Muita coisa mudou no mundo dos filtros de realidade aumentada desde que, em 2016, usuários do Snapchat ficaram obcecados com um efeito que colocava uma espécie de máscara de cachorro em seus rostos. Algumas pessoas chegaram a manter o aplicativo no celular, mesmo já não sendo ativas na rede social, apenas para usar esse filtro enquanto ele não existia nos stories do Instagram.
Na época, dezenas de matérias surgiram tentando entender o fenômeno: por que tanta gente estava tão interessada em aparecer com orelhas de cachorro, um nariz imenso e uma língua gigante que saía de suas bocas quando elas falavam alguma coisa? A conclusão que me parece mais aceitável é a de que as pessoas simplesmente se sentiam mais bonitas usando aquele efeito já que, além dos “acessórios de cachorro”, ele acabava agindo em alguns dos incômodos mais comuns quando falamos de beleza: deixava a pele mais lisa, escondia o nariz, eliminava olheiras e ainda esculpia o rosto do usuário (não exageradamente, como se a pessoa tivesse pesado a mão no Facetune, mas o suficiente para que seu rosto ficasse mais harmônico e ela enxergasse seus ângulos de forma mais fotogênica).
Quatro anos se passaram, o Instagram agora é a terra dos filtros, e não é mais preciso se esconder atrás de um focinho para ter seu rosto moldado — existem incontáveis opções que vão de pequenas alterações a mudanças mais extremas e qualquer pessoa pode subir um filtro na plataforma para aprovação. Um dos primeiros a ganhar projeção foi o Beauty 3000, criado pela artista francesa Johanna Jaskowska, que deixava o usuário com um rosto plastificado meio holográfico e que caiu no gosto de modelos como Kendall Jenner, Teddy Quinlivan e Ashley Graham. Por aqui, me lembro bem de abrir os stories e me deparar, durante meses, com pelo menos uma pessoa usando ele por dia.
O debate sobre os filtros esquentou, no entanto, quando começaram a surgir opções que simulavam cirurgias plásticas extremas. O Instagram baniu esse tipo, mas não podemos reduzir o impacto dos filtros a apenas essas transformações radicais. Se no Snapchat, lá em 2016, até aparentemente inofensivas coroas de flores despertaram discussões de racismo (já que elas vinham com uma camada clareadora embutida), imagine o que podem fazer filtros que foram criados com a intenção de “embelezar” as pessoas, uma das categorias mais populares atualmente.
“Existe um fenômeno chamado ‘Snapchat dysmorphia’, nome dado a um estudo de psicólogos sobre os efeitos que esses filtros que modificam o rosto das pessoas tem na autopercepção delas”, aponta Lydia Caldana, futurologista, pesquisadora cultural e fundadora do Future Resources sobre aqueles que aumentam os olhos, afinam narizes e diminuem bochechas. “Por um lado, os filtros podem servir para dar uma pequena acariciada no nosso ego, na nossa autoestima, mas por outro, isso pode virar uma obsessão ou até uma frustração por você acabar se vendo demais de um jeito que, no mundo físico, você não é.”
O que Lydia ressalta tem se refletido nas salas de cirurgiões plásticos. Dados da Academia Americana de Cirurgiões Plásticos mostram que, em vez de levarem fotos de celebridades com quem gostariam de ficar parecidas, pacientes passaram a apresentar suas próprias selfies alteradas pelos filtros. Nós exploramos esse fenômeno na matéria “Os filtros do Instagram estão mudando as pessoas também na vida real?”, na estreia do nosso site.
