Elas foram forjadas nos becos e vielas das comunidades e nos bailes cariocas. Insistiram na música, apesar do cotidiano duro, da falta de oportunidades, das jornadas duplas ou triplas, do machismo ao redor. Se o funk ainda tem que batalhar contra o preconceito e as tentativas de criminalização, no bonde das mulheres a luta pede força redobrada. Nomes como Tati Quebra Barraco, Deize Tigrona e Valesca Popozuda foram fundamentais para avanços e transformações no movimento. E as conquistas dessas revolucionárias reverberam muito além dos batidões dos bailes.
As funkeiras confrontam a lógica dominante masculina. Conseguiram se apropriar de palavras que antes eram utilizadas como mecanismo de opressão contra as mulheres e viraram o jogo. “Seja uma piranha, mas não esqueça dos estudos. Seja uma piranha formada”, é uma das frases épicas de Tati Quebra Barraco, responsável pelos sucessos “Boladona” e “Dako é bom”, entre outros.
Valesca Popozuda levou o público ao delírio com hits como “Agora eu sou piranha e ninguém vai me segurar”, da Gaiola das Popozudas. Em entrevista à ELLE, Valesca conta que em dado momento percebeu que os homens podiam cantar sobre mulheres e sobre os mais diversos assuntos e a mulher “não podia falar nada”. Resolveu que, com ela, a coisa não seria assim. “A mulher é livre para falar, para sentir prazer e para dizer o que quer. A liberdade vai ser sempre a chave de tudo”, diz Valesca.
Desde o começo do movimento funk no Brasil, as mulheres estiveram sempre muito ativas. “Quem diz que não está muito enganado”, afirma Taisa Machado, 35 anos, conhecida como Chefona Mermo. Taisa é autora do livro O Afrofunk e a ciência do rebolado e idealizadora do Afrofunk, uma plataforma com foco em equidades racial e de gênero, que usa o funk como base para seus conteúdos e ações, como oficinas de dança que buscam repensar o corpo. “Eu acho que as mulheres do funk fizeram uma revolução sexual no Brasil, definitivamente”, diz ela. E fala com conhecimento de causa.
Ao longo de cinco anos de existência, o Afrofunk se conectou com aproximadamente 5 mil mulheres por meio de suas aulas. Nesse período, ela pôde observar várias mudanças no público, que ela atribui ao funk. “Elas vão lá em busca de uma conexão mais sexual com o corpo delas. Poder falar ‘buceta’ ou ‘chupa minha buceta’, poder rebolar e trepar melhor. Muita mulher com mais de 40, 50 anos percebe que não mexe o quadril e que, possivelmente não tem uma atividade sexual tão prazerosa quanto poderia ter”, relata Taisa. “Eu vejo que essa foi uma revolução das mulheres do funk. Da Valesca Popozuda, lá atrás, falando que queria trepar, que queria gozar. Da Deize Tigrona e de todas as outras que vieram construindo isso, juntamente com as mulheres na dança, que, com o corpo, continuaram a conversa que as mulheres começaram no palco.”
Ela pondera, no entanto, que numa sociedade estruturalmente machista e racista, o funk também pode reproduzir opressões e nem sempre apresenta uma sexualidade saudável. O que torna a presença feminina ainda mais importante nesse contexto. “As mulheres têm voz no funk e precisam ser exaltadas pelo trabalho delas”, diz Taisa.
DNA das comunidades
Foi nos anos 1970 que as primeiras batidas do funk americano chegaram no Brasil e viralizaram nas comunidades cariocas através dos bailes. Não demorou muito para colocarmos nossa identidade cultural e transformar as batidas originais em um estilo totalmente novo e genuinamente nacional. O funk brasileiro, portanto, é nascido nas favelas e carrega em si o DNA das comunidades.
Desde que DJ Marlboro lançou o LP Funk Brasil, em 1989, a importância do estilo na cena musical do país só cresceu. Nos anos 1990, artistas como Claudinho e Buchecha conquistaram o grande público com o funk melody (vale lembrar que o funk apresenta várias vertentes, como o brega funk, o funk ostentação, o funk proibidão e o eletrofunk, entre outros).
Mas o estouro veio mesmo nos anos 2000, com o surgimento de grandes nomes da cena carioca, alavancados pela gravadora e produtora Furacão 2000 – que tem como figura-chave uma mulher, Verônica Costa. Conhecida como Mãe Loira, Verônica foi uma das idealizadoras da Furação 2000 e, como vereadora, criou o projeto de lei que deu à dança passinho o título de Patrimônio Imaterial do Rio de Janeiro.
De acordo com uma pesquisa do Datafolha, o funk é o segundo estilo musical mais ouvido do país, atrás somente do sertanejo. É ainda o estilo musical brasileiro mais escutado em países estrangeiros. Uma amostra desse alcance: o produtor de funk Kondzilla detém o canal de YouTube com mais inscritos no país (61,4 milhões) e atinge visualizações na casa dos bilhões.
“Kondzilla tem levado o funk para outra estrutura, apresentando uma versão quase hollywoodiana”, diz a pioneira Deize Tigrona, que enfrentou um cenário bem diferente no início da carreira. “Quando eu comecei, a gente gravava atrás das caixas de som. A gente não tinha estúdio, não tinha grandes equipamentos, não tinha estrutura para gravar”, relembra. “A gente movimentava a van, movimentava os caras que carregavam a caixa de som, pagava o DJ, tudo por nossa conta. Fazia o baile funk dentro da comunidade.” Agora, com grandes produtoras envolvidas, financiamento de marcas e outros investimentos, Deize avalia que o funk está em outro patamar: “Está chegando em um nível que meninos não pensam mais em ser somente jogador de futebol, eles pensam em ser MC’s”.
