A eterna discussão sobre quem mais influencia na criação de tendências, a passarela ou a rua, parece estar ficando para trás. Ela ganhou uma forte concorrente: os dados. Também conhecidos pela expressão em inglês
big data, essa grande massa de dados digitais sobre todos nós já foi comparada ao petróleo, tamanha a sua valiosidade. Explorá-los, no entanto, é bem mais acessível que ter sua própria plataforma petrolífera. Tanto que diversas indústrias — inclusive a da moda — estão se dedicando a obter, armazenar, classificar e organizar dados dos seus consumidores. Ao contrário do petróleo, os dados não são raros ou limitados: geramos rastros informacionais o tempo todo ao usar celulares, computadores, entrar em recintos monitorados por câmeras, validar a entrada no condomínio usando biometrias e, se duvidar, até enquanto dormimos, com aparelhos de vestir que monitoram o nosso sono.
Controle o uso dos seus dados para mudar suas vitrines virtuais
Se as suas vitrines virtuais estão mostrando sempre o mesmo tipo de coisa, talvez você, sem querer, tenha montado uma
bolha fashion. Isso significa que o perfil que os dados fizeram sobre você tenderá a mostrar sempre uma mesma tendência de produtos — da mesma forma que sua bolha ideológica faz você acreditar que a maioria das pessoas segue valores iguais aos seus —, limitando suas chances de encontrar algo que não tenha procurado antes, que não saiba que existe ou que apenas seja inesperado. “Quem reconhece a existência desses padrões acaba criando o hábito de ativamente interferir nesses filtros para encontrar novidades”, explica a professora da UFRJ, citando como estratégias visitar sites com outros logins, limpar cookies e cache ou até mesmo acessar a web por meio de dispositivos de terceiros.
Essas estratégias funcionam em nível individual, dando uma “renovada” no visual do que aparece para você, mas a maior parte dos especialistas entrevistados concorda que o uso de dados nos negócios é uma tendência irrefreável e que não deveria ser uma batalha pessoal.
“Apoiar-se muito em dados para definir fórmulas para a produção incorre no mesmo erro da formação tradicional do design de moda, que resulta na ausência de identificação da moda brasileira com sua diversidade”
É por causa disso que é importante que haja um movimento social mais amplo para resguardar os dados dos consumidores, como propõem diversas leis, como GDPR, na Europa; o California Consumer Privacy Act, no estado da Califórnia, nos EUA, e a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), aqui no Brasil. De modo geral, essas legislações propõem a regulamentação da forma como as empresas podem capturar, armazenar e manipular nossos dados, além de determinar formatos e processos para que cada um de nós possa solicitar a remoção dos nossos dados das plataformas. No Brasil, a aplicação da LGPD foi adiada para 2021, mas algumas movimentações já podem ser vistas, especialmente com marcas europeias, que já funcionam sob as regras estabelecidas pela GDPR. “A grande discussão agora será sobre a transparência das empresas sobre a administração e a utilização desses dados. Se essa relação não for clara, sem dúvida vai se tornar um problema”, alerta Julia, da WGSN.
Não é à toa que gigantes da tecnologia, como Amazon, Facebook e Apple tiveram de prestar depoimentos ao Congresso norte-americano em julho de 2020 para esclarecer como têm feito uso dos dados que circulam em suas plataformas, de forma a provar que não estão violando as leis, especialmente as que protegem a justa concorrência. Enquanto Amazon e Facebook ficam na defensiva, a Apple tem se mostrado mais pró-ativa, prometendo para a próxima atualização do iOS a inclusão de avisos na tela quando um aplicativo ou serviço estiver rastreando a localização ou acessando os dados pessoais do usuário. No Brasil, marcas que fazem uso constante dos dados também estão se movimentando para encontrar formas de obter o consentimento dos usuários para essa captura. Segundo Wellington José, diretor de experiência do consumidor da Amaro, a marca brasileira acessa diversos dados das consumidoras para a criação das suas coleções — que vão de informações cadastrais, dados de reputação e de navegação até o histórico de compras — mas ressalta que sempre o faz com o consentimento das compradoras. “Explicamos o uso dessas informações na nossa política de privacidade, e em algumas coletas, como as de reputação, pedimos a autorização das clientes antes de publicá-las no site”, reforça o executivo.
Parece pouco, mas só a tomada de consciência de que estamos sujeitos à influência desses filtros de perfis por causa dos nossos dados pessoais já ajuda a diminuir o controle que os algoritmos podem ter sobre os nossos comportamentos. No livro
10 motivos para deixar as redes sociais agora, Jaron Lanier explica que existem muitas decisões de design digital que são feitas para manipular nossas sensações e sentimentos, de maneiras que também podem ser aplicadas pelas marcas para nos influenciar a comprar (o que impulsiona as vendas) ou até eventualmente determinando qual tendência de estilo combina ou não “com os seus dados”.
