Pretas no comando

Marcas de beleza capitaneadas por mulheres negras combatem o racismo estrutural e institucional no país e lutam para fazer seus produtos chegarem às consumidoras.


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lustração: Gustavo Balducci



Minha mãe nunca foi muito de se maquiar. Com a minha idade, ela usava basicamente um batom vermelho – daqueles com duração de 24h –, que, em suas mãos, se desdobrava em três produtos diferentes: batom, blush e sombra. Parda, Marineusa não encontrava seu tom de pele nas bases e também não se importava tanto com isso. Na favela onde cresceu, em São Paulo, maquiagem não era exatamente uma pauta. Mas atire a primeira pedra quem nunca desejou ser belo, seja lá o que isso signifique. Não à toa, cresci ouvindo as loucuras feitas em nome da beleza, como passar Coca-Cola no corpo para se bronzear ao sol ou fazer pintas no rosto com caju (que também queimam a pele quando expostas ao sol). Métodos como esses estão mais vivos do que nunca, apesar de não serem mais necessários ou recomendados. Hoje, a Cor 150 da base líquida da Núbia Afri, linha de maquiagem da marca Da Minha Cor, é o tom exato da minha mãe. Muene, Divas Bllack, Negra Rosa, Da Minha Cor, Soul Brio e Makeda são empresas dentro do mercado de cosméticos capitaneadas por mulheres negras que devotam suas vidas para criar produtos para o povo negro. Em um país em que 56% da população é negra, por que essas marcas não são as líderes do ramo no Brasil?

“Todo esse tempo a gente comprou maquiagem errado. A gente enriqueceu uma indústria de maquiagem que não foi feita para nós”, alerta Daniele DaMata, maquiadora paulista de 30 anos. Entre seus 15 e 20 anos, ela trabalhou em uma fábrica de cosméticos. Sua primeira experiência nessa área, a princípio, parece um desvio de sua trajetória desejada. Daniele queria estudar direito e dedicar-se a conversas entre mulheres como autodefesa, vulnerabilidade e violência doméstica. Naquele momento, a fábrica era um trabalho temporário. Lá dentro, contudo, alguns questionamentos sobre a relação do mercado de maquiagem com a pele negra já começaram a amarrar a sua atenção. Não raro, quando Daniele desenvolvia cartelas de cores para clientes, os produtos reprovados sempre eram os dirigidos à pele negra. Por que será? Frustrada, ela conversava com Levy, o único químico negro da fábrica. “Será que erramos a fórmula?”, perguntava. Ao que ele respondia, quase sempre, provocando-a: “Dani, a gente não errou. É racismo, mesmo.”

Daniele, então, indagou-se: por que não promover diálogo e falar sobre violência doméstica — ou qualquer outro assunto — com pessoas negras por meio da beleza? Em 2014 nasce, assim, o Negras do Brasil. O objetivo do projeto era passar em todos os Estados brasileiros para falar sobre a autoestima da mulher negra e maquiagem. “Foi um caos, né? Eu tive a brilhante ideia de ter uma escola de maquiagem para pele negra, sendo que o mercado não tinha produtos para a pele negra (risos). As pessoas falavam que eu era meio louca, que não iria ganhar dinheiro, porque pessoas negras não compram”, desabafa ela.

“Gosto de falar em estética e não em beleza, porque beleza fica muito resumida à beleza greco-romana, que não nos representa como belos, mas nós, mulheres negras, sempre soubemos que somos belas” Daniela Santos

Um dos primeiros passos de Daniele foi ir atrás de todas as bases disponíveis que, teoricamente, eram desenvolvidas para peles negras – mas que ao se adaptar ao rosto ficavam cinza, laranja, cor de tijolo, tudo menos o negro. A valiosa experiência de cinco anos dentro de uma fábrica de cosméticos tinha ensinado Daniele como quebrar os corantes e ela assumiu como uma missão passar esse conhecimento adiante. Foram contemplados pelo Negras do Brasil os Estados do Sudeste e do Centro-Oeste e algumas localidades do Sul e do Nordeste. Para a maquiadora, na época, iniciante, o projeto também funcionava como uma pesquisa. “A cada cidade que visitava, ficava mais chocada. Em Belo Horizonte, a tonalidade das pessoas é totalmente diferente do que se vê, por exemplo, no Espírito Santo. Aracaju é muito diferente de Brasília e por aí vai. Em regiões quilombolas, certas tonalidades prevalecem. Em Aparecida, no interior de São Paulo, onde funcionavam antigas plantações coloniais de café, há predominância da pele retinta. Algo parecido acontece em Salvador. Voltando a BH, por causa da miscigenação, as meninas negras de lá têm a pele mais clara e o cabelo cacheado”, descreve Daniele. “Como a gente não conhece nossa história, essa é uma conversa com muitas nuances. Se você parar para pensar, é recente se declarar negro para algumas pessoas.”

