Como o hip-hop redefiniu uso de joias e estilo pelo mundo
Novo livro Ice Cold: A Hip-Hop Jewelry History, da Taschen, descortina o brilho incrustado em lendas da música. Entenda o que está por trás da exaltação das peças dentro e fora do Brasil.
O Egito é reconhecido pelos avanços tecnológicos e pelo acesso às pedras preciosas e outros metais valiosos. Pouco é dito, porém, que os adornos também inspiraram uma cultura de realeza e nobreza perpetuada em todas as classes sociais. As imagens dos deuses e reis eram sempre enfeitadas com joias luxuosas, e, mesmo os mortos, eram enterrados com elas. A joalheria em ouro significava poder, religião e status, e carregava ainda um aspecto sentimental, relacionado às pessoas que compartilham situações em suas vidas.
Esse contexto é essencial para entender o valor das joias na cultura hip-hop, que nasceu na diáspora entre pessoas que compartilhavam, e ainda compartilham, realidades sociais similares. Em sua maioria, são jovens negros forjados em territórios onde a vulnerabilidade social se faz presente. Tudo isso é tanto pano de fundo quanto cerne do livro Ice Cold: A Hip-Hop Jewelry History, de Vikki Tobak, lançado no mês passado pela editora alemã Taschen.
Livro “Ice Cold: A Hip-Hop Jewelry History”, que acaba de ser lançado pela editora Taschen.Divulgação
A história da joalheria no hip-hop é finalmente contada com brilho merecido, valorizando a trajetória de personagens icônicos fundamentais no processo de evolução da cultura no mundo. O prefácio foi escrito pela lenda do movimento, Slick Rick, e há ensaios de A$AP Ferg e LL COOL J, convidando os leitores a navegarem em suas jornadas pessoais pelo mundo das joias.
Tobak é o nome por trás de outro livro importante, o Contact High: A Visual History Of Hip-Hop, que colabora nos estudos da gênese visual do estilo. Neste novo trabalho, ela se concentra nos últimos 40 anos da joalheria hip-hop, desde os primórdios nos anos 1980 até os dias de hoje.
Chama a atenção sua pesquisa sobre joalheiros pioneiros, como Tito Caicedo, da Manny’s, Eddie Plein e Jacob the Jeweler. Também ganharam holofotes marcas de novos artesãos da cena, como Avianne & Co., Ben Baller e a IF&Co. O livro apresenta centenas de peças de grandes estrelas do rap, incluindo os pingentes Adidas do grupo Run-D.M.C. e o cordão de Eric B. & Rakim, enquanto analisa os significados de suas influências.
O rapper A$AP Rocky em quadro de edição de luxo do livro “Ice Cold: A Hip-Hop Jewelry History”, da Taschen.Tomo Brejc/Divulgação Taschen
O lançamento coincide com uma avalanche de notícias relacionadas ao assunto e que ganharam as redes nos últimos anos. Em junho passado, o rapper Kendrick Lamar causou furor em sua apresentação no Glastonbury ao usar uma coroa de espinhos da Tiffany & Co. Ela levou 10 meses para ser projetada e possui 8.000 diamantes que, juntos, pesam 137 quilates.
Outro momento marcante foi protagonizado pelo trapper Lil Uzi. No ano passado, ele implantou um diamante rosa na testa avaliado em 24 milhões de reais. “Há anos venho pagando por um diamante rosa natural de Elliot. Essa pedra custou tanto que estou pagando por ela desde 2017. Foi a primeira vez que vi um diamante rosa natural de verdade. Estou com muitos milhões na minha cara”, disse o rapper à época. Logo depois, ele retirou a joia porque, como qualquer corpo estranho dessa magnitude, gerou problemas de saúde.
Cardi B, Migos, Jay-Z e tantos outros dão continuidade e levam muitos quilates à cultura no mundo. No Brasil, a preocupação com o estilo não é diferente entre os artistas das vertentes funk, trap e rap.
BRILHO NACIONAL
Assim como acontece com outras estéticas de periferia, o hip-hop permitiu que lugares se conectassem e se expandissem, criando uma identidade própria. MC Poze do Rodo, L7nnon, Teto, Matuê, Kay Black, Orochi, Mc Guimê e o lendário Thaíde, da dupla Thaíde e Dj Hum, são exemplos de artistas que, embora inseridos em um cultura criada em território estadunidense, criaram em vielas e morros o próprio DNA.
“Sempre gostei muito de acessórios e brisei muito em como um look para show necessita de uma jóia. Se for puxar um pouco mais a fundo, eu, particularmente, sou apaixonado pela cultura egípcia. Meu braço é todo tatuado com referências do Egito, que, pra mim, já é uma referência foda”, diz o trapper João Victor, o Kuririn, de apenas 23 anos.
