Como forma de entender o mundo, as sociedades antigas olhavam para o céu em busca de respostas, e em civilizações como o Egito Antigo, o Sol era rei. “Tudo rodava em volta do Sol”, diz Maria Thereza David João, doutora em História Social pela USP (Universidade de São Paulo). “Naquela época, os ciclos naturais tinham um impacto muito grande na forma como as pessoas percebiam o mundo. O Sol, então, era visto como uma fonte de vida”, explica a especialista. Afinal, é graças à incidência dos raios solares que a vegetação cresce, por exemplo.
“Os egípcios tinham a concepção de que todos os seres vivos possuíam uma energia vital e de que era o Sol o responsável por ativar essa energia.” Mas não só por trazer o alimento o Sol era tão importante. Os egípcios antigos tinham muito medo da escuridão. “Porque ela representava muitos perigos”, afirma Maria Thereza. Assim, ele também era a ordem, a estabilidade.
A principal manifestação do Sol era Rá. Nas horas do dia em que ele não estava no céu, imponente, o mundo era tomado pela “profunda escuridão”. Enquanto isso, Rá e sua barca estariam vencendo perigos com a ajuda de outros deuses. “E quando ele voltava ao céu, era o triunfo do Sol perante o caos”, explica a historiadora.
“E como ele nascia e morria todos os dias, o Sol representava também a esperança de renovação diária.”
Bate pouco sol na casa da fotógrafa e socióloga Daniella Xavier. Olhando pela janela de seu apartamento na avenida São João, bem no Centro de São Paulo, ela sentiu um pouco de inveja dos vizinhos trepados na janela, em busca de um bronzeado, e clicou uma foto que viralizou nas redes sociais em abril, logo no início da quarentena. Nela, os moradores do edifício em frente ao de Daniella usam biquíni, roupas de banho e olham para o Sol como se fossem plantas, que viram suas folhas para a janela mais próxima, em busca de luz para fazer a fotossíntese. “Percebi que ir para a janela era uma possibilidade de resgatar um pouco do lado de fora”, diz ela.
Tudo indica que a fotografia rodou as redes sociais porque muita gente se identificou com essa busca por um lugar ao Sol. Criar um momento para aproveitar os poucos raios que entram dentro de casa e esquentar o corpo se tornou um hábito comum, amplamente compartilhado em stories e fotos no Instagram.
A designer de moda Natália Oikawa, 33, foi uma das retratadas na imagem de Daniella. Nascida no Recife, ela costumava renovar o bronzeado aos domingos, no Minhocão. “Mas como não podia ir até lá, comecei a usar a minha janela.” Até então, ela gostava muito da abertura para a rua, mas não com esse propósito. Com o início do isolamento, colocar o biquíni e estender a canga no parapeito para aproveitar a iluminação virou quase um ritual. “Me ajuda a fugir da movimentação da sala para o quarto, do quarto para a sala. Eu fico um pouco mais feliz e dou um respiro diante da situação toda.”
A jornalista Elisa Soupin, 31, coloca o telefone para despertar mais cedo em dias de Sol. “Porque no meu apartamento ele bate apenas pela manhã, então acordo para ficar deitada, ouvindo um podcast, lendo um livro.” Mais do que apenas se esparramar em uma canga ou na varanda, ela faz contorcionismo para bronzear o bumbum. “Coloco as minhas pernas para fora da janela, no décimo primeiro andar”, ri. O esforço vale a pena. “Se tem Sol, fico com humor muito melhor. Esse momento determina como o meu dia vai ser.”
Não é exagero de Elisa. Uma pesquisa feita por cientistas da Universidade Brigham Young aponta que a luz do Sol alivia o sofrimento emocional. Tanto que os problemas de saúde mental tendem a aumentar nas épocas do ano em que há menos horas de luz e a melhorar quando a claridade dura mais tempo. Da mesma forma, também existe o transtorno afetivo sazonal, um estado depressivo muito comum durante o inverno.
A estudante de enfermagem Janaína Garrido Angeli, 23, conhece a sensação. Ela costumava reclamar do Sol forte do Rio de Janeiro. Hoje, sente falta dele. Uma árvore em frente à janela impede que ele entre diretamente em seu apartamento. “O único raio de Sol que vem dura cinco minutos, bem pela manhã, apenas no parapeito”, lamenta. Antes, a característica não a incomodava, mas tem feito diferença durante o isolamento. “Parece que estou mofando em casa.”