Atualmente, Daniele faz consultoria para marcas de maquiagem que desejam desenvolver linhas que contemplem também as especificidades da pele negra. Ela colabora com as empresas em três frentes: desenvolvimento de produto, estratégias de publicidade e relação com o consumidor. Isso começa com um diálogo com os químicos dentro dos laboratórios, passa pela instrução e aprovação dos produtos e desemboca em uma estratégia de comunicação que seja eficaz no sentido de atingir a população negra brasileira. Seu diagnóstico do mercado em geral é que falta incentivo de pesquisa — acadêmica, histórica, até gráfica e publicitária, mas, acima de tudo, tecnológica. “É preciso entender quais são os componentes que formam manchas ou que clareiam a nossa pele”, aponta.

Houve melhoras nos últimos anos, sem dúvida. Um divisor de águas foi o surgimento da Fenty Beauty, em 2017. A marca de Rihanna, que foi lançada oficialmente no Brasil na semana passada, inundou o mercado de beleza com 40 tons de bases – e o jogo virou depois disso. Marcas e lançamentos que não contemplam a pele negra já não saem mais ilesos de suas investidas racistas. A internet e as redes sociais fizeram a voz de consumidores antes ignorados ressoar. Mas será que isso foi suficiente para, realmente, transformar esse mercado? Como estão os empresários negros desse ramo? Ouvimos empreendedoras e outros profissionais da área para saber quais os desafios enfrentados por quem luta pela representatividade negra na beleza.

As incertezas antes do primeiro passo

“O acesso ao crédito no Brasil para um empreendedor negro é muito difícil. A minha bisavó nasceu em 1888, exatamente no ano da libertação dos escravos. Nós passamos uma vida inteira trabalhando de graça, apanhando e vivendo nas condições mais miseráveis possíveis. Quando aconteceu a libertação dos escravos, a minha bisavó não ganhou um pedaço de terra e um boi — ela foi jogada na rua. Morou de favor. Ela morreu sem ter uma casa. A minha mãe conseguiu comprar sua casa própria em torno dos 40 ou 50 anos de idade. Eu já consegui a minha casa com os 20. Eu sou um privilegiado, um caso à parte, uma exceção na população negra. A minha relação com o meu teto é muito forte. E aí, quando você chega no banco para pedir dinheiro emprestado para um projeto, o banco quer uma garantia. O que ele pede? A sua casa. Por mais que você confie e acredite no seu projeto, você pensa: ‘se der errado, eu volto para a condição da minha bisavó’. Eu não tenho pai rico, eu não tenho família com posses. Eu volto para uma circunstância de quatro gerações atrás. Para lançar a nossa marca, a gente se desfez de carro, de apartamento, de terreno, de tudo o que era extra a nossa casa. Então, esse é o contexto em que a gente lançou esse produto. É com muito suor, lágrima e sangue, entendeu? (risos) Não é fácil.”

Michele Eduardo tem 40 anos e é casada com Maurício Delfino, que trouxe a reflexão acima durante nossa entrevista. Juntos, eles fundaram a Da Minha Cor, em 2018, com um propósito direto: desenvolver produtos para pessoas negras. Desde a touca de natação que tem espaço para o volume do cabelo crespo e cacheado sem amassá-lo até a Núbia Afri, uma linha de maquiagem com bases líquidas e pó compacto. Michele planeja ainda esse ano lançar um batom e, em 2021, uma linha de esmalteria. Além da loja virtual no site da marca, eles trabalham com revendedoras. E o investimento nessa estratégia é grande: o lucro para quem revende os produtos é em torno de 50% – a título de comparação, o lucro de uma revendedora Avon é de até 30%.

