Os pingos nos “is” da cultura de depilação

A prática de remoção de pelos está tão enraizada na nossa cultura que quase nos esquecemos de que trata-se de uma escolha estética individual que nada tem a ver com higiene pessoal.


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“Primavera: se procurarmos no dicionário, êste registro que é a estação do ano que, no nosso hemisfério, vai de 22 de setembro a 21 de dezembro, e se caracteriza pela temperatura amena, pelas flores, pelo degêlo, agasalhos leves… Muito poético, mas a realidade carioca é bem outra: calor, que se traduz em têrmos de muita praia, musselina, decotes, braços à mostra. Vamos imediatamente ao que nos interessa: não é nossa pretensão chamar alguma carioca de gorila, mas você já pensou o quanto é desagradável braços e pernas nuas…cheios de pêlos?” Uma investida pelos jornais da década de 1960 é uma viagem recheada de diferenças cômicas, como a reforma ortográfica, e semelhanças perturbadoras, como a aversão aos pelos no corpo. Este trecho do jornal O Globo Feminino do dia 20 de setembro de 1961 é consequência de uma longa campanha de incentivo à depilação que ainda resiste. Cinco décadas depois deste texto ser publicado, vamos imediatamente ao que nos interessa: você já pensou o quanto é saudável ter pelos?

No geral, os pelos são ferramentas naturais de defesa. “A função específica depende da área em que eles nascem, mas pelos servem para proteger determinada parte do corpo de atrito, invasão de microrganismos ou até como uma proteção mecânica de traumas”, explica Monalisa Nunes, dermatologista e produtora de conteúdo digital. “Por exemplo, a região genital masculina tem pelos porque se houver um trauma, eles podem amortecer o impacto; o cabelo na cabeça é uma técnica também para amortecimento e protege o couro cabeludo do sol. Já os cílios existem para proteger a cavidade ocular, servem como um filtro para os olhos.”

Segundo a médica baiana, as pesquisas mais recentes indicam que não há prejuízo significativo na remoção dos pelos, mas que também não há nenhum ganho. “Então, aparar os pelos é recomendado pela medicina, deixar um tamanho menor para facilitar a limpeza e até para que você possa ver se tem alguma alteração na pele. Mas, em relação à retirada completa dos pelos, principalmente de região genital, já não é o mais recomendado”, diz Monalisa, “A retirada do pelo pode aumentar um pouquinho a chance de infecções, mas esse aumento também não é muito expressivo se você tiver uma boa higiene. Muitas vezes não é a ausência em si do pelo que é o problema, é o processo que foi feito para a retirada do pelo: depilação agressiva, que machuca a pele, queima, causa foliculite, inflama. Isso já é mais problemático.”

Do começo

Ao longo da história, a depilação aparece em várias sociedades com propósitos diferentes. Seja como estratégia de autodefesa em tempos de guerra ou como indicador de classe social, a prática depilatória foi se atualizando e se tornando cada vez menos agressiva com o avançar dos séculos. No entanto, higiene não era um argumento tão popular antes do século XX. Isso porque é no final do século XIX que entra em cena uma figura decisiva para esse fenômeno cultural — um vendedor, inventor e publicitário estadunidense que fez da depilação um império: King Camp Gillette.

Na dissertação “Hair or Bare? The History of American Women and Hair Removal, 1914 – 1934” (Pelos ou fardo? A história das mulheres estadunidenses e a remoção dos pelos, 1914 – 1934, em tradução livre), Kirsten Hansen escreve que “no segundo ano no mercado, a lâmina de barbear criada por Gillette vendeu 91 mil aparelhos. Gillette obteve sucesso ao criar um produto que poderia ser feito a baixo custo, vendido a um preço relativamente barato, mas precisava ser substituído constantemente. As novas lâminas não tinham que ser afiadas porque podiam ser jogadas fora depois do uso. Homens deixaram de depender de barbeiros e passaram a poder se barbear diariamente. Mais importante, o design da nova lâmina era muito mais seguro do que qualquer modelo já usado anteriormente. Nitidamente K. C. Gillette conseguiu preencher um antigo vazio de mercado oferecendo uma solução para um problema que existia há séculos.”

Nessa época, a depilação masculina nos Estados Unidos era estética e opcional, mas, com a invenção de Gillette, ela rapidamente se tornou uma tendência que, pouco depois, espalhou-se pelo mundo. “Em julho de 1915, a primeira lâmina de barbear Gillette para mulheres chegou ao mercado”, escreve a autora, “Mas, se Gillette tinha atendido a uma nítida necessidade do mercado de remoção de pelo masculino, agora ele tinha que enfrentar o dilema de vender para um mercado que não existia. Consequentemente, Gillette foi responsável por apresentar às mulheres estadunidenses o revolucionário conceito de se depilar.”

Dois fatores contribuíram para o sucesso da investida da marca: a moda e o surgimento das revistas femininas. A moda no pós-Primeira Guerra Mundial era significativamente mais permissiva, com saias mais curtas, braços à mostra e, ainda que o comprimento em si das roupas fosse aumentar e diminuir novamente com o passar dos anos, o modo de se vestir nunca voltou a ser tão composto quanto antes da Guerra. Ao mesmo tempo em que as roupas não exigiam a remoção dos pelos corporais, essa transformação criou o cenário fértil para cultivar a vergonha do corpo feminino — um fardo que muitos desejavam vender, inclusive o inventor da lâmina de barbear. Em sua pesquisa, Hansen aponta que até os anos 1920, a Gillette se consolidou como uma marca internacional, com fábricas no Canadá, Reino Unido e Alemanha.

