Por que as marcas de beleza estão investindo no mundo dos games?

O videogame virou ponto de encontro e palco de debates sociais durante a pandemia. Marcas como MAC e Givenchy perceberam, então, que era hora de invadir o mundo virtual para vender cosméticos.


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Você não precisa ser um gamer para saber o que é “Animal Crossing: New Horizons”. O jogo, que remonta um mundo não-competitivo e colaborativo, foi lançado em março do ano passado, no início da crise sanitária por conta da Covid-19, e se tornou um dos mais populares da era do confinamento. Agora imagina se em vez de usar os visuais que foram disponibilizados pelos desenvolvedores, você pudesse usar uma maquiagem da Givenchy? Marcas de beleza como a MAC e a Gilette decidiram explorar o mundo dos “joguinhos” como uma maneira de expandir o público, criar conversas com a geração Z e lidar com a impossibilidade de fazer grandes eventos durante a pandemia.

Junto com as transmissões em tempo real no Instagram e no YouTube e as videochamadas, os videogames também conquistaram um espaço na vida das pessoas durante o isolamento social. No mundo virtual, elas encontram os amigos, passam o tempo e tentam relaxar no fim do teletrabalho. De acordo com levantamento da consultoria Nielsen, 82% dos consumidores globais jogaram ou assistiram conteúdos relacionados a videogames durante a primeira quarentena. A Pesquisa Game Brasil 2021 diz, ainda, que 75,8% dos gamers brasileiros afirmaram que jogaram mais durante o isolamento, sendo que 51,5% fizeram partidas com amigos e 42,2% disseram que gastaram mais dinheiro dentro dos games.

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Campanha da coleção MAC X The Sims 4Foto: Divulgação

“Com um aumento de 20% do número de espectadores de games apenas no ano passado, esse mercado está ganhando um público mais jovem do que o futebol, esporte mais tradicional do país”, aponta Francisco Formagio, consultor WGSN Mindset. São consumidores que estão dispostos a gastar dinheiro com produtos com os quais se relacionam nessas esferas. “Uma pesquisa da PwC descobriu que o mercado brasileiro de jogos deve crescer 5,3% até 2023 para mais de US$ 1,75 bilhão”, continua.

Assim, as marcas, portanto, já estão crescendo os olhos para cima desse público. Não à toa, a NYX Cosmetics já lançou, em colaboração com a Tetris, uma edição limitada inspirada pelo joguinho digital nostálgico. A marca coreana Kaja fez, por sua vez, embalagens de pó solto que imitam joysticks. Porém, ir além da inspiração e entrar, digitalmente, neste mundo tem a ver com criar uma relação mais próxima com o público, criar mais uma frente de diálogo. Afinal, os games deixaram de ser apenas escapismo e se tornaram uma espécie de rede social, onde há trocas e vivências.

O nerd não é mais branco e antissocial

Em abril do ano passado, o rapper estadunidense Travis Scott se apresentou dentro do jogo “Fortnite”. Fãs do artistas e jogadores curtiram, juntos, o show. Como se estivessem todos em uma festa, só que virtual. “Isso mostra que quem curte games não é mais a pessoa antissocial que mora na casa da mãe”, defende Felipe Teobaldo, futurólogo e professor de cultura digital. “Essa hegemonia está acabando. O jogo é o novo território social onde os debates estão acontecendo. Por isso as marcas querem estar nesse ambiente.”

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Looks e makes de Givenchy no Animal CrossingFoto: Divulgação

Outra pista de que o mundo dos games está mudando são os novos formatos e narrativas. Nos anos 1980, quando eles se popularizaram, a competição era o principal ponto de partida das dinâmicas. Por isso, eles acabaram sendo direcionados para o público masculino. “Porque, até então, havia a ideia de que mulher não compete”, diz Teobaldo. Isso está em transformação. Por mais que ainda haja jogos supercompetitivos, eles não são mais a única opção. “Agora, há também versões baseadas em colaboração, em criar uma realidade alternativa”. “Animal Crossing” e “The Sims” são alguns exemplos.

“Quanto tempo falta para as pessoas comprarem mais skins de personagens do que peças de roupas, produtos de beleza?” Felipe Teobaldo, futurólogo e professor de cultura digital.

