“Lady Gaga foi lá e fez T-U-D-O!” Esse é o comentário mais comum que você vê nas redes sociais, quase sempre vindo de fãs da cantora (ou melhor, dos little monsters). De fato,
Chromatica, o mais recente álbum da Mamãe Monstra, poderia ter facilmente sucumbido ao limbo do streaming, mas virou um grande hino escapista. Foi a trilha sonora de muita faxina, danças no escuro e solidão do próprio quarto e o terror de alguns vizinhos.
Mas o “tudo” dos comentários não se limita às canções e ao revival dos grandes hits dançantes da artista. Em 2020, é possível dizer que Gaga também entregou uma poderosa campanha de incentivo ao voto nos Estados Unidos, fez uma grande cruzada anti-Trump e, consequentemente, pró-Partido Democrata, além de influenciar uma boa parcela de cidadãos mais jovens e LGBTQIA+ (parte considerável de seu público) na eleição de Joe Biden.
O seu posicionamento, desde o início da corrida presidencial estaduniense, irritou o representante republicano, que tentava a reeleição. Trump chamou a artista de ativista do anti-fracking e disse, em comícios, que sabia de muitas histórias sobre a cantora, em tom de ameaça. Gaga revidou ao seu modo, com muitos looks. Enquanto o presidente dos Estados Unidos era cobrado por parte da imprensa por não incentivar o uso de máscara, ao fazer aparições públicas sem o acessório no rosto, justamente no país que se tornou o centro de contágio no mundo, Gaga aproveitou uma das premiações mais celebradas da cultura pop americana, o Video Music Awards, no fim de agosto, para chamar a atenção ao que vestia: no caso, máscaras.
Junto à jaqueta da Area, ela colocou um globo de vidro Conrad Muscarella cobrindo a cabeça. Para acompanhar o minivestido psicodélico, recortado a laser, de Iris van Herpen, usou uma máscara de couro rosa, meio fofa, meio S&M, da marca Cecilio Designs. E, para performar com Ariana Grande, foi de máscara digital, versão que cobria a boca, mas acompanhava as vibrações de sua voz com ondas virtuais em um visor. O item foi desenhado pela marca Smooth Technology especialmente para o evento.
Em todos os looks que Lady Gaga usou no VMA, a máscara, em diferentes versões, esteve presente.Kevin Winter via Getty Images para MTV
Um pouco antes da eleição, Lady Gaga ainda reuniu, em um vídeo de pouco menos de três minutos, alguns dos looks mais icônicos de sua carreira (incluindo o polêmico tubinho de carne crua) para engajar mais alguns votos (que não são obrigatórios nos EUA). Esse tipo de movimentação artística não é exatamente nova. Em 1964, por exemplo, para aumentar o número de registros de eleitores negros no Mississipi, alguns nomes da música independente impulsionaram uma campanha de voto, a Freedom Summer.
Mas o ano de 2020 veio cheio de especificidades. Por causa da pandemia, muitos eleitores puderam escolher o seu candidato antecipadamente e pelo correio, o que pediu toda uma nova legislação a respeito. Fora isso, como em nenhum outro ano, a discussão sobre as ameaças ao Estado Democrático nunca estiveram tão em voga. Foi o que levou Gaga a cantar abertamente em apoio a Biden no dia da eleição. E, na ocasião, vestiu um terno Alexander McQueen e mais uma máscara – dessa vez, com a palavra VOTE bordada com cristais Swarovski.
E ela não foi a única a fazer “boca de urna” pop. Rihanna, que vive mostrando o dedo do meio para os padrões (na música e em suas marcas de beleza e de moda), mandou logo o Trump se foder no Twitter. Falou também que esperaria cada voto contado, quando ele ameaçou suspender a apuração. Lizzo, por sua vez, publicou uma foto usando um macacão cortado pela metade, deixando boa parte de seu corpo à mostra. Era uma alusão à bandeira dos Estados Unidos. Com a imagem, ela escreveu: “Quando penso neste país, penso em como fomos criados para sermos patriotas da violência, da propaganda e da guerra. Em como este país é propriedade do opressor e está preso em um vale do capitalismo. Mas penso também em jovens que recusam as mentiras e acreditam na restauração desta terra e no respeito às comunidades que eram donas Dela antes de os colonizadores a nomearem”. E Cardi B, em conversa com Joe Biden na ELLE norte-americana, falou abertamente que apoiava Bernie Sanders na concorrência do Partido Democrata, mas que queria mesmo era Trump fora e mais respeito aos imigrantes e às mulheres.
Pop Engajado
Cardi, uma das maiores representantes do resgate de signos visuais criados e disseminados por mulheres negras e latino-americanas, usa a sua imagem toda poderosa, com unhas alongadas, apliques e roupas de oncinha, para dizer que é dona da própria vida. Em “Wap”, o seu clipe mais recente, é objetiva e sem rodeios sobre a própria sexualidade. Ela se posiciona, fala o que acredita, o que quer e o que não quer. Se, no passado, esse tipo de atitude era sinônimo de hesitação para algumas marcas, hoje é o que colocou a cantora num outdoor em Paris, como estrela da campanha da Balenciaga.
Cardi B foi a primeira celebridade a aparecer em uma campanha da Balenciaga desde a entrada de Demna Gvasalia na marca.
