Estamos obcecados por nossos dentes?

Agora que estamos em casa, o look do dia pode ser pijama, mas o rosto está sempre em evidência nas chamadas de vídeo. Com isso, cresce a já intensa fixação brasileira pela odontologia estética.





De acordo com uma análise da Sociedade Brasileira de Odontologia (SBOE) feita em 2017, o Brasil é o segundo país que mais investe em procedimentos estéticos nos dentes no mundo. E se você imaginou que a pandemia iria, de alguma forma, abalar a busca pelo sorriso perfeito, se enganou. O distanciamento social aumentou o foco que damos ao sorriso. “Por conta das chamadas de vídeo, estamos em maior contato com o nosso próprio rosto. Por isso, a preocupação com os dentes só aumenta”, diz Fernanda Calonego, dentista e consultora técnica da BM4, marca de produtos odontológicos que teve um crescimento de 60% no primeiro trimestre de 2021.

De acordo com Fernanda, inclusive, o uso de máscara e a menor presencialidade incentivaram as pessoas a investirem em cuidados de longo prazo, como a implementação de facetas (lentes de contato). Segundo o dentista José Marinho, este é o tratamento mais desejado dos últimos tempos. “É um laminado que recobre a superfície visível do dente”, explica antes de citar a alta procura dos brasileiros por clareamento e a redução do diastema (espaço entre os dentes). Vale lembrar que as facetas com resina composta custam de R$ 500 até R$ 1,1 mil por dente. No caso da porcelana, o valor salta para a margem de R$ 1,5 mil a R$ 3 mil.

No primeiro trimestre deste ano, as vendas da Invisalign, marca de corretores odontológicos invisíveis, cresceram 8,4% no Brasil e nos demais países da América Latina. Para além do forte investimento no atendimento digital devido à pandemia do novo coronavírus, Ritesh Sharma, vice-presidente da divisão latina da Align Technology (responsável pela Invisalign) reconhece a importância de ter associado a empresa a celebridades para aumentar seu lucro. “Entendemos que o envolvimento e a confiança do consumidor na nossa marca vêm da construção do relacionamento em mídias sociais que fazemos ao lado de mega-influenciadores”, diz à ELLE Brasil. A cantora Anitta e os atores Giovanna Ewbank e Bruno Gagliasso foram os escolhidos para representar a Invisalign.

Expectativa X realidade

Para além dos procedimentos executados em consultórios de odontologia, os tratamentos caseiros também têm vivido uma alta especial na quarentena. No entanto, o autogerenciamento pode gerar alguns riscos. “Tem muita enganação”, alerta José. “Pasta dental com carvão ativado clareia o dente porque o desgasta, por exemplo.” A comparação de sorrisos também pode ser um problema uma vez que o resultado alcançado pela influencer que você ama não necessariamente é possível de ser alcançado na sua própria boca. “Tudo o que é biológico, não é 100% exato. Não há garantia de que a resposta de um procedimento vai ser totalmente igual a simulação gráfica esperada”, explica Patrícia Suguri, dentista e professora de saúde coletiva da Universidade Federal da Bahia (UFBA).

Com as redes sociais, no entanto, muitas vezes as pessoas se esquecem disso. “Quando as coisas estão muito instantâneas, principalmente falando de saúde, podemos facilmente cair em alguma armadilha”, diz a também dentista Sara Torquato. “Um erro dentário, proveniente de um tratamento descuidado, só piora com o tempo. O ideal é mexer o quanto menos. A odontologia precisa ser mais preventiva do que restaurativa”, afirma. Patrícia, por sua vez, relata que, vez ou outra, precisa alinhar expectativas ilusórias de alguns pacientes com a realidade. “Precisamos entender quando há uma motivação obsessiva por trás do desejo do procedimento.”

“Quem tem dente branco é criança, porque tem muito esmalte e pouca dentina. Não é natural que uma pessoa adulta tenha os dentes tão brancos”, Patricia Suguri, dentista e professora de saúde coletiva da UFBA.

É importante ressaltar que a fixação exagerada com os dentes faz parte do TDC (Transtorno Dismórfico Corporal). De acordo com o editorial do volume 27 da Revista Brasileira de Psiquiatria, a doença afeta a percepção do paciente de sua própria imagem corporal e o leva a ter preocupações irracionais sobre os supostos defeitos de seu corpo. O recorte em questão é conhecido como dismorfia dentária.

Assim como nas cirurgias plásticas (o Brasil é um dos países que mais opera no mundo), na odontologia também são debatidas questões relacionadas ao distanciamento do que é natural. Em um clareamento, grandes moléculas de pigmento, que dão o tom amarelado, são removidas da estrutura dentária. Com isso, a cor “natural” dos dentes é devolvida, mas comumente, os pacientes optam por algo ainda mais claro.

“Quem tem dente branco é criança, porque tem muito esmalte e pouca dentina. Não é natural que uma pessoa adulta tenha os dentes tão brancos”, afirma Patrícia. A decisão de clarear, aumentar o tamanho do dente ou diminuir o espaço entre eles é pessoal, mas também sofre influência de subjetividades coletivas. E mais: ter o entendimento de que nenhum procedimento pode ser feito em um dente não saudável. “Não existe odontologia estética se não houver saúde bucal. Não tem como fazer lente de contato se a pessoa tem gengivite. A saúde está em primeiro plano”, arremata a dentista Rebeca Burlamaqui.

Por fim, é fundamental manter em mente alguns dados importantes quando se fala de odontologia no Brasil. Ao mesmo tempo em que somos um dos países mais especializados e vidrados no assunto, a realidade da saúde bucal no país por aqui é adversa. Feito em 2018, o estudo Percepções Latino-americanas sobre perda de dentes, da Edelman Insights, levantou que 16 milhões de brasileiros não tinham nenhum dente e 41,5% das pessoas com mais de 60 anos já tinham perdido todos. No ano seguinte, a Pesquisa Nacional da Saúde (colaboração entre IBGE e Ministérios da Saúde e Economia) mostrou que apenas 49,4% da população vai ao menos uma vez por ano ao dentista.

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