mulher sorridente de cabelos cacheados e blusa de oncinha

Michele Eduardo, co-fundadora da empresa Da Minha Cor: carro, apartamento e terrenos foram investidos na abertura do negócio.Foto Arquivo pessoal

Michele vê a maquiagem como um meio, uma ferramenta para um trabalho mais profundo de autoestima e alegria. Antes de se tornar maquiadora, ela trabalhava na área de saúde e perdeu as contas de quantas vezes entrou no quarto com flores artificiais nas tranças e ouviu de algum paciente “Lá vem a enfermeira, toda enfeitada!”. Essa era uma forma de abrilhantar os dias. Então penteava não só os seus, mas também os cabelos de seus pacientes que, vez ou outra, também eram maquiados por ela.

Por sua vez, Daniela Santos, empresária por trás da Soul Brio, vê a estética como algo instigante: uma construção social ligada a representações, sejam elas midiáticas ou não. “Gosto de falar em estética e não em beleza, porque beleza fica muito resumida à beleza greco-romana, que não nos representa como belos, mas nós, mulheres negras, sempre soubemos que somos belas”, declara. Psicoterapeuta de formação, Daniela é uma construtora — de conceitos, espaços e oportunidades. Quando foi fazer seu doutorado em Barbados, um país majoritariamente negro, pôde perceber que as definições do que é ser mulher divergiam do Brasil e se debruçou sobre isso. Ao voltar para cá, com cabelo dread, quatro anos atrás, viu que muitas pessoas aqui também estavam aderindo a esse estilo. Com o tempo, os cremes e xampu que ela trouxe de fora acabaram. E aí veio o impasse: no Brasil ainda não existia nada parecido com aqueles cosméticos.

“Como a gente não conhece nossa história, essa é uma conversa com muitas nuances. Se você parar para pensar, é recente se declarar negro para algumas pessoas” Daniele DaMata

Na época, ela até pensou em fazer uma linha de maquiagem para pele negra, mas encontrou dificuldades para encontrar laboratórios dispostos a abraçar a proposta. Em quase um ano à procura de fábricas, ela ouviu muitos “Não temos interesse”, “Não temos a tecnologia” ou, ainda, “Por que você quer fazer tantos tons escuros sendo que a população brasileira negra é parda?”. Imagine a cena: Daniela vende a sua metade de uma casa que tinha com um companheiro em Barbados, pega todas suas economias e a poupança do seu pai, pronta para investir, mas se vê diante de uma indústria que não acredita que valha a pena produzir um tipo de maquiagem que se ajuste à pele dela.

Daniela desistiu da maquiagem, mas não dos cosméticos, não da estética negra. E focou no cabelo. “Encontrei uma fábrica muito legal, com uma pessoa que queria entender a questão do cabelo afro.” Sem referências nacionais para desenvolver seus produtos, ela viajou e trouxe várias amostras dos Estados Unidos para dread e para fibra. “Fibra é fibra, sintética ou orgânica, não é cabelo. Dread é um cabelo emaranhado, não posso usar um condicionador ou creme para crespo ou cacheado”, explica.

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Daniela Santos, da Soul Brio: o foco da empresa é no cabelo afro.Foto Divulgação

A Soul Brio hoje vende duas linhas: “Meus Dreads, Meu Brio” e “Minhas Tranças, Meu Brio”. O primeiro inclui xampu para dread, leave-in e óleo perfumado de ervas. O segundo tem xampu, spray hidratante e óleo perfumado cítrico. “Devido ao racismo, o cabelo da mulher negra tem o estigma de ser fedido. Logo, o dread e a trança são vistos como cabelo de quem não se cuida. O óleo perfumado é para preencher a lacuna, mesmo. Eu, como usuária de dread, sei o que falam de quem tem dread”, conta.

Mão na massa

Dentro da discussão a respeito de empreendedorismo digital, os métodos de trabalho engessados e super-hierárquicos têm perdido força, como o “cascata” – em que as ordens vêm de cima para baixo, grandes entregas acontecem em datas marcadas com muita antecedência e o produto só é testado na etapa final. Em contrapartida, o método “ágil” tem se tornado mais popular. Ele consiste basicamente em entregas rápidas e contínuas, testes frequentes e uma regra valiosa: quanto mais rápido se encontra o erro, menos dinheiro se gasta para consertá-lo. Intuitivamente, foi esse o modelo que encaixou na empresa de Daniela.

