Garotas na linha de frente

Embora o início e a expansão do K-pop estejam relacionados a artistas e grupos masculinos, as mulheres têm um papel fundamental nessa história, que começou muitos anos antes do que se imagina.

Quando se fala de K-pop, a primeira história lembrada é a de que o ritmo foi projetado no começo da década de 1990, na Coreia do Sul, depois que um trio chamado Seo Taiji and Boys fez um enorme sucesso com o público jovem do país ao incluir características do pop e do hip-hop à sua música. Há ainda o H.O.T, o primeiro grupo a passar por um rigoroso processo de treinamento até receber a nomenclatura
idol, termo difundido por Lee Soo-man, um visionário da indústria e fundador da SM Entertainment — que até hoje atua como uma das maiores agências da Coreia do Sul.

A presença feminina nessa história começou bem antes do que se imagina. Em seu livro
Ancestors of Girl Groups, o fotógrafo e crítico musical Choi Kyu-sung revisita a música popular coreana e explica que o Jeogori Sisters, grupo de 1935 composto de cantoras, pode ser considerado a primeira girl group produzida no país. Na obra, Choi reconta ainda a trajetória de artistas mulheres que, ao contrário dos nomes que debutaram a partir de 1990, acabaram esquecidas pela mídia.

Muitas delas foram influenciadas pelo sons introduzidos pelas tropas norte-americanas que ocuparam o país durante a Guerra da Coreia, entre 1950 e 1953, e que resultou na divisão da península em Norte e Sul. O pesquisador reforça que foi nesse período que o contato com a música ocidental cresceu. Country, blues, jazz e rock & roll eram tocados nos LPs dos soldados e serviram de inspiração para que as artistas locais se apresentassem nos acampamentos em troca de dinheiro.

The Kim Sisters, trio lançado em 1953 e cheio de referências do jazz, chegou a se aventurar pelos Estados Unidos, nos anos 1960, onde fez uma série de shows e até se apresentou na televisão durante a estadia. Adotadas pelo público estadunidense, elas foram as precursoras do que futuramente seria chamado de Onda Hallyu, uma das estratégias utilizadas pelo governo sul-coreano para emplacar produtos audiovisuais e de entretenimento no exterior a fim de driblar a crise econômica. Os dramas e novelas que você encontra no catálogo da Netflix, o boom dos cosméticos e da rotina de beleza coreana, a gastronomia ou o fenômeno do K-pop, todos fazem parte da Hallyu.

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The Kim Sisters se apresentam no programa de variedades norte-americano The Hollywood Palace, da emissora ABC, em 1966Walt Disney Television / Getty Images

Foi a partir dos anos 1990, quando o ritmo se enraizou de vez no inconsciente coletivo, que ele adotou algumas das características mais reconhecíveis até hoje: forte apelo visual, coreografias inteligentes e cravadas, músicas com refrão chiclete e personalidades que se destacam entre si. Foi nesse momento também que as garotas passaram a desempenhar um papel fundamental na construção dessa fórmula de sucesso com o surgimento das agências de talentos. Elas ficaram não só responsáveis por disseminar tendências de beleza e de moda, como representaram a mudança de uma cena definida apenas por atos masculinos.

Em 1997, o trio S.E.S. foi lançado pela SM e seu disco de estreia vendeu mais de 650 mil cópias em todo o país — elas chegaram a ser apontadas como a versão feminina do já aclamado H.O.T. Um ano depois, o quarteto Fin.KL., da DSP Media, entrou na concorrência e, juntas, constituíram a primeira leva de grandes artistas até a virada do século.

No ano 2000, surge BoA, hoje com 34 anos, que graças à sua competência diplomática recebeu o ambicioso título de rainha do K-pop. Também pertencente à SM Entertainment, ela já fez de tudo um pouco desde que começou aos 14 anos. Com uma discografia de dar inveja, ela passou a ser conhecida e admirada internacionalmente nos anos seguintes e foi uma das responsáveis pela difusão do K-pop no resto da Ásia. Em atividade até hoje, BoA completou 20 anos de carreira em 2020 e recebeu
um documentário especial produzido por sua agência e dirigido por Kwon Soon-wook e Shim Jae-won.