“O caminho saudável para todo mundo é entender que a depilação é algo opcional, estético, ou seja: tudo bem se depilar e tudo bem não se depilar. Tem os prós e contras das duas opções, mas é uma escolha individual” – Monalisa Nunes, dermatologista

Por outro lado, as revistas femininas tratavam-se de um fenômeno que vinha se fortalecendo há algumas décadas nos Estados Unidos e, na década de 1920, o novo negócio seguia a todo vapor. As novas formas de imprimir e entregar deram força a todo mercado editorial da época e a aposta dos periódicos em se comunicar com mulheres brancas de classe alta tinha uma boa adesão tanto do público quanto da publicidade, que, a partir daí, passava a reconhecê-las como um mercado possível e lucrativo.

Segundo Hansen, as revistas femininas dialogavam com as necessidades de um novo e crescente grupo de mulheres, sem deixar de refletir os valores das donas de casa. Assim, por trás do sucesso das páginas editoriais, estava a oportunidade de anunciantes e grandes indústrias criarem necessidades para gerar mais dinheiro.

Para ter uma ideia, o enxaguante bucal Listerine era utilizado originalmente para limpar arranhões. De súbito, ele passou a ser vendido como a solução para “halitose”, uma nova doença (também conhecida como hálito ruim). De acordo com Hansen, os anunciantes eram tão convincentes em seu trabalho que poucas consumidoras perceberam à época que “halitose” era um transtorno inteiramente ficcional.

“Além dos itens domésticos, produtos como sopas, comidas e roupas, as revistas começaram a focar também em produtos de autoaperfeiçoamento”, prossegue a autora, “Como Joshua Zeitz aponta, o começo do século XX viu uma explosão de produtos para o corpo feminino, de cremes faciais para maquiagem a espartilhos, tanto que, ao final dos anos 1920, o volume total de publicidade para artigos de higiene e serviços de beleza eram o segundo tipo de anúncio mais comum, perdendo apenas para o setor de comida.”

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Na mira do imperialismo, esses fenômenos foram replicados no Brasil tardiamente. Uma pesquisa pelo acervo do jornal O Globo permite acompanhar, década a década, a crescente popularização da depilação até sua prática tornar-se mandatória. Dos anos 1950 aos anos 1960, o número de matérias que incluem “depilação” no jornal diário subiu de 45 para 120; na década de 1970, o número pula para 517. E esse ainda não é o auge da popularidade: os anos 1980 extrapolam esse número para 3.679 e, na década de 2000, temos 9.834 artigos sobre depilação. Nos anos 2000, o caderno que mais concentra essas pautas é “Bairros e Regiões”, naturalmente, páginas de anúncios. Na busca sem o filtro de data, os cadernos mais populares que incluem historicamente reportagens sobre depilação são “Bairros e Regiões”, “Arte e Lazer” e “Ciência e Saúde”.

“O maior prejuízo a longo prazo é psicológico, principalmente para a mulher, sabe?”, pontua Monalisa Nunes. “É uma amarra social associada à depilação, é sobre sentir vergonha do seu próprio corpo, achar que você não pode sair de casa com determinada blusa se crescer um pouquinho o pelo da axila. Realmente os métodos já estão bem mais seguros por esse longo tempo de incentivo à depilação, mas eu acho que o mais importante para todo mundo é entender que a depilação é algo opcional e estético. Não é por higiene.”

Sobre os métodos depilatórios, Nunes explica como cada um deles age. “As ceras costumam ser mais agressivas, principalmente a quente, porque além da retirada mecânica do pelo e do folículo, tem ainda o estímulo do calor, o que pode queimar a pele, escurecer, deixar a região sensível. Já a lâmina não é tão agressiva porque ela só corta o fio, não o arranca; por outro lado, tem a questão da contaminação”, adverte. “É comum que a lâmina fique em uso por muito tempo, então no processo de se depilar você pode cortar a pele, levar bactérias para um desses orifícios que ficaram desprotegidos pela depilação. Além disso, muitos pacientes têm alergia à lâmina, então pode coçar, irritar, inflamar…”

A alergia é um dos problemas mais comuns do creme depilatório, um produto pesado que, assim como a lâmina, faz um corte do pelo. No caso dos cremes, trata-se de uma quebra química. Já a depilação a laser é o método mais recomendado por dermatologistas, no qual o laser destrói o folículo do pelo, o que garante uma durabilidade do efeito. “Se feito adequadamente para o tipo certo de pele, é uma depilação sem efeito colateral. O que pode acontecer é queimar um pouco a pele no processo, mas é o jeito mais duradouro — teoricamente é uma depilação definitiva, dura anos para começar a aparecer um pelo ou outro. É muito indicada para mulheres que têm excesso de hormônio masculino e têm barba, o que gera um incômodo e prejuízo sócio-cultural muito grande”, explica Nunes.

Vale dizer que a repórter que vos escreve parou de se depilar há 7 anos e esperava, em certa medida, ao final desta reportagem, poder te convidar a fazer o mesmo afirmando que este é, sim, o caminho mais higiênico. Afinal de contas, por que negar os pelos? Por que submeter seu corpo a mais violência? No entanto, a realidade me surpreendeu positivamente: entre manter e remover seus pelos não há diferença alguma porque nada tem a ver a higiene com a depilação. Na prática, o que faz diferença na vida das pessoas é o preconceito. “O caminho saudável para todo mundo é entender que a depilação é algo opcional, estético, ou seja: tudo bem se depilar e tudo bem não se depilar. Tem os prós e contras das duas opções, mas é uma escolha individual”, arremata Monalisa.

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