“Eu acho que o empreendedorismo negro, principalmente na área de cosméticos e de roupas é muito natural porque todo empreendedor quer resolver um problema”, reflete Daniela, “O que eu quis resolver é uma dor que eu sinto: falta de produtos específicos para dread. Desejo que seja um xampu que realmente atenda, não deixe resíduo e não ataque a minha dermatite, por exemplo. Quando eu usava trança, eu usava um xampu normal. O negro tem muito essa de se arrumar com o que tem.” Como exemplo dessas soluções caseiras do passado, ela cita um creme de cabelo com tutano do boi, receita de avó que precisava ser guardada na geladeira (nota da repórter: já comprei um desses, feito por uma querida cabeleireira da Zona Leste de São Paulo, quando comecei a usar meu cabelo natural, em 2013).

Improvisos e misturas para suprir a falta de produtos adequados faziam parte do cotidiano de Maria do Carmo Valério Nicolau. “A gente colocava um pouquinho de água em uma cor vermelha, blush ou rouge, passava um pouco… Dava uns tons diferentes na pele”, conta. Nascida em Brodowski, no interior de São Paulo, Maria do Carmo, de 88 anos, foi a primeira mulher negra a lançar uma marca de maquiagem no Brasil. Fundadora da Muene Cosméticos, Maria conta que já viu maquiadores se recusarem a maquiar pessoas negras porque, segundo eles, a pele delas sujaria seus pincéis.

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Maria do Carmo Nicolau, da Muene: a pioneira do ramo já viu maquiadores se recusarem a maquiar pessoas negras.Foto Divulgação

Antes de entrar no mercado de beleza, a pioneira não imaginava que um produto que atendesse às suas demandas não existisse. Inocentemente, pensava que, de repente, ele só não tinha chegado até ela ainda. Abordando o assunto com amigas, foi convidada para uma reunião de cosméticos em que os vendedores foram muito amáveis e a convenceram a investir para revender. “Comprei, fiquei abismada ao chegar em casa e perceber que nada servia para mim. Peguei a sacola e pus no alto de um guarda-roupa.” Foi depois dessa experiência que ela deu início aos seus esforços em tirar a Muene Cosméticos do papel. Atualmente, além da loja física no centro de São Paulo, a empresa trabalha com revendedoras para distribuir seus produtos pelo país.

Em alguma medida, todos os entrevistados desta reportagem experienciaram o sabor amargo do desincentivo. Fundadora da Makeda, linha de cosméticos capilares focada no cabelo natural, crespo e cacheado, Sheila Makeda tem 42 anos e conta que o racismo começa dentro dos bancos, na cara de desdém do gerente: “Afinal, quem é essa mulher, jovem, negra, uma menina, e o que ela está fazendo aqui?”

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Sheila Makeda: banco negou crédito, mas ela conseguiu furar a bolha e entrou no mercado.Foto Divulgação

Depois de ter créditos negados, ela juntou suas economias e, ainda assim, sabia que não conseguiria começar como uma grande marca. Portas fechadas na indústria. “Nem me respondiam. Foi aí que eu encontrei uma gerente comercial que era negra e ela me deu uma empoderada, decidiu me ajudar e falar com o dono da fábrica”, lembra. Dessa forma, ela conseguiu furar a bolha. Sheila entende, no entanto, que o apoio inicial dos bancos para o acesso a crédito com juros menores é primordial para que marcas como a dela possam se desenvolver de forma plena. Hoje, a Makeda proporciona um curso de empreendedorismo de cosméticos capilares para mulheres, especializado em cabelos crespos e cacheados.

Sem fórmulas prontas

“Trabalhei com a Daniele DaMata e foi com ela que entendi o tamanho da gama de cores que eu poderia usar sobre a pele negra. Achava que só dourado ficava bonito na pele negra, mas todos os tons funcionam para nós, todos ficam perfeitos”, diz Ian Ribeiro, maquiador paulistano de 27 anos. No começo de sua carreira, sua maior dificuldade era acertar o tom de pele de cada pessoa. Foi necessário um tempo de mercado até que conseguisse entender mais sobre fundo de pele e colorimetria. Para lidar com a escassez de produtos, ele recorria a truques como misturar batons marrons nas bases. Era um desafio não acinzentar as peles das primeiras negras que maquiou.

