Kylie Minogue já fez de um tudo: atuou, apresentou, cantou, escreveu, compôs, gravou, criou. No dia 06 de novembro, ela lançou seu 15º álbum, Disco, seguido de um show transmitido pela internet – provavelmente uma das melhores apresentações digitais destes tempos pandêmicos. Dias antes, porém, Kylie estava um tanto insegura: “Me perguntei sobre o quanto da minha identidade se deve às apresentações ao vivo”, disse em entrevista via Zoom à ELLE Brasil. “Tive de enfrentar esse questionamento para poder seguir em frente. A parte da composição, gravação e divulgação eu consegui manter, mas não ter a experiência de uma plateia é algo novo para mim.”
Para quem sempre dançou ao som da cantora, a situação é igualmente inédita. Kylie foi a responsável por uma das últimas grandes aglomerações pré-Covid 19 em São Paulo. Era seu segundo show no Brasil, dessa vez no festival GRLS! (o anterior foi em 2008), e, uma semana depois, entramos oficialmente em quarentena. Estávamos nos acostumando a transformar nossos quartos, salas, cozinhas e banheiros em pistas de dança ao som disco de Dua Lipa e Jessie Ware, quando a perfomer australiana anunciou que seu próximo álbum seria inspirado num dos ritmos mais influentes dos últimos tempos.
A disco music surgiu em Nova York, entre os anos 1960 e 70, como uma grande manifestação e celebração de liberdade racial e sexual, em um momento um tanto amargurado da vida social, econômica e política dos EUA e do mundo. Não por acaso, todas as encarnações posteriores do estilo aconteceram quando tudo que a gente queria era fechar os olhos e dançar como se não houvesse amanhã.
Kylie esteve bem envolvida com algumas das reinterpretações da disco music ao longo de sua carreira. Seu álbum homônimo, de 1988, é tido como o precursor do nu-disco. No fim dos anos 1990 e começo dos 2000, auge do Daft Punk, ela lançou dois de seus álbuns mais icônicos (e muito influenciados pela sonoridade da época): Light Years (2000) e Fever (2001). Com Disco não é diferente. A cantora reclama sua propriedade no assunto, fala de um escapismo esperançoso e do poder transformador da música.
Você começou a trabalhar no álbum bem antes da pandemia. Porém o processo de finalização se deu sob o lockdown. Como tudo o que aconteceu impactou o resultado final?
Em termos práticos, impactou bastante. Foi a primeira vez que tive que montar um estúdio em casa e aprender a gravar meus próprios vocais. Emocionalmente, foi mais complexo. De um lado, havia o esforço de me manter consciente e tentar entender tudo que estava acontecendo no mundo. De outro, havia uma vontade de escapar e me permitir ficar distraída pelo trabalho, pensar em outras coisas. Então, foi como um mecanismo de sobrevivência para mim e para minha equipe. Agora que está tudo finalizado, gosto de pensar que estou lançando esse álbum com muito amor e esperança. Com os primeiros singles que divulgamos, recebemos muitas mensagens positivas de pessoas dizendo que foi como uma válvula de escape para elas. É aquela coisa, né, música não vai salvar o mundo, mas pode fazer dele um lugar melhor.
As referências à disco music sempre estiveram presentes no seu trabalho e mais ainda no seu figurino. O que mais a cativa nessa estética?
Sem dúvidas o lamê, os paetês, diamantes e brilhos em geral. Mas existe muito mais por trás desse estilo. É só assistir o documentário sobre o Studio 54: a alfaiataria, os decotes, os penteados, as maquiagens, Grace Jones, Debbie Harry com seu estilo disco rocker, Bianca Jagger no cavalo branco. E tem também o lado do-it-yourself, em contraponto à alta moda. Você vê aquelas pessoas incríveis, com pouquíssimo dinheiro, e looks feitos com uma infinidade de materiais e tecidos que encontravam por aí. No fim, o que realmente importa é expressar quem você é ou quem você quer ser, se sentir livre e se divertir.
