Como vamos morar, segundo a guru de tendências Li Edelkoort

O fim da sala de estar, Hemisfério Sul sob os holofotes e ancestralidade como tábua de salvação: em entrevista à ELLE Decoration Brasil, a designer que inaugurou a profissão de trend forecaster revela suas apostas.


Li edelkoort, uma mulher de meia idade, branca, abraçada a uma árvore
Foto: Thirza Schaap



Faz um bom tempo, a especialista em tendências Li Edelkoort passeava em um dia de sol pelos Jardins de Luxemburgo, em Paris, quando viu um ninho de passarinho. Por fora, parecia comum, com os clássicos gravetos. No seu interior, o pássaro tinha usado pazinhas plásticas de mexer café. A tradição e a modernidade, o natural e o tecnológico, o passado e o futuro, todos os temas com que ela vem trabalhando há anos, estava tudo lá, no galho de uma árvore. Li ficou tão impressionada que usou essa história, em 2003, para ilustrar um dos seus ensaios sobre design artesanal e sustentabilidade.

O passarinho avant-garde também poderia ser uma metáfora da própria Li, que nasceu com um pé na terra, em 1950, numa cidadezinha rural da Holanda, mas sempre viveu com a cabeça no futuro. Garota, com o pensamento lá longe, desenhou um vestido para um concurso de fantasias de carnaval na cidade. A roupa era séria demais para a folia, mas igual às que se viam nos desfiles mais modernos de Paris, e uma das juradas achou que ela deveria estudar moda.

Li virou designer, foi mesmo para Paris e não demorou a entender que a sua vocação era diferente: sabia olhar para as coisas do cotidiano e antever ideias, bem antes dos outros. Não parou mais de voar. Criou na França sua agência, a Trend Union, em 1986 (agora em Nova York), e inaugurou a profissão de trend forecaster (antecipadora de tendências), publicando livros e relatórios que anunciam cores, texturas, materiais, design, arquitetura e tendências que dominarão o mercado mundial em dois ou três anos.

Seus primeiros clientes eram só da moda, mas hoje as maiores empresas do planeta – Google, Nissan, Siemens e outras – pagam para saber o que ela tem a dizer. Li vive em aviões e mora em muitoscantos: Paris, Normandia, Amsterdã, Itália e Marrocos, de onde nos deu esta entrevista exclusiva.

Suas ideias vão brotando enquanto espia da janela do táxi, na conversa generosa com o aluno ou no show da banda de african music que ela aceitou amadrinhar. Li entende que o futuro do mundo pós-pandemia, no meio de guerras e com o aquecimento global, está num olhar carinhoso para o passado. “Encontrei isto (mostra uma ferramenta antiga de escavar) e fico pensando que temos de estudar a arqueologia, ver como eram inteligentes os primeiros homens e mulheres. O jeito de saber que somos essencialmente bons é voltar ao início. Assim a gente pode construir o novo.”

O líder e filósofo indígena Ailton Krenak diz que “o futuro é ancestral”. Você há muito tempo fala sobre a ancestralidade e está cada vez mais focada na cultura indígena, no que os indígenas podem nos ensinar também sobre tecnologia e design.
Concordo com ele. Quero criar um curso, um mestrado com designers e criadores indígenas, arquitetos e art designers, para entender e divulgar a sabedoria dos primeiros povos. Eles podem nos ensinar sobre agricultura, manejo da água, a cuidar do solo e muito mais sobre os materiais naturais, sobre o design. Essas questões emergem agora e todas as respostas para o futuro estão com eles. Precisamos mudar o jeito que fazemos as coisas e, quem sabe, salvar o planeta.

Você escreve sobre os indígenas e tantos outros artesãos e criadores dos países do Hemisfério Sul em seu novo livro, Proud. Está na hora de invertermos o olhar sobre o planeta?
Depois de 20 anos viajando por Índia, África, Brasil, penso que chegou a hora de o Sul mostrar sua energia e sua força criativa. O verão acontece no Sul do planeta antes do que no Norte, então por que a moda no Norte é que antecipa as tendências de verão? A designer e editora Lili Tedde, diretora do EdelkoortSth no Brasil, que teve a ideia de fazer o livro, cuidou da pesquisa dos artistas e criadores e da fotografia. Acredito que esse volume será uma referência para daqui a 20 anos, porque mostra como os diversos continentes do Hemisfério Sul são conectados em muitos pontos: a ancestralidade, a espiritualidade, as tradições e o uso das matérias-primas indígenas. Está na hora de o Norte se inspirar no Sul, onde estão as referências. É aí que tudo tem de começar, e não o contrário.

“Sempre vai haver pessoas que roubam ideias, claro, mas hoje isso não é mais tão possível, pois a internet aponta o dedo rapidamente para as cópias.”