Esse é o problema mais comum: quando você passa a base, sua pele parece ótima e, depois de 30 minutos, a pele fica cinza. Daniele DaMata explica por que isso ocorre: “Toda maquiagem tradicional que você tem na sua casa, menos as marcas veganas, contém dióxido de titânio, que é um pigmento branco”. Esse pigmento não é ruim, diz a especialista, ele dá textura, cobertura e espécie (fator de proteção). “O problema é que adicionar só esse produto para um tom negro pode deixar acinzentado. A gente está falando de um pigmento branco com um preto, qualquer coisa vai ficar cinza se você misturar branco e preto”, resume.

“A gente fala com embaixador, diplomata, mas não consegue falar com o gerente da loja que toma decisão. Tem um racismo instaurado nas pessoas que tomam a decisão nessas redes” Maurício Delfino

Na prática, o desenvolvimento desse tipo de produto não muda da pele branca para a pele negra. O que muda é a concentração de pigmentos e a combinação deles. Muitos químicos de fábrica resistem a fazer maquiagem para pele negra, alegando que o pigmento nesse caso é mais difícil, quando o que se exige é técnica para chegar à cor adequada, conta Daniele. E ficam surpresos ao descobrir que podem fazer uma fórmula sem recorrer ao que já estavam acostumados – o famoso “Nossa, funciona mesmo!”

A embalagem é outro ponto que merece destaque. “Se a embalagem é de vidro, tem uma camada protetora que deixa o visual da embalagem azulado, o que em uma base para pele negra faz parecer que a base em si é mais escura; logo, quando você olha o produto final, você não vê a cor real da base – isso não acontece com uma base para pele branca porque não tem tanto pigmento vermelho, amarelo e azul”, explica Daniele.

Além desses cuidados extras com aspectos técnicos, marcas como a Soul Brio também têm uma preocupação em sair do lugar comum na comunicação do produto. As embalagens da Soul Brio são minimalistas, anatômicas e com cores marcantes, mas não vibrantes, um perfil que foge do óbvio da estante de perfumaria, das letras enormes com um black power no rótulo – o que em si não é problema, é só curioso pensar que não existiam produtos para cabelos afro fora dessa estratégia de comunicação. O logo é um símbolo circular, que representa no misticismo a harmonia, união com o universo, um conceito alinhado com o que Daniela pensa quando se depara com a expressão “estética negra”. “Veio a palavra Soul, que na cultura americana é ligada ao negro – soul food, soul music. E tem ‘Brio’ – minha avó falava “Negro tem que ter brio”, que é orgulho, amor próprio, vergonha na cara. A gente brinca com a palavra soul e brio. Eu ‘Soul’ brio. Meu ser todo é brio. Eu tenho beleza, eu tenho amor próprio. Eu tenho orgulho”, conclui.

A hora da venda

Contrariando as estatísticas, essas marcas entraram na indústria, desenvolveram produtos e, agora, precisam vender. O que nos leva de volta à questão colocada no início da reportagem: por que essas não são as maiores empresas de beleza do Brasil? Um dos motivos é o gargalo na distribuição.

Rosane Terragno tem 46 anos e uma mente afiada para negócios. Antes de lançar Divas Bllack, uma das melhores marcas de maquiagem nacionais para negras, ela criou o Território da Beleza: uma loja multimarcas de cosméticos que se tornou um ponto de referência de troca e aprendizado sobre beleza. No dia a dia da loja, ela reparou que não conseguia vender maquiagem para uma negra mais retinta, por exemplo. “Eu a maquiava, para ela sair bem bonita, fazia umas misturas, mas eu dizia que não poderia vender porque ela teria que fazer mil misturas em casa e talvez isso não desse muito certo.” A abordagem honesta com as clientes fez Rosane perceber que havia uma oportunidade no ar.