Embora o cantor PSY tenha feito o mundo parar em 2012 para ouvir e dançar o single “Gangnam style”, pouca gente sabe que, em 2009, a girl group Wonder Girls já havia prenunciado a ascensão do K-pop nos Estados Unidos por meio da faixa “Nobody”. O grupo de cinco membros da JYP Entertainment levou o título de canção do ano em 2008 no Mnet Asian Music Awards, uma das principais premiações de música da Coreia do Sul, com a versão original. Comprometidas em se promover na América, elas soltaram uma versão em inglês no ano seguinte com um conceito pop retrô, que acabou pegando muito bem no Ocidente, tornando “Nobody” a primeira música do K-pop a entrar na parada HOT 100 da Billboard. Naquele mesmo ano, elas ainda caíram na estrada e abriram a turnê norte-americana do Jonas Brothers.

 

 

Ainda em 2009, uma nova girl group começou a fazer barulho em casa: era o 2NE1. As integrantes CL, Bom, Dara e Minzy — aclamadas até hoje por incorporar às suas músicas mensagens de empoderamento e falar sobre temas considerados tabu — bateram inúmeros recordes e chegaram a esse lado do planeta com “I am the best”, em 2011. Quase ninguém sabia o significado do refrão
Naega jeil jal naga (Eu sou a melhor), mas isso não impediu o público de aprender o hit e cantá-lo em voz alta nas boates.

Fora do padrão estético de beleza imposto por parte da indústria, o que inclui o próprio CEO da gravadora, que chegou a chamá-las de feias, o 2NE1 se manteve firme até que o grupo entrou em hiato e se dissolveu por completo em 2016. CL, que está há mais de dez anos na estrada, se livrou do contrato abusivo da gravadora no ano passado e agora se prepara para lançar seu primeiro álbum como artista independente no final de novembro. Forte aliada da causa LGBTQIA+, a artista também foi uma das primeiras a se pronunciar sobre o movimento Black Lives Matter (Vidas Negras Importam) após o assassinato de George Floyd, em junho de 2020. No Instagram, ela destacou a influência que a comunidade artística negra tem sobre o K-pop: “Artistas, diretores, escritores, dançarinos, designers, produtores, estilistas na indústria do K-pop são todos inspirados pela cultura negra, tendo conhecimento disso ou não. Eu gostaria de encorajar os fãs de K-pop a devolverem e mostrarem o amor e apoio que nós recebemos dos artistas negros”, escreveu. Entre outras conquistas, ela coleciona
uma apresentação colossal no encerramento das Olimpíadas de Inverno na Coreia do Sul, em 2018.

 

 

Entre os nomes mais recentes, é quase impossível citar todos os feitos que o BLACKPINK já alcançou desde sua estreia, em 2016. Auxiliadas pelo BLINK, nome que os milhões de seguidores que fazem parte do fandom carregam com muito orgulho, o single ”
DDU-DU DDU-DU“, por exemplo, coroou o quarteto como o primeiro grupo de K-pop a bater 1 bilhão de visualizações no YouTube. Já “How you like that“, quebrou cinco recordes mundiais do Guinness, entre eles o de vídeo mais visto do YouTube nas primeiras 24 horas.

De lá para cá, elas estrelaram feats poderosos com Dua Lipa, Lady Gaga e Selena Gomez, se apresentaram nos palcos do megafestival Coachella, apareceram na lista Forbes Asia Under 30 e, finalmente, divulgaram em outubro de 2020 o seu primeiro álbum completo de estúdio intitulado
The Album. Além de todos os recordes arrecadados, seu poder de influência no mercado da moda e da beleza também é um caso à parte. Lisa, Rosé, Jisoo e Jennie se tornaram embaixadoras de grandes marcas de luxo, como Saint Laurent, Celine, Dior e Chanel, e são figuras carimbadas na primeira fila das semanas de moda. Recentemente, Lisa foi anunciada como o rosto da marca de cosméticos M.A.C.