O Norte já se inspirou no Sul em diversas ocasiões, mas continua dando as cartas sobre as tendências e dominando o mercado. Como estimular o interesse pelo Sul sem correr o risco do olhar colonizador?
Estamos em outro momento. É o mundo pós-pandemia, o mundo das emergências climáticas, e precisamos de outras soluções. Vejo que a energia criativa do Norte está incrivelmente escassa, as pessoas recriam, redesenham, reescrevem. É só “re”, “re”, “re”. Não faz mais sentido olhar para o Sul atrás do folclórico ou do étnico, como em tantas vezes, mas procurar uma nova interpretação pelas culturas locais, a originalidade de suas criações contemporâneas. Sempre vai haver pessoas que roubam ideias, claro, mas hoje isso não é mais tão possível, pois a internet aponta o dedo rapidamente para as cópias.

Durante o lockdown, você ficou confinada na África do Sul e acabou criando o World Hope Forum (um fórum anual para debater novos rumos para um mundo mais ético pós-pandemia e, diante das urgências climáticas, uma resposta irônica ao World Economic Forum). Você é otimista?
Sou menos otimista do que costumava ser, mas ainda tenho esperança. Sofro pelas pessoas quando vejo as mortes pelas guerras, o bullying na internet, a agressividade louca no Twitter. Sinto tanta dor por essa barbárie que nos cerca. Parece quase impossível viver no mundo hoje. Mas é importante acreditar que as coisas podem mudar. Até a guerra nos leva a buscar outras formas de pensar. Ainda há algo de bom nas pessoas, por isso digo para olhar para o passado e entender de onde a gente vem. É importante ter esse olhar arqueológico para não esquecermos quem somos e usá-lo para o futuro. O World Hope Forum é um ótimo veículo para mobilizar as pessoas em busca de soluções para um mundo melhor. No fórum que fizemos em Milão, debatemos o problema do plástico, mostramos a busca por materiais naturais, o que eu chamo de farm design, a compreensão do processo dos materiais desde a sua origem, nas fazendas.

Você propõe que a gente pare de consumir tanto e aponta para a busca de saídas mais éticas e naturais. Vamos mesmo mudar o estilo de vida? Pois, depois da pandemia, teve também a revenge spending, pessoas correndo para as lojas e torrando o cartão de crédito.
Tenho escutado muitas histórias de mudança. Muita gente diz “estou cheio dessa linguagem de marketing, não posso ser mais parte disso, quero salvar a minha alma”. Já existe uma migração expressiva das grandes cidades para o campo ou para cidades menores em busca de outro estilo de vida. As prioridades mudaram, as pessoas querem mais tempo, mais qualidade. Essa é uma mudança universal que vai transformar tudo, desde a cultura, que não será mais centrada nas grandes cidades, até a política. Vejo duas sociedades lado a lado: um grupo de pessoas consumindo cada vez mais, o que é ridículo, e um grupo crescente criando um mundo novo, de valorização do artesanal, de menos consumo.

“O quarto é a nova sala. E a cozinha basta para o resto da casa. Ninguém vai precisar mais de sala de estar, sala de jantar, essa bobagem toda.”

Como a gente irá morar? As nossas casas serão diferentes?
Com as pessoas vivendo nas cidades menores e no campo, o design urbano vai contar menos. Todo mundo vai se sentir mais livre para misturar estilos: velho e novo, artesanal e industrial, muitas fibras, materiais naturais, maior atenção a texturas. E espalhar mais arte pela casa. Montar mesas vai se tornar uma obsessão: louças, toalhas, copos, cores diferentes. As pessoas vão ser curadoras de sua casa. As revistas de decoração e o Pinterest serão ainda mais importantes. Nesse contexto, teremos dois ambientes que importam na casa: a cozinha e o quarto. No quarto, você trabalha, pesquisa, assiste a séries, fica com as crianças. O quarto é a nova sala. E a cozinha basta para o resto da casa. Ninguém vai precisar mais de sala de estar, sala de jantar, essa bobagem toda. Além disso, só o banheiro, um banheiro bacana, que seja um santuário. Vivo com esses três ambientes nas minhas várias casas espalhadas pelo mundo. Isso e uma luz generosa, com efeitos criados pela distribuição das janelas, por luminárias e espelhos, bastam para criar boas sensações e deixar a gente feliz.

Vamos usar quais materiais?
Acredito que teremos um superinteresse por materiais e texturas para fazer espaços que nos curem. Pisos, tecidos, paredes vão ser murais que contam histórias, nos quais as pessoas possam se expressar. Tons terrosos, como o ocre, e brancos, que lembram as pinturas de caverna, texturas mais orgânicas, criam alianças emocionais. Misturados a tons metálicos, eles trazem o sentido de inovação, originalidade, a criação de um mundo novo, mais humano. Os edifícios desumanos têm de ser banidos. Eu diria que as favelas têm mais senso de proporção, são mais bem construídas do que muitos prédios de habitação social. Tenho um sonho, um sonho pessoal, o de que um dia grandes corporações possam pagar caro por arquitetos geniais para construir habitações sociais que sejam de fato humanas, espaços incríveis para moradias populares. Quem sabe?

Esta reportagem foi publicada originalmente no volume 1 da ELLE Decoration Brasil. Para comprar seu exemplar, clique aqui.

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