O mal-estar de Janaína tem a ver com os efeitos biológicos da ausência o Sol em nosso organismo. O médico psiquiatra Luiz Vicente Figueira de Mello, supervisor do Programa de Ansiedade do Instituto de Psiquiatria do HC-FMUSP (Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo), explica que a luz interfere diretamente no nosso humor. Isso porque, quando estamos em um ambiente sem luminosidade, há mais produção de melatonina, hormônio que prepara o nosso corpo para dormir. O Sol, por sua vez, nos ajuda a despertar e tornar nosso organismo mais ativo.
Cena do filme “Saudades”, publicado no ELLE Stories.Foto: Camila Cornelsen e Thales Banzai
Além disso, o Sol ajuda a pele a absorver minerais e vitaminas necessárias para o bom funcionamento do corpo, como a já conhecida vitamina D. “E nesse momento em que devemos estar com o sistema imunológico muito bom, se expor ao Sol se tornou mais importante”, complementa o professor John Fontenele Araújo, do Departamento de Fisiologia e Comportamento da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
Ou seja, não é preciso que a Organização Mundial da Saúde recomende o banho de Sol, o nosso corpo sabe de tudo isso. Ele está clamando por um pouco de Sol pelo bem de nossa saúde mental e física. Não é apenas uma pose que fica bonita no Instagram, os minutinhos de bronzeado em casa são realmente necessários. “É uma resposta comportamental para uma questão fisiológica”, diz Araújo.
Mesmo antes da pandemia, a iluminação natural sempre foi uma preocupação da arquitetura. Plantas arquitetônicas de casas e projetos comerciais levam em conta o posicionamento dos imóveis em relação ao Sol e como intensificar a luminosidade. E esses cuidados devem se tornar ainda mais importantes após a pandemia, prevê Priscilla Bencke, especialista em neurociência aplicada à arquitetura. Além dos estudos sobre os efeitos fisiológicos da luz, a razão seria também a conexão do ser humano com o que é natural. “O design biofílico mostra que, por mais que uma pessoa esteja isolada em um ambiente construído, por uma herança genética a gente precisa ter uma conexão com a natureza. Seja na forma de plantas ou na de luz”.
É esse resgate com a natureza que pauta os banhos de sol da Natália Oikawa. “Em Recife, eu conseguia ver o horizonte, o que não acontece em São Paulo. Estar na janela, com a minha canga estendida, me dava a sensação de que finalmente poderia vê-lo. Até brincava que, às vezes, eu sentia a brisa da praia.”
“As pessoas estão em busca de liberdade. Ir para a janela é, na minha visão, uma forma de escapar do enclausuramento”, comenta o psiquiatra Luiz Vicente. “Estamos vivendo uma necessidade de adaptação em relação não só à liberdade, mas à restrição do acesso social. E, quando você fica em uma janela não é só o Sol, também tem um contato com seu vizinho, a sua cidade.”
Para Natália, estar em contato com o Sol tem também muito a ver com estar em contato com a sua humanidade. “Nós sempre precisamos dele, mas antes a gente não tinha tempo para observar o movimento da luz em casa, no quarto, porque estávamos na correria.” Janaína, por exemplo, coordena a saídas para o supermercado com os momentos de sol do dia. “Eu não sabia o valor que o Sol tem e hoje fico procurando uma frestinha dele em qualquer lugar”, diz a estudante de enfermagem.
Daniella Xavier acredita que a ligação do ser humano com o Sol, deus no Egito Antigo e ainda rei dos astros, não é à toa: “O calor traz para as pessoas mais possibilidades de vida, o Sol amplia possibilidades, renova as nossas forças. É uma forma de se fortalecer nesse desafio todo.” Elisa continua: “Parece cafona, mas sabe aquela coisa de que o Sol há de brilhar mais uma vez? O dia está bonito, mas tenho que ficar em casa, só que é reconfortante pensar que esse Sol vai se repetir muitas vezes e, pelo menos, estou em contato com ele neste momento.”