A brutal suavidade de Tadao Ando
Em entrevista exclusiva para a ELLE Decoration, o arquiteto japonês, que completa 81 anos neste 13 de setembro, reflete sobre sua trajetória, o futuro de seu ofício e a relação sagrada entre função e forma, que o tornou uma lenda viva da arquitetura.
É difícil olhar a paisagem das cidades sem esbarrar no legado de Tadao Ando. Arquiteto símbolo do brutalismo, sua ideia de que luz, natureza e concreto formam a santíssima trindade da forma está impressa na topografia de regiões tão distantes quanto Ibaraki, próximo à sua Osaka natal e onde repousa o magnífico projeto da Igreja da Luz, e Veneza, cuja alfândega centenária foi convertida em museu, o Punta della Dogana, reformado por ele.
A atração pela obra desse japonês, de olhar tão sereno quanto suas construções e membro do seleto grupo de ganhadores do Pritzker, o Nobel da arquitetura, não se deve apenas à capacidade de ele levar às últimas consequências a busca por uma funcionalidade quase sensorial, que não sucumbe aos arroubos faraônicos dos gênios e ainda assim conserva a beleza singular do minimalismo etéreo, fundado por ele. O que talvez tenha feito o dono do grupo Kering, François-Henri Pinault, chamá-lo para reconstruir o prédio da bolsa, em Paris, onde hoje está o acervo bilionário de arte contemporânea do empresário, e o rapper Kanye West pagar 57,3 milhões de dólares por uma mansão em Malibu é seu talento inigualável para transformar os projetos em extensões da paisagem.
Tadao Ando: Inspiração em Le Corbusier.Foto: Kazumi Kurigami
O Teatro Armani, em Milão, encomendado pelo estilista e amigo Giorgio Armani, é outra das joias desse legado que traduz a simbiose entre o passado e o presente, pretendida pelo arquiteto. Fincado na zona industrial de Milão, suas paredes têm frestas que iluminam o espaço de forma geométrica, a partir da luz solar, e sua fundação se exibe imponente, como a continuação da calçada de concreto que lhe sustenta. Uma árvore de cimento, nascida da terra brutalizada, tal qual sua obra.
Teatro Armani, em Milão: luz solar atravessa as frestas e projeta formas geométricas nas paredes.Foto: Cortesia Giorgio Armani
Ex-boxeador, autodidata e expoente da arquitetura mundial, Tadao Ando revê, em seus 80 anos, as bases de seu dicionário estético e o “encontro” com Le Corbusier, e relaciona, em entrevista exclusiva para ELLE Decoration Brasil, o ofício do arquiteto ao de um estilista.
Parte da sua trajetória tem a ver com a intervenção em edifícios históricos. Como esse trabalho muda a cidade?
Sempre que me esforço para renovar um edifício histórico, penso na arquitetura original como sendo o novo local. A partir daí, escolho os elementos arquitetônicos que mais me atraem. Procuro criar intervenções que produzam novos espaços e revitalizem o que existe. A arquitetura existe dentro do espectro do tempo, então você deve projetar para unir o passado, o presente e o futuro. Trabalhar dentro de uma estrutura histórica é mais difícil do que começar tudo em um novo local. Você tem de superar os obstáculos de preservação histórica, preocupações estruturais e dilemas burocráticos.
Pode exemplificar?
Na reforma do Palazzo Grassi, tentei criar um mundo dentro dos limites do que existia, refinar a arquitetura até o seu estado original e aprimorar o espaço com um mínimo de elementos. Já na reforma de Punta della Dogana, tive mais flexibilidade para projetar novos espaços. Meu objetivo nesses projetos sempre foi provocar um choque dramático entre o antigo e o novo, inserindo um espaço confinado por paredes de concreto dentro da estrutura existente. É um tipo de exercício que destaca camadas da história e traz compreensão, em vez de destruir a tradição. Há um movimento de vanguarda nesse olhar sobre o passado. A preservação substitui o desejo de criar construções faraônicas… O mundo está mudando em uma velocidade incrível, e os conceitos e valores vêm sendo quebrados. Mas, não importa como a profissão possa evoluir, acredito que o desafio da arquitetura é encontrar uma forma de ultrapassar os limites da funcionalidade para permanecer nos corações e mentes de quem a visita, participa dela. A única maneira de forjar o futuro é retornar às próprias raízes de sua criação e reimaginar desde suas origens. Esse é um esforço que vou perseguir para o resto da minha carreira.
O complexo Festival, em Naha, Okinawa (Japão).Foto: Tadao Ando
Como Le Corbusier o impactou?
Quando o conheci, estava em uma velha livraria em Osaka. Naquela época, eu era apaixonado pela vida, mas meu destino não estava definido. Tinha só 20 anos e trabalhava por meio período em um escritório de arquitetura. Coloquei meus olhos em um portfólio de Le Corbusier na seção de arte da livraria e imediatamente senti em meus ossos: “É isso”. Era muito caro, então economizei e comprei o livro um mês depois.
Esse livro mudou tudo?
Eu o li, página por página, todas as noites, até me cansar. Embora meu conhecimento não fosse amplo o suficiente para entender as complexidades do modernismo, o conteúdo do livro era fascinante. Havia fotografias arquitetônicas em close e grande angular, além de planos e esboços atraentes. Pensei: “Quero poder projetar assim”. Então, tracei as plantas de Le Corbusier várias vezes. Fui à Capela Notre-Dame du Haut, em Ronchamp (projetada por ele na França) e percebi a importância dos lugares de congregação, ou, mais ainda, a importância da arquitetura no quadro da sociedade contemporânea.
O senhor criou um método específico para desenhar?
Nos últimos 50 anos, tenho produzido arquitetura consistentemente. Mas, sem levar em conta a escala, penso mais nos métodos com os quais nós, arquitetos, podemos impactar a sociedade de forma positiva. Travo uma luta recorrente para compor temas que podem ser orquestrados em edifícios. Para mim, todo o processo de design sempre foi um desafio. Mas é esse desafio, o processo repetido de enfrentar problemas difíceis, que me permite criar coisas novas.
Muitos arquitetos vêm construindo uma relação com a moda. O senhor tem uma parceria antiga com Giorgio Armani.
Nosso primeiro contato foi em 1998, quando recebi um telefonema do próprio Giorgio Armani. É sempre emocionante para mim colaborar com um designer ou um artista talentoso. O processo é muitas vezes complicado, mas, às vezes, podemos criar formas e conceitos de arquitetura inteiramente novos sem compromisso.
Dizem que arquitetos podem ser bons estilistas.
Designers de moda são incrivelmente corajosos, independentes, e têm um espírito livre. Eles estão avançando o tempo todo para o futuro. Os arquitetos devem fazer o mesmo. Devemos compartilhar o medo de desafiar o mundo invisível. Somos todos humanos, é claro, e podemos ser corajosos. E nos dois casos nunca podemos escapar do medo de correr riscos.
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