“Algumas pessoas usam filtros que mudam completamente seus rostos como um deboche delas mesmas, mas outras adotam quase uma nova identidade online”
Por isso, não foi surpresa quando uma pesquisa divulgada pela revista britânica Dazed revelou que 20% dos 3.510 millennials e representantes da Geração Z entrevistados usaram as palavras “dishonest” e “damaging” para classificar o uso de filtros. Paradoxalmente, porém, os participantes afirmaram na mesma pesquisa que eles são uma parte essencial de como, em especial os integrantes da Geração Z, se expressam online. “Muitas vezes, esses filtros agem em um contrassenso. Por um lado, jovens estão buscando autenticidade e os usam para isso, mas por outro, existe toda essa coisa da comparação. Você se compara aos outros, os outros se comparam a você. Junte a isso a atual cultura do cancelamento e do linchamento, e você se sente ainda mais pressionado a mostrar o que considera que seja a sua melhor versão nas redes sociais. É sim uma dualidade para o jovem buscar essa autenticidade e querer se mostrar sem ‘defeitos'”, diz Lydia.
Mas uma crescente onda de artistas passou a utilizar essa tecnologia como uma plataforma de experimentação e contestação, mostrando que ela pode ser aplicada para desenvolver peças que nos fazem refletir sobre transformações corporais, beleza, identidade e até sobre uma mudança na tradicional passividade de consumir arte para algo realmente interativo e ativo.
Usuários fazem seus próprios filtros…
Variando do surreal e do absurdo, passando pelo cômico e até pelo aterrorizante, os filtros permitem que os usuários flertem com uma variedade de personas. Alguns deles, como os imersivos, estão mais para ferramentas que abrem possibilidades do que para uma experiência singular. Um indivíduo com acesso a esses filtros pode se expressar, colaborar e mostrar múltiplas versões dele mesmo, e essa forma de produção e compartilhamento é algo novo e, de certa forma, acessível na criação de arte.
Impossibilitado de fazer uma mostra física pela pandemia, o artista ucraniano Nichola Koshosh escolheu “expor” suas criações por meio de filtros que aplicam quadros e esculturas ao ambiente em que as pessoas se encontram. Um outro exemplo que mostra como o meio está sendo reconhecido como uma plataforma artística foi feito pela agência britânica HERVISIONS, que promoveu, em 2019, um workshop na galeria Tate Modern focado exclusivamente na criação de filtros de realidade aumentada para Instagram. Na sequência, ele virou uma exposição chamada Face Up, que destacou o quanto as ferramentas são versáteis e estimulantes mesmo para quem não tem experiência.
“Quando eu descobri esses efeitos, tudo pareceu muito louco. Eu não tinha nenhuma ideia de como criar esse tipo de coisa, e foi inacreditável perceber que eu poderia me tornar uma artista de realidade aumentada. Eu simplesmente instalei o programa e comecei a fazer experimentações nele”, conta a designer Aliya Ataulova. A jovem, baseada em Bordeaux, na França, angariou mais de 100 mil seguidores interessados em seus filtros de maquiagem diferentões e colaborações à distância com marcas como a Nars.
Um dos principais nomes da cena é a parisiense Ines Alpha, especializada em 3D. No começo, era preciso seguir as pessoas para poder usar seus filtros, o que fez com que Ines ganhasse milhares de seguidores. As marcas logo chegaram, e ela conseguiu fechar trabalhos com gigantes como Dior, Selfridges, Nike, além da capa do álbum Charli, da cantora Charli XCX, e uma colaboração com outro famoso produto virtual desses tempos, a boneca/influenciadora Miquela. Ines diz que aprendeu tudo sozinha, navegando por centenas de tutoriais no YouTube e se aventurando em programas como Spark AR e Lens Studio.
Caminho parecido seguiu Igor Saringer, o segundo brasileiro a possuir filtros próprios no Instagram (depois da Anitta). Quando apenas celebridades como Rihanna e Kylie Jenner eram conhecidas por possuir os seus, ele já estava atrás de fazer um. O jovem de 23 anos conta que a ideia do primeiro, o “plastificado”, veio de seu gosto por maquiagens e cremes que deixam o rosto mais brilhoso, o famoso efeito glossy — similar ao do Beauty 3000. Para esse, ele fez uma parceria com um desenvolvedor estrangeiro, mas logo passou a estudar e desenvolver os seus, se consolidando como um dos principais nomes da área no Brasil.