Reprodução
O fato é que a relação entre cantoras pop, moda e política não é nova. Na década de 1980, a socióloga Angela McRobbie, especialista em cultura popular, escreveu em seu livro
Zoot suits and secondhand dresses: anthology of fashion and music (1985) que, apesar de esse estilo musical muitas vezes estar ligado a certa “diplomacia sexual” da mulher (em vários momentos, reforça uma sexualização alheia aos próprios desejos), ele exerce “um importante papel de infiltração feminino no ambiente musical como um todo”, um setor hegemonicamente masculino.
Trata-se de um nicho musical cheio de ambiguidades, que massifica, cria pastiche, influencia multidões, controla e empodera – tudo ao mesmo tempo. Ainda assim, a força que cantoras exploraram por meio dele é inegável. Nomes como Cher, Diana Ross e Madonna são grandes exemplos. A última, furando várias camadas de ignorância e tabus sobre a sexualidade feminina com os seus sutiãs bicudos, apontados para os machistas, em look desenhado por Jean Paul Gaultier.
Madonna e Jean Paul Gaultier representam uma das mais importantes parcerias da moda com a música.Time Life Pictures/DMI/The LIFE Picture Collection via Getty Images
Mas, se nos anos 1980, 90 e 2000 algumas estrelas pop, incubadas por gravadoras, tinham no máximo um tipo protocolar de apresentação, dando alguns closes esporádicos na filantropia para não demonstrar completa alienação, hoje já não é bem assim. O público está atento e sabe quando o ativismo é de fachada. Espera-se não só um posicionamento como cidadão, mas ampliado com a força do lugar que ocupa, na capacidade de cobrar as instituições e ecoar movimentos como o feminista, o antirracista, o LGBTQIA+ e tantos outros.
O engajamento do público é tamanho que chega a atuar diretamente em questões políticas. Muito provavelmente um dos grandes episódios que exemplifica isso é o cancelamento virtual da campanha de Donald Trump encabeçado por legiões de fãs de Kpop, em junho. A BTS, boy band de Seul com sete membros, conta com o ARMY, armada de admiradores do grupo que ajudaram a abafar a hashtag #WhiteLivesMatter, colocando no lugar as imagens de seus ídolos acompanhadas de mensagens antirracistas. Além disso, reservaram lugares no comício do presidente estaduniense na cidade de Tulsa, em Oklahoma, ainda que sem a menor intenção de aparecerem. O espaço se preparou para receber milhares de pessoas, mas ficou com a arena às moscas.
Não há problematizações nessa história? Com certeza. Uma das críticas mais comuns é a de que esse endeusamento da celebridade, que nas redes geralmente leva o nome de “stan”, é bastante perigoso. Ovacionar figuras, tratá-las como entidades, mártires ou centrais de atendimento é uma lógica perversa, que anula a humanidade do artista. São todos passíveis de acertos, falhas, vitórias e equívocos. Outro ponto é que juntar política, moda, palco e ativismo de internet sem um mínimo equilíbrio pode, sim, esvaziar bandeiras, discursos e transformar tudo em um post de Twitter. Ao mesmo tempo, quando feito na medida e no teor certos, é a prova de que a popularização também dissemina e muito informações e valores.
Beyoncé, com Lemonade (2016), colocou sob os holofotes o movimento Black Lives Matter, anos antes de as marchas antirracistas e contra a violência policial de 2020 se espalharem pelos Estados Unidos. Por aqui, Pabllo Vittar acaba de receber o Europe Music Awards 2020 de Maior Artista Brasileiro. A sua ascensão na gringa tem impulsionado, por exemplo, reportagens sobre como o Brasil é um dos países que mais matam pessoas LGBTQIA+ no mundo e conta com uma estrela em ascensão como ela.
O movimento não passa despercebido pelas marcas. Parece chover no molhado uma cantora estrelar a campanha de uma grife, mas essas parcerias agora ganham toda uma nova leva de elementos a serem analisados. Qual é a artista que mais bem representa os valores da etiqueta? Qual é a mensagem política de determinada cantora? Essas são apenas algumas das questões na cabeça de profissionais de marketing – de ambos os lados. Associar-se à marca errada é motivo de cancelamento instantâneo.
Billie Eilish, por exemplo, também foi um dos nomes mais ativos na campanha anti-Trump, principalmente entre a geração que é queridinha, a Z. Além disso, ela é uma das grandes imagens atuais no pop a impulsionar uma ideia de maior fluidez nas roupas quando o assunto é gênero. Não à toa, foi chamada para estrelar
o vídeo de lançamento da nova coleção da Gucci. O encaixe é perfeito, porque a grife lançou recentemente uma linha sem divisão por gênero e, há pelo menos quatro anos, não separa homens e mulheres em seus desfiles.
No Brasil, o casamento mais recente entre uma cantora pop e uma marca de moda aconteceu com a nomeação de IZA (uma das estrelas de capa da nossa edição impressa de outubro) como a mais nova diretora criativa da etiqueta esportiva Olympikus. Para a ELLE, a cantora adiantou que a primeira coleção que fará para a marca, e que será lançada em 2021, representará tudo o que ela acredita.
Talvez seja a hora de os políticos também darem mais atenção a isso. Ainda que a experiência hollywoodiana, de paparazzi e tabloides soe antiga num mundo de posts de Insta, likes e replies, uma máxima do universo pop segue a mesma: se você perde a sua popularização, vai com ela a sua influência. E se descolar dessas figuronas (e principalmente das pautas que elas mobilizam) não parece ajudar (ou reeleger) ninguém.