“A grande discussão agora será sobre a transparência das empresas sobre a administração e a utilização desses dados. Se essa relação não for clara, sem dúvida vai se tornar um problema”
“A maioria das pessoas não sabe que está sujeita a esse tipo de filtro baseado no seu perfil de dados”, aponta Fernanda. Em um paralelo com uma situação do mundo físico, a professora compara a indicação de compra feita por uma vendedora em uma loja, que pode recomendar uma peça ou estilo diferente. “Nessa situação, eu sei que a vendedora está escolhendo por mim, mas em um site há essa suposição de que não há intermediação porque o intermediador está invisibilizado, e em alguns casos nem sabemos que ele existe”, alerta.
Saindo do viés em busca do inusitado
Para Helen Takamitsu, doutora em engenharia de produção com foco no setor fashion, essa “bolha da moda” sempre existiu, mas antes do
big data ela se baseava na persona de uma marca, que nem sempre combinava com especificidades regionais de diferentes partes do globo. “O sistema da indústria da moda é complexo, com muitas tendências e estigmatizações que foram definidas por grandes grupos ou investidores”, rememora a pesquisadora. O uso de dados na indústria da moda apenas acirra essa situação, reforçando ainda mais os vieses e preconceitos que já existiam.
“Essa nova estratégia de se apoiar muito em dados para definir fórmulas para a produção e a comercialização incorre no mesmo erro da formação tradicional do design de moda, que resulta na ausência de identificação da moda brasileira com sua diversidade e especificidade”, indigna-se Carol Barreto, produtora de moda autoral e também professora da UFBA. Avessa à ideia do uso dos dados para buscar “fórmulas de sucesso”, Carol vê um grande risco de criar uma versão ainda mais complexa do processo predatório e colonizatório que a “moda branca” produziu no mundo todo.
“Muitas vezes, as modelagens acabam criadas para quem é alta e magra, o que reforça preconceitos. Mas isso não é devido simplesmente ao uso dos dados”, rebate Takamitsu, lembrando que marcas de luxo e grandes varejistas já perceberam a necessidade de garantir um equilíbrio entre produtos mais “vendáveis”, que podem ser criados a partir de tendências de dados capturados, e o desenvolvimento de itens diferenciados e inovadores, que aguçam o interesse dos consumidores e da mídia. Afinal, é possível usar o mesmo
big data da eficiência de vendas para criar coleções inusitadas, buscar inspirações diferentes e fazer o máximo para furar a própria bolha de referências.
Provocada pela reportagem sobre quais seriam seus “dados dos sonhos” na hora de criar coleções autorais, Carol Barreto não titubeou: “Gostaria de acessar dados de culturas mais distantes da minha, informações de Joanesburgo, de Dakar, da Angola, da Nigéria, de jovens, para entender como interagem e o que consomem”, respondeu de bate-pronto. Dá para usar o feitiço dos dados para furar a própria bolha que eles criam.
Saber consumir e discernir
O uso de big data na indústria da moda parece ser inescapável. Com as pressões da economia, o varejo de vestuário vai fazer o seu melhor para triunfar nas vendas com menos resíduos ou perdas, otimizando seus estoques para vender mais e melhor. Mas as tendências da estação e as novidades das passarelas continuarão surgindo pela intervenção e criatividade humanas, capazes de pensar em peças transgressoras como uma Tabi Boot, um clássico da Maison Margiela, que nunca seriam sugeridas por um algoritmo, mas que marcam a moda de formas inexplicáveis pela tecnologia. É claro que a arte da moda pode se apropriar da aplicação de dados de formas criativas, como sugeriu Carol Barreto, mas em geral são as ideias mais fora das curvas dos gráficos de dados — e, talvez por isso, menos economicamente rentáveis – que se tornam memoráveis.
Com pandemia ou não, os consumidores seguirão buscando opções agradáveis (e digitais) de compras e novas maneiras de expressão por meio da moda. Novas formas de criar e consumir tendências vão surgir — e algumas delas ainda nem conseguimos prever —, mas se existe algo que será um pretinho básico em qualquer armário de consumo será a consciência. Mais do que saber a procedência das peças, será importante ter atenção à forma e aos motivos pelos quais algo está conquistando nossos gostos e bolsos.
“O mínimo que precisamos conquistar é clareza e transparência sobre os processos, para poder negociar sobre quais parâmetros queremos consumir”, sintetiza Fernanda. Compreender que os rastros dos seus dados digitais podem aproximar ou afastar determinada tendência fashion de você, por vezes fazendo isso de forma absolutamente enviesada, colocando dados como sua estatura, silhueta, cor de pele ou tipo de cabelo como impeditivos de consumo e exposição, pode ser o segredo para não se deixar levar (ou afastar) do tie dye, da Tabi Boot ou de quaisquer novidades da moda. É importante não deixar que um dado dite o que é tendência para você.