Ainda assim, pondera o Deize, o funk continua a ser desvalorizado e não consegue atingir o prestígio que tem, por exemplo, a MPB. “O Brasil ainda é racista. Quando se fala em funk, se fala em favela. E quando se fala favela, o significado é favelado. Então, quando se fala favela e favelado, significa que o gênero musical não presta, que o funk não presta, sabe?”, diz Deize. Ela não está exagerando: em 2017, houve até uma tentativa de emplacar um projeto de lei que classificava o funk como crime de saúde pública à criança, ao adolescente e à família. A proposta chegou a ser debatida no Senado, mas acabou rejeitada.
Ao contrário do que pensam os detratores do movimento, o funk tem tido um papel importante para melhorar a vida de muita gente. “O funk salva vidas, ele resgata vidas. Gera muitos empregos tanto na linha de frente como nos bastidores”, diz MC Carol. “Assim como a minha, eu tenho certeza absoluta de que ele salvou a vida de muita gente que hoje poderia estar presa, poderia estar morta, poderia estar no tráfico ou roubando. Vejo muitas injustiças com os funkeiros”, diz a cantora de Niterói.
Funk contra o preconceito
Se o preconceito ataca o funk, o funk bate de volta no preconceito. O movimento, afinal, é político e subversivo por natureza. Como diz o carnavalesco Milton Cunha no livro Potência Popular Carioca (Leya, 2018): “A subversão foi o jeito de o subúrbio existir. Ou era isso, ou nada. E ao subverter, revelou-se um paradigma de originalidade e bem viver. Assim como o ar que se respirava, era preciso encontrar um jeito de ser e estar”.
MC Carol pauta sua produção em reflexões sobre machismo, sexualidade, gordofobia e racismo. Em “Delação Premiada”, ela canta: “Na televisão a verdade não importa/É negro favelado, então tava de pistola”. Mas nem tudo é engajamento: ela também fala de liberdade, desejos e diversão em letras como as de “Prazer Amante do Seu Marido” e “Meu namorado é mó otário”. “Tem algumas pessoas que criticam: ‘Ah, como assim, ela é feminista, como uma feminista fala essas coisas?’ Falar sobre sexualidade abertamente, falar sobre o seu próprio prazer, sobre seu corpo, eu acho que isso é feminismo”, rebate Carol.
Opinião semelhante tem Pepita, ícone do movimento LGBTQIA+ e dona de hits como “Tô à procura de um Homem” e “Uma vez piranha”. “O funk tem um papel mais especial, que vai muito além da sensualidade. É nossa forma de gritar: ‘Olha, estamos aqui, me respeita, eu sou isso aqui e pronto’. Por meio da dança ou da letra de uma música, mostramos que nosso corpo é nosso, que as regras são nossas e que podemos fazer tudo que desejamos, sem medo de julgamentos ou das neuroses do padrão, pelo fato de a sociedade não aceitar que a mulher seja dona de si própria, sem rótulos ou padrões para se encaixar”, diz Pepita. “É claro que a luta não é e não será fácil. É preciso levantar todo dia a bandeira da resistência, nos impor. A letra T ainda assusta, mas as pessoas precisam saber que temos o maior coração e a maior garra do mundo. E, claro, lembrar que não devemos aceitar nenhuma situação de preconceito. Denuncie, procure seus direitos. Lutar pelos nossos direitos é a melhor forma de combater a transfobia”, resume.
A coroação
Este mês, as desbravadoras do funk ganharam uma homenagem à altura. No dia 11 de novembro, a cantora Ludmilla lançou o videoclipe intitulado “Rainha da Favela”, com as participações de Tati Quebra Barraco, MC Carol, MC Katia Fiel e Valesca Popozuda (foto que abre esta reportagem). Em um post no Instagram, Ludmilla conta que quis convidar “quatro rainhas”, como uma forma de agradecimento. “Cada uma, em seu tempo, foi inspiração e referência para mim. E, se não fossem elas, as cantoras de funk da minha geração não poderiam cantar o que quisessem com tanta liberdade”, escreveu a cantora, que citou ainda Deise Tigrona, MC Cacau e MC Sabrina. Por e-mail, Ludmilla contou à ELLE que quis enaltecer as mulheres das comunidades no clipe, que, na opinião dela, são as verdadeiras rainhas: “E, já que eu queria mostrar essas mulheres raçudas, pensei também nas mulheres do funk, as que ultrapassaram as barreiras do preconceito e botaram pra quebrar, abrindo portas, trilhando caminhos. Essas mulheres merecem ser igualmente lembradas”.
Honrada com a homenagem, Valesca Popozuda fez questão de destacar que todas as mulheres no funk são rainhas: “Todas são poderosas. Não existe mais essa bandeira de rivalidade feminina. Isso, por anos, alimentou muita briga. E, se a gente parar com isso, o machismo começa a ter um ponto fraco”.
Para finalizar, relembramos uma fala da médica e feminista negra Jurema Werneck: “Nossos passos vêm de longe”. Todo nosso agradecimento às rainhas que seguem revolucionando o cenário musical. Viva as mulheres no funk!