Morador da zona Oeste de São Paulo, ele é dono da loja SLATT, que já produziu joias para nomes do rap nacional, como Filipe Ret e Matuê. “Acho que as joias estão totalmente ligadas a poder e expressão, e a parte que eu mais gosto é customização. É você ter uma corrente com sua identidade, com seu vulgo, com o nome da quebrada ou alguma imagem que o representa”, explica.
É sempre um desafio discutir joalheria sem se aprofundar na ética da mineração e no legado de exploração dos recursos desde a colonização. Em Ice Cold, Vikki Tobak oferece uma visão de como os músicos lidam com esse passado da joalheria. No caso do Brasil, se por um lado é urgente pensar nas formas de consumo, que é herança da colonização, por outro não podemos deixar também de trazer Chico Rei à discussão.
De acordo com a história, o rei do Congo escravizado no Brasil escondeu ouro no cabelo para comprar sua alforria e a dos companheiros em situação análoga à dele. E esse é só um exemplo de como é importante olhar a joia sob outras perspectivas, que explicam a cultura de rua e o fenômeno propagado por ela.
LÓGICA DO IMPOSSÍVEL
A exuberância no visual da estética das periferias traz consigo a questão do impossível, no sentido de que traduziria, por exemplo, a pergunta sobre “como um favelado consegue comprar uma corrente de ouro por x reais?”, afirma o músico Thiago Barbosa Alves de Sousa.
Artista de funk conhecido como Thiagson, ele pontua que, no questionamento da estrutura social, a ideia do “impossível” perpassaria outras nuances da aparência, como nascer com cabelo rosa ou azul, algo que os MCs de funk reproduzem ao pintar os cabelos.
“Diamante, tudo o que brilha e talvez negue aquilo que seria, num primeiro momento, impossível de encontrar na realidade, acho que tem a ver com a estética do impossível. As artes trabalham com muita coisa do impossível. Aquilo que não seria comum, mas como uma questão de milagre surge em um favelado, com cabelo verde e corrente de ouro”, explica.
A religião, nesse sentido, encontraria eco no sentido divino na construção dessa imagem. “Quando a gente fala sobre estética a gente tem que pensar no que é belo, e o que é belo é o que tem a ver com beleza. A palavra beleza, por sua vez, vem do sânscrito, uma língua muito antiga que deu origem a várias outras e para a qual o belo era aquilo que eleva as pessoas a um plano divino. O prefixo “bel” significa “aquele que está próximo de Deus”, diz Thiagson.
Tantos códigos de acesso, seja no plano material, seja no plano divino, acabam por jogar luz à desigualdade explícita nas periferias. O trapper Kuririn tem consciência disso e, na SLATT, busca caminhos que espelham a realidade desigual do país.
“Tem muita gente que se espelha [na estética do hip-hop] e quer ter joias. Temos que enxergar a realidade do Brasil, e, por isso, procuro um caminho mais justo. Na loja, você encontra peças de aço por R$ 40, mais baratas, além dos banhados e folheados. Ao mesmo tempo, produzimos as peças em ouro e cravejadas caso o artista queira”, diz ele.
Tornar as peças acessíveis é um princípio de Kuririn, porque ele sabe que o público de sua empresa, em geral, é jovem e vive uma realidade distinta de quem já está estabelecido no mercado. “Ter peças acessíveis é muito importante para a pessoa sentir o gosto, poder sonhar, se sentir parte”, afirma o trapper.
MC Luanna, 28, compartilha a ideia. Um dos grandes nomes da nova geração do rap nacional, ela diz que as peças têm a ver com a própria autoestima. “Sou uma pessoa mais tímida sobre minha exibição e minha estética. Mas, quando preciso estar em um palco ou em um clipe, me mostro mais. As joias colocam ênfase nesse poder que não preciso ter o tempo inteiro do dia”, explica.
Ela também acredita que a ostentação das joias na cena brasileira está ligada à ascensão social, e que, por isso, são objetos de desejo para os jovens periféricos. “Quando o MC Guimê trouxe a estética do funk ostentação, era muito de você cantar sobre aquilo que não podia ter, tá ligado? Acho que, antes de um MC estourar, tem isso de ele esbanjar aquilo que não teve, de mostrar uma conquista de algo”, resume Luanna.
Assim como foi no Egito antigo, sentimentos e vidas compartilhadas continuam sendo as bases da joalheria usada pelos novos deuses que brilham no hip-hop.
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