Uma das melhores qualidades de Disco é como as músicas representam várias sensações e momentos de uma festa – e isso requer conhecimento de causa. Quão importante foi participar da cena clubber dos anos 1990 em Londres?
Foi a hora a certa para fazer isso! Acho que o começo dos 20 é o melhor momento para nos conhecermos e explorarmos tudo o que podemos e queremos ser. Para mim, foi ainda mais brilhante por ser antes dos smartphones. Você precisava realmente estar lá e viver aquele momento. Foi muito imersivo. A música era incrível, nova e parecia durar mais. Tudo parecia durar mais, até meus looks: usava as mesmas botas, a mesma hot pants, a mesma meia arrastão. Às vezes, usava peruca, às vezes, perdia na pista o que estava usando e, de repente, a festa estava fechando. Era como o Prince cantou: “closing time, ugly lights”.
Você se lembra das músicas que ouvia naquela época?
Nossa, a primeira coisa que me vem em mente é Gypsy Woman. Sabe? la da dee la dee da… Tem também Seal, com Crazy, e mais um monte de músicas sem vocais.
E quais foram as mulheres que mais a influenciaram musicalmente?
Eu tenho uma irmã (Dannii Minogue) que já era bem musical antes de mim. Ela participou de um programa de TV, dos 9 aos 16 anos, chamado Young Talent Time, então eu a via cantando e dançando toda semana. Minha mãe (Carol Minogue) foi bailarina quando adolescente, então tenho certeza de que eu e minha irmã herdamos dela o gosto pela dança e elegância (eu espero). Crescendo, lembro de me apaixonar pelas músicas de Donna Summer, do Abba (eu queria desesperadamente ser parte daquela banda) e Olivia Newton-John (não tinha como idolatrar mais alguém). Já na adolescência vieram nomes como Whitney Houston, Madonna, Cindy Lauper, Janet Jackson… Eu tinha muitos ídolos femininos para admirar. Depois, nos anos 1990, teve Shirley Manson, do Garbage, Björk, Roisin Murphy, Natalie Imbruglia no seu momento tomboy. Sei que existe toda uma discussão sobre mulheres na música, mas eu sempre senti a presença delas.
Falando em mulheres na música, você pode quebrar um recorde com Disco: primeira artista solo com um álbum número 1 no Reino Unido em cinco décadas consecutivas…
Se eu conseguir, será absolutamente fenomenal. Mas preciso me preparar caso isso não aconteça. Ainda assim, tenho mais nove anos para conseguir quebrar esse recorde. Talvez não seja mais a primeira, mas é algo que gostaria de conquistar. Isso parece surreal para mim, afinal tenho só 52 anos e estamos falando de cinco décadas. Aliás, fiquei bem feliz em só saber disso após a conclusão do álbum. Não gostaria de ter de trabalhar com isso na minha cabeça.
Mas me sinto muito orgulhosa em ser uma artista solo, porque existem muitas coisas que você precisa resolver sozinha. Claro, você tem seu time, sua equipe, e tenho certeza de que outras performers vão entender quando digo isso. Mas uma vez que você se lança, você está por conta própria. Só você pode lidar com sua ansiedade, com as noites em claro, com os questionamentos, inseguranças e pressão. Acho que sempre fui muito determinada e, mais do que tudo, sempre acreditei muito em mim mesma. Quando isso não aconteceu… Porque sempre há os momentos em que questionamos se somos boas o suficiente, se somos capazes… Enfim, quando chego a esse estágio, não tem muito o que fazer, senão encarar seus medos e continuar. Dar o melhor de si, sabe? E isso significa errar, passar vergonha. Porém, se não for assim, como você vai superar a si mesma?
(No dia 13 de novembro, uma semana após o lançamento de Disco e nove dias após esta entrevista, o novo álbum de Kylie chegou ao posto número 1 no Reino Unido, tornando a cantora a primeira artista solo a conquistar o topo da lista em todas as últimas cinco décadas).