Levante sua voz

HWASA é um exemplo de artista que usa sua voz como plataforma social de empoderamento. Com uma postura
badass que percorre sua dança e seus looks, ela nunca perde a oportunidade de mandar o recado ao patriarcado em suas músicas solo ou ao lado do seu grupo, MAMAMOO. Elas apostam em letras que celebram o poder da mulher, como na música “HIP”, em que as jovens rebatem críticas relacionadas à forma como a mídia e os paparazzi as retratam, e reforçam que podem ser o que quiserem, incluindo uma princesa, uma lutadora de boxe ou até presidente da nação no mv (sigla muito utilizada no K-Pop para music video). Além delas, as solistas HyunA, Sunmi, ChugHa e Hyolyn também merecem respeito por não terem medo de ser elas mesmas.

O exemplo mais recente de busca por representatividade feminina é o Refund Sisters, um projeto sazonal e ambicioso que reuniu quatro gerações de mulheres do K-pop: Lee Hyori, de 41 anos, presente desde a primeira geração de idols, quando começou sua carreira no Fin.K.L; Jessi, 31, uma das maiores representantes do hip-hop local; Uhm Junghwa, que, aos 51 esbanja talento na dança e nos vocais; e HWASA, citada anteriormente, sendo a integrante mais jovem, com 25 anos. O supergrupo soltou no dia 28 de outubro o single autoexplicativo “Don’t Touch Me”, que já é uma das músicas mais tocadas da Coreia do Sul e provou que não existe idade certa para ser uma diva do pop.

 

 

A luta delas

As musas sul-coreanas, no entanto, ainda enfrentam intensamente o machismo presente na indústria, e que continua sendo reforçado por uma sociedade conservadora. Ideais feministas e políticas que abordam questões raciais, de gênero ou sexuais ainda seguem sendo tabu no país, assim como em tantos outros.

A cantora Irene, do Red Velvet, sofreu retaliação nas redes sociais depois de ter compartilhado que estava lendo
Kim Ji Young: Nascida em 1982, um best seller de 2016 que ganhou uma adaptação para os cinemas em 2019. A leitura foi considerada “feminista demais” e desencadeou uma série de atitudes hostis contra ela. Alguns homens chegaram a fazer campanha para prejudicar vendas e posições das músicas lançadas pelo grupo e, supostamente, publicaram fotos colocando fogo em imagens da cantora. Para Ahn Sang-soo, do Instituto de Desenvolvimento de Mulheres da Coreia, o problema está na forma como o público masculino encara as artistas femininas: “Alguns fãs imaginam suas idols favoritas como seu tipo ideal de mulher. Quando o objeto de suas fantasias mostra comportamentos que vão contra sua imaginação, como a leitura de um livro associado ao feminismo, isso desencadeia um sentimento misógino”.

Mesmo com a autonomia e a influência que algumas dessa lista possuem, o machismo ainda faz vítimas e deixa sequelas significativas no K-pop. Em 2019, dois expoentes superimportantes para a causa morreram, e não por acaso. Sulli, 25 anos, foi encontrada morta em seu apartamento em Seul no dia 14 de outubro. A jovem estrelou programas de TV na infância e, entre 2009 e 2015, fez parte da girl group F(X). Engajada nos direitos das mulheres, Sulli se rebelou contra a indústria e lutou por liberdade e independência na K-pop — ela também chamou a atenção por ter abolido o uso do sutiã, o que causou certo incômodo nos sul-coreanos. Com milhares de seguidores em suas redes sociais, ela era vítima constante de ataques de cyberbullying, o que comprometeu sua saúde mental ao longo dos anos. Sua morte inspirou um projeto de lei, que carrega seu nome, contra crimes virtuais. “A morte de Sulli é um assassinato social. Os inúmeros ataques de cyberbullying, sob o disfarce da liberdade de expressão, acabaram com ela. Agora é a hora de estabelecermos uma solução para essa cultura desumana”, disse o Partido Democrata da Coreia do Sul, que organizou a petição. O governo estuda a aprovação da lei, que deve reforçar a fiscalização de comentários feitos por anônimos nas redes sociais.