“Antes mesmo de ter um filtro próprio, eu já sabia que isso poderia me trazer seguidores e engajamento. Eu sabia que, se fosse uma das primeiras pessoas a ter um, eu ia crescer no Instagram. Dito e feito. Logo comecei a estudar como fazer os meus para não depender de ninguém”, diz ele que considera que qualquer pessoa pode aprender e se tornar um artista de filtros de realidade aumentada. “Tudo depende do que você quer fazer. Se for algo simples, você consegue só no programa, se não, precisa de conhecimentos básicos de java script, modelagem 3D e outros softwares. Mesmo no programa do Facebook, você precisa trazer tudo ‘de fora’, do Photoshop, Procreate (iPad), Blender 3D, etc. Se você tiver esses recursos, consegue desenvolver sem problemas.”
E as marcas vêm logo atrás
De acordo com a Poplar, plataforma internacional especializada em AR, a projeção é de que até 2022 3,5 bilhões de pessoas usem realidade aumentada em seus celulares, o que significa 44% da população mundial, e que os gastos com anúncios usando essa tecnologia podem chegar a mais de US$ 2 bilhões. Igor, por exemplo, relata que sua vida mudou muito depois que entrou nesse mercado e que, há um ano, desenvolver filtros virou um trabalho para ele. “Quando as marcas sabem utilizar essa ferramenta para agregar o que elas querem passar na mensagem, tudo flui bem. Eu enxergo um futuro muito próspero para esse meio. Em um ano, tive um resultado ótimo e trabalhei com marcas com as quais achei que nunca fosse trabalhar. E não só como um influencer, divulgando produtos, mas com desenvolvimento, criação. Isso tudo me deu a oportunidade de um novo negócio”, relata ele. Igor já fez parceria até com a Disney ao desenvolver um filtro para o filme Malévola, que ele considera ter sido uma das experiências mais bem-sucedidas. “Com o filtro, você se vê no personagem e compartilha conteúdo direto ou indireto do filme.”
Desde que Kylie Jenner criou filtros para divulgar sua linha de batons, em 2018, outras marcas logo começaram a testar a realidade aumentada para que clientes pudessem provar virtualmente suas maquiagens. Afinal, o “filtro da Kylie” teve um efeito similar ao do cachorrinho do Snapchat: ficou tão popular que ainda hoje existem pessoas indignadas deixando queixas até no Reclame Aqui pelo filtro não estar mais disponível. Na moda, algumas investidas usam a opção para que as pessoas provem peças de brincadeira, como têm feito a Dior e a Fenty. Por enquanto, apenas acessórios como óculos, chapéus, brincos e colares estão disponíveis, mas mais como uma ação de marketing do que de vendas. Enquanto a tecnologia não evolui fazendo com que as peças de roupas e objetos pareçam realmente verdadeiros no corpo das pessoas, a Gucci foi uma das marcas que apostou na novidade de uma forma criativa, convidando a jovem artista russa Polina Osipova para criar o filtro “I See You”, que levantou um debate sobre vigilância a partir de um filtro que mostrava uma câmera de “pérolas” na cabeça das pessoas.
Igor Saringer é um dos principais nomes brasileiros na criação de filtros de realidade aumentada no Instagram. @igorsaringer
Por que amamos tanto os filtros?
O sucesso dos filtros tem muitas explicações, assim como existem muitos tipos deles: os extremamente realistas, os surrealistas/artísticos, os de joguinhos, os imersivos… Eles viraram formas de expressão e, neste momento de pandemia, foram mais um recurso de entretenimento e até de comunicação — quem não experimentou ou pelo menos ficou tentado a responder um quiz de qual personagem de série você é ou fazer um desafio de amigos/casal?
“Começou como brincadeira, uma florzinha no cabelo, uns cílios a mais, mas hoje os filtros podem falar muito de identidade, de posicionamento político e de capital cultural. Algumas pessoas usam filtros que mudam completamente seus rostos como um deboche delas mesmas, mas outras adotam quase uma nova identidade online e levam aquilo muito a sério”, diz Lydia.
