da Intrínseca (à dir.).

Alguns críticos disseram que esta última obra de Ferrante estaria apenas repetindo as mesmas fórmulas de sucesso (e que, inclusive, deixa também em aberto a possibilidade de uma continuação). Você concorda com esta visão?

Concordo que, nesse novo romance, voltamos a encontrar elementos familiares ao universo de Ferrante. Mas não vejo mera repetição de fórmulas. Ao contrário, me parece que, ao longo de três décadas de publicação, a autora retoma temas e procedimentos de maneiras novas em projetos literários de naturezas e fôlegos diversos.

A que você atribui a “febre Ferrante“, este sucesso de público e de crítica da autora, cuja identidade ainda faz questão de preservar?

É difícil isolar e apontar apenas um fator que poderia, quem sabe, justificar um fenômeno de exceção. Mas creio que Ferrante consegue escrever, com habilidade e sem simplificações, sobre algumas questões muito relevantes do nosso tempo. Seus livros sondam diferentes temas relacionados com a experiência de ser mulher no mundo de hoje. Maternidade, amizade, casamento e trabalho são apenas alguns desses temas. As diversas formas de violência, de confusão e de desamparo sobre as quais escreve, com o que o crítico James Wood chamou de “honestidade feroz”, acabam ressoando em leitoras e leitores de diferentes lugares, e me parece que isso, mais do que a escolha de um pseudônimo, tem um papel importante na tal “febre Ferrante”.

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