A mudança na narrativa acontece junto com uma troca no perfil dos jogadores. Se você pensa em um nerd e ainda vê um homem branco, a sua visão já está ultrapassada. A Pesquisa Game Brasil 2021 dá conta, por exemplo, que a maioria dos jogadores brasileiros são mulheres (51,5%) enquanto 36,7% se declaram pardos e 13,6% pretos. E isso não é uma exclusividade do Brasil. Um relatório feito pela Universidade Northwestern, dos Estados Unidos, mostrou que jovens negros e latinos passam mais tempo por dia em jogos do que brancos da mesma faixa etária. Em contrapartida, apenas 10,7% dos personagens nos 150 jogos mais famosos são negros, enquanto 2,7% são latinos.

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Campanha “My Skin, My Way” da Gillette Venus em versão Animal Crossing.Fotos: Divulgação

Sabendo dessa falta de representatividade, a Gillette Venus criou a campanha “My Skin, My Away”, em que ofereceu 19 tipos diferentes de avatares para o “Animal Crossing” para download. Neles, há detalhes que mostram um olhar inclusivo sobre a pele: os personagens tinham marcas como estrias, tatuagens, sardas e até mesmo vitiligo. Mais do que apenas vender o produto, eles buscaram levar também o que consideram ser seus princípios. E já sabemos que a geração Z gosta de consumir produtos com os quais se identificam. “Pautado pela retomada da coletividade no ambiente virtual, este consumidor foca sua atenção em plataformas e produtos que ofereçam a interação social por meio do jogo, assim como a possibilidade de fazer ações caridosas e apoiar sua comunidade local”, arremata Francisco Formagio, da WGSN.

Skins, uma parte de si

O jogo “Cyberpunk 2077” foi muito aguardado pela comunidade gamer, mas, apesar de ter sido um fiasco, trouxe um debate importante para o circuito. O que atraiu muita gente foi o software de customização de personagens, as skins, que permitia que o jogador pudesse se recriar detalhadamente dentro do jogo. “Tinha quem ficasse mais tempo fazendo o avatar do que jogando”, diz Teobaldo antes de explicar que isso acontecia porque, para o novo gamer, sua skin é parte de sua personalidade. “São tentativas de se explicar. Eles consideram o avatar do jogo como uma parte de quem são. E eles podem ser o que quiserem. Um elfo ou uma batata. Isso muda em cada plataforma das quais fazem parte.”

“Uma pesquisa da PwC descobriu que o mercado brasileiro de jogos deve crescer 5,3% até 2023 para mais de US$ 1,75 bilhão”, Francisco Formagio, consultor WGSN Mindset

Assim, a customização dos avatares é importantíssima para os jogadores. “Eles vão se acostumar cada vez mais à distorção das linhas entre o mundo real e digital, consolidando o ambiente ‘phygital’, que abre espaço para estratégias mais interativas e personalizadas”, fala Formagio. “Então, imagina, se em vez de expor os produtos em uma prateleira, uma marca pudesse colocar os cosméticos para as skins? Os jogadores, poderiam, assim, se maquiar dentro do jogo”, complementa Teobaldo.

Na prática

A MAC fez, em junho do ano passado, uma iniciativa semelhante à ideia do especialista. A marca de maquiagem criou visuais para que as pessoas pudessem usá-las em seus personagens do “The Sims 4”. Os looks foram baseados em makes icônicos da M.A.C, além de terem inspiração na cultura pop, imitando a textura e cores de produtos famosos da empresa. Os 12 visuais, assinados pelo diretor internacional de maquiagem da marca Romero Jennings, foram disponibilizados gratuitamente para download.

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Plataforma de customização do jogo Cyberpunk 2077Foto: Divulgação

A linha de perfumes da francesa Givenchy seguiu um caminho parecido em julho do ano passado, mas no “Animal Crossing”. A grife criou visuais em que eram usados itens hits como os pós Prisme Libre e os batons Le Rouge. Os looks estão disponíveis em várias cores, para diversas tonalidades de pele. Os jogadores podem, ainda, baixar tatuagens de beijinhos ou no formato do logo da Givenchy para colocar em seus personagens.

A MAC e Givenchy souberam surfar bem nessa onda que, segundo os especialistas, deve se tornar ainda mais valiosa do que já é hoje em dia. “Há toda uma conversa sobre produtos digitais, cryptoarte… Quanto tempo falta para as pessoas comprarem mais skins de personagens do que peças de roupas, produtos de beleza?”, adianta Teobaldo.

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