Para o bem e para o mal, os filtros de realidade aumentada nos deixam repensar nossos corpos sem compromisso. Com eles é possível criar sonhos surrealistas, divertidos e imaginar interferências físicas que desafiam a biologia. Pense em alguns filtros populares atualmente, como os que criam imagens repetidas de partes do nosso corpo, os que inventam universos cheios de glitches ou os que deformam nossas características até ficarmos irreconhecíveis.
Na era das mídias sociais, as identidades digitais, que já são fluidas, ficam ainda mais flexíveis com os filtros de AR: hoje eu posso ser uma elfa, amanhã, colocar uma tatuagem na minha testa e, no dia seguinte, provar uma maquiagem bem tradicional com um delineado gatinho aplicado perfeitamente.
O pesquisador Jeffrey Arnett, autor do livro Emerging Adulthood: The Winding Road from the Late Teens Through the Twenties e especialista no que ele classifica como “a idade adulta emergente” (18 a 25 anos), diz que experimentar com a identidade é um importante estágio do desenvolvimento das pessoas quando elas entram nos 20 anos. Não à toa, de acordo com uma pesquisa do Pew Research Center, o maior uso desses filtros é feito exatamente por pessoas entre 18 e 24 anos.
O perigo, no entanto, é realmente ficar preso em uma imagem digital e passar a acreditar que aquilo que colocamos na internet nos define por completo, principalmente quando falamos de filtros realistas, como os tais “embelezadores”.
O mais chocante é que parece estar cada vez mais fácil cair nessa armadilha. Sem sair muito de casa e vendo as pessoas apenas pelas telas, é possível nos questionarmos sobre quem somos de verdade: o ser humano que está neste momento de pijama e pantufa ou o que está aparecendo com a maquiagem impecável na timeline graças a um desses filtros?
O que vivemos online deve passar, cada vez mais, a ser confundido com o que vivemos offline. A futurologista Lydia Caldana dá o exemplo de um caso que aparece na série “Seguindo os Fatos” do BuzzFeed News, disponível na Netflix. Em um episódio, os jornalistas entrevistam uma influenciadora de menos de 18 anos que mora na Flórida e vive dentro de seu apartamento fazendo vídeos. Ela conta que, por mais que seja inverno na Flórida, precisa aparecer de shorts, camiseta e usando filtros que imitam a luz do sol porque as pessoas têm um imaginário de que na Flórida é sempre calor. “Algumas pessoas usam e abusam tanto dos filtros que, quando elas saem na vida física, elas não se reconhecem e não são reconhecidas de tão distante que é uma pessoa da outra”, alerta.
A linha que separa o que é real do que é virtual pode ficar cada vez mais embaçada, e uma pista disso é o que está acontecendo no universo da maquiagem. Ines Alpha, por exemplo, se considera maquiadora sem nunca ter tocado em pincéis. Ela diz que é uma “3D make-up artist” e aposta que a maquiagem em três dimensões será o futuro da beleza. “Na sociedade de hoje e, mais importante, na de amanhã, as pessoas vão ter o desejo constante de se transformar, seja usando os filtros de redes sociais, seja usando técnicas avançadas de maquiagem”, declarou ela em entrevista à i-D.
Historicamente, a arte surrealista, que surgiu no entreguerras foi também uma reação aos horrores desse período, uma forma de escapar da dura realidade das notícias brutais. Ela chegou em um momento muito particular, difícil, e que pode se assemelhar ao que andamos vivendo e sentindo. Imaginação, sonho e a criação de uma “realidade paralela” foram características marcantes desse movimento, que talvez sejam as sensações que esses artistas digitais querem explorar nas suas novas formas de fazer arte. Que estejamos sãos, salvos e fortes para usufruirmos do melhor dessa tecnologia sem cair nas armadilhas.