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Rosane Terragno, da Divas Bllack: gargalo na distribuição é uma das dificuldades enfrentadas pelas marcas.Foto Divulgação

Foram dois anos de estudos para conseguir os tons de base matte ideais, como ela queria – hoje a linha conta também com pó compacto, gloss, batom, paleta de sombras. Com a linha feita, toda idealizada para mulheres negras, a gaúcha tentou entrar em contato com outras lojas maiores e de outros segmentos. Em uma loja de departamentos, ouviu da vendedora: “A gente nem tem esse público, não tem esse interesse”. “Primeiro, não tinha produto e algumas pessoas se prontificaram: vamos fazer. Demorou um pouco, mas deu certo! Agora, como que a gente faz chegar?”, reflete Rosane, insatisfeita.

Todas essas marcas, Divas Bllack, Negra Rosa e Da Minha Cor, sofrem com esse gargalo de distribuição: desenvolvem produtos de excelente qualidade (a base da Negra Rosa é o xodó do Ian Ribeiro e as cores da sua linha de batons são inacreditáveis, segundo Daniele DaMata), atendem a diferentes perfis de mulheres negras, mas ainda não dispõem de caminhos certeiros para chegar até suas clientes. O pacto com as revendedoras é uma estratégia interessante, mas de baixo alcance. A loja virtual é bem funcional, mas o custo do frete desencoraja as consumidoras finais. Na visão de Rosane, para o desenvolvimento pleno das marcas em ascensão, é preciso um contato mais próximo com a compradora: “Precisa de cuidado, conversar com a cliente, maquiá-la, falar qual é o tom dela, explicar como ela pode usar cada produto. Assim, essa pessoa se transforma em uma consumidora para sempre, que vai trazer a tia, a avó, a prima.” Mas, afinal, quem está disposto a dedicar essa atenção às mulheres negras?

Em sua peregrinação porta a porta por casas de cosméticos e farmácias, Michele, da marca Da Minha Cor, ouviu respostas como: “Mulher negra não consome batom” ou “mulher negra não consome base”. Seus produtos não entraram. “A gente fala com embaixador, diplomata, mas não consegue falar com o gerente da loja que toma decisão. Tem um racismo instaurado nas pessoas que tomam a decisão nessas redes”, declara Maurício, que já relatou os percalços para conseguir pôr a marca de pé nessa reportagem. “Então, você imagina, lá na primeira ponta, quando eu cheguei para um grande banco, de um branco, e pedi dinheiro emprestado, ele pede a minha casa como garantia. Na outra ponta, quando eu vou para as grandes redes e lojas, é o branco que coloca ou não minha mercadoria na gôndola. Ele diz: ‘seu produto não tem saída, vai ficar encalhado’, mesmo com 56% da população brasileira sendo negra. Numa dessas, eu perco a minha casa, entende?”, completa ele.

“Negra Rosa sabe para quem ela quer desenvolver o produto dela, diferente de muita marca grande por aí. A Divas Bllack tem outro viés, as meninas negras que gostam de pele matte, pigmentação concentrada, com muito brilho. Elas têm propósito”, analisa Daniele DaMata. “Mas se as marcas grandes não conseguem atender a gente, provavelmente não são as marcas pequenas que vão conseguir. É como se a marca grande influenciasse a massa e as marcas pequenas que, a partir daí, vão abrindo seu espaço dentro do mercado”, continua. “Em cada processo tem uma pessoa racista segurando as chaves e, quando você finaliza todo o produto e tenta uma entrada em algum espaço físico de venda, falam que para isso, é preciso dar um lote de 100 mil peças – isso é dinheiro, muito dinheiro”, diz a maquiadora e consultora. “Divas Bllack, Negra Rosa e Da Minha Cor vão precisar desse acesso para poder crescer – são marcas de nicho, para quem tem acesso a internet, quem pesquisa. Elas não estão comunicando ainda e isso não é um problema delas – é um problema de racismo estrutural que a gente vive, inclusive na beleza”, resume.

Escrevendo essa reportagem, pude entender a frustração dessas empresárias destemidas e é desagradável encerrar o texto sem poder oferecer uma saída simples ou rápida para a questão. Uma frase arde na minha cabeça depois de todas essas conversas: beleza só é fútil para quem não a enfrenta. Sorte a minha e da minha mãe, que essas pessoas que estão obstinadas a mudar um cenário e a subverter essa estrutura de boicote estão aí – porque há milhões de brasileiras que querem o que elas podem oferecer.

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