Enciclopédia Negra é um convite para descobrir um outro Brasil

Livro reúne 417 verbetes de personalidades negras do período escravista até os dias atuais.





Era 2015 e Lilia Moritz Schwarcz havia acabado de publicar Brasil: uma biografia. Recebeu então uma ligação de Flávio dos Santos Gomes. O historiador e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) compartilhou com a colega de profissão e antropóloga seu desejo em redigir algo sobre a história da escravidão. Mais tarde, em 2018, lançaram Dicionário da escravidão e liberdade: 50 textos críticos, com capa ilustrada pelo artista Jaime Lauriano. Não contentes, a dupla esboçava a ideia de outro livro, mais aprofundado na história dos personagens. Essa inquietação deu origem à Enciclopédia negra: Biografias afro-brasileiras, recém-lançada pela Companhia das Letras.

Em mais de 700 páginas, a obra traz 417 verbetes, individuais e coletivos, de personalidades negras, desde o Brasil colônia do século 16 até os dias atuais, e conta com retratos assinados por 36 artistas negros. Segundo Jaime, ”a maioria dos 517 personagens não tinham retratos oficiais, e, se tinham, eles não faziam jus à história daquela pessoa”. Uma exposição na Pinacoteca de São Paulo, com abertura prevista para a próxima dia 1º de maio, exibirá outros 70 retratos, além dos que integram o livro, somando 106 pinturas que ficarão no acervo do museu.

image
A capa da Enciclopédia Negra traz Afra Joaquina Vieira MunizFoto: Divulgação/Companhia das Letras

Para Flávio, o livro destaca a experiência africana brasileira, que foi bastante variada conforme o século, já que ”o Brasil recebeu 46% dos africanos que vieram para a América” – mas não só. A Enciclopédia negra mostra que cada número estático é um ser humano singular. ”Existe um movimento historiográfico desenvolvendo pesquisas sobre os eventos e episódios da escravidão e emancipação. Então, surgiu a ideia de fazer um livro que visibilizasse esses processos mas também seus personagens”, conta o historiador à ELLE.

Na Enciclopédia negra, você verá nomes conhecidos como Lima Barreto, Carlos Marighella, Zumbi, Carolina Maria de Jesus e Marielle Franco, mas também descobrirá anônimos, igualmente importantes. ”Vivemos nesse país tão odioso, sem promessa e sem futuro, que pareceu uma boa utopia narrar uma história muito mais múltipla”, diz Lilia à ELLE.

Segundo os autores, só foi possível encontrá-los a partir de uma produção histórica muito consistente, realizada no Brasil nas últimas três décadas, principalmente. Flávio explica que alguns verbetes foram escritos em colaboração ou tiveram a ajuda de pesquisadores e especialistas no tema: ”Não inventamos a obra. Essa é uma pauta dos movimentos sociais negros há anos”. Lilia complementa ao dizer que ”desde o século 16 existe o ativismo negro”.

Quanto aos critérios para a escolha dos personagens, foram três: ”de tempo, para incluir pessoas de séculos variados; de região, para que contemplasse todos os estados brasileiros; e de gênero, para haver no mínimo o mesmo número de homens e mulheres retratados”, explica Lilia. Embora as mulheres sejam mais invisibilizadas na historiografia, o cenário tem mudado e elas são a maioria no livro.

Na sala de aula

Três mil kits com a Enciclopédia negra e pôsteres dos retratos serão enviados para escolas públicas de São Paulo. Essa ação pode ajudar a consolidar a Lei 10.639, de 2003, que prevê o ensino de cultura e história afro-brasileira nas escolas de todo o país.

O letramento tem, de fato, um papel fundamental na emancipação de pessoas negras – e, no Brasil, elas ainda são maioria entre os analfabetos. Isso chamou a atenção de Lilia no desenvolvimento da pesquisa para a Enciclopédia negra. ”Eu fiquei impressionada com o papel (disso) para esses personagens e como em um país onde a educação nunca foi um direito garantido para todos emerge esse espaço”, diz, usando como exemplo Lima Barreto, escritor sobre o qual a historiadora assinou uma biografia, Triste visionário, lançada em 2017.

Abaixo, três dos mais de 500 personagens que integram a Enciclopédia negra:

Pretextato dos Passos e Silva (? – 1886), Rio de Janeiro
Conhecido como Professor Pretextato, criou entre 1855 e 1856 uma escola, em sua própria casa, para meninos pretos e pardos. Sua postura e iniciativas foram pioneiras quanto ao letramento e alfabetização para a população negra no Brasil escravista.

image

Pretextato dos Passos e Silva retratado por DesaliFoto: Divulgação/Companhia das Letras

Ambrosina (séc. 19), Mogi Mirim e Taubaté (SP)
Ela foi uma ama de leite, figura muito presente no período escravista – embora não fossem só mulheres negras escravizadas que atuassem como tal. Ambrosina foi acusada de ”maus modos” e até de praticar feitiçaria contra as crianças que amamentava. Sua história revela o contexto doméstico de mulheres negras, submetidas a famílias que não eram, de fato, as suas.

image

Ambrosina retratada por Renata FelintoFoto: Foto: Divulgação/Companhia das Letras

Liberata (c. 1780-?), Paranaguá (PR) e Florianópolis (SC)
Liberata nunca deixou de perseguir sua liberdade. Possivelmente filha de africanos escravizados, ela chegou a se casar com seu senhor, que lhe prometeu a emancipação, mas foi perseguida por sua senhora. Depois de anos entre brigas na justiça, Liberta finalmente conseguiu comprar sua liberdade. Décadas depois, ela voltou à justiça para exigir a liberdade de seus dois filhos, que haviam sido submetidos de novo à escravidão.

image

Liberata retratada por Michel CenaFoto: Foto: Divulgação/Companhia das Letras

Enciclopédia negra: Biografias afro-brasileiras: de 1º de maio até 8 de novembro de 2021, na Pinacoteca de São Paulo, pinacoteca.org.br

Para ler conteúdos exclusivos e multimídia, assine a ELLE View, nossa revista digital mensal para assinantes