 

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Pouco tempo depois, Goo Hara, amiga próxima de Sulli, também foi encontrada sem vida em sua residência. Aos 28 anos, ela já havia sido diagnosticada com depressão. Vítima de um sistema machista, a jovem atriz e cantora enfrentou o ex-namorado Choi Jong Bum nos tribunais por ter sido assediada. A disputa, infelizmente, só foi concluída em julho deste ano, quando Choi foi sentenciado a prisão por ter feito chantagem com imagens de sexo e também pelos crimes de danos materiais, agressão e ameaça.

O reflexo dessas fatalidades resultou em algumas mudanças. A saúde mental, por exemplo, vem ganhando um foco maior da indústria nos últimos tempos e já é comum ver agências se pronunciando sobre o tema. Mina, integrante do TWICE, esteve longe dos palcos após ser diagnosticada com transtorno de ansiedade. A gravadora JYP Entertainment foi transparente com relação ao seu estado de saúde e manteve o fandom informado até seu retorno acontecer em ”
Feel special“, oito meses depois. Não à toa, o single fala exatamente sobre como lidar com os dias mais difíceis: “Em um momento, sinto como se eu não fosse nada. Como se ninguém fosse perceber se eu sumisse. Mas então, quando eu ouço a sua voz, eu me sinto amada, me sinto muito especial”. A hashtag #ProudOfYouMina, levantada pelo fã-clube ONCE, chegou aos Trending Topics do Twitter em agradecimento à cantora durante as promoções.

Neste mês, a SM também notificou que contratou mais de dez escritórios de advocacia para cuidar de acusações, rumores, fake news e publicações maliciosas sobre seus artistas, numa tentativa de que os admiradores tenham cuidado e respeito com os conteúdos compartilhados.

Ainda que as mulheres possuam voz ativa na música, é importante ressaltar que, até hoje, as maiores agências de entretenimento sul-coreanas são comandadas por homens. O movimento feminista no país se tornou relevante depois que Park Geun-hye, a primeira mulher a se tornar presidente do país, sofreu um impeachment em 2017 e também pelo aumento de crimes como o
revenge porn, quando um homem grava e expõe vídeos de relações íntimas sem o consentimento de suas ex-parceiras. Há também grupos ativistas, como FFA e Famerz, que se organizam em protestos contra a violência doméstica, o aumento do número de casos de estupro e a desigualdade salarial. Em outubro de 2018, 60 mil mulheres foram às ruas da capital para protestar contra as molkas — uma tendência, que tem ganhado proporções absurdas na Ásia, em que os homens gravam vídeos de mulheres em locais públicos e depois enviam essas imagens para sites pornográficos.

Em confronto direto contra o sistema opressor, as mulheres do K-pop representam força desde o início do K-pop e estão na linha de frente, ressignificando o mercado e tomando as rédeas na hora de compor e produzir. Elas estão, cada vez mais, buscando sua individualidade e fugindo do padrão esperado. Resta saber se a sociedade e a indústria vão colaborar com elas.

Músicas para continuar celebrando as mulheres mais ferozes do K-pop:

“No”, do CLC

Em “No” o CLC diz não aos padrões de beleza que são impostos às mulheres. “Lábio vermelho? Não. Brincos? Não. Salto alto? Não. Bolsa? Não. Esqueça essas coisas óbvias. Traga-me algo que combine comigo.”

“Girls on top”, da BoA

“Neste novo século, as garotas estão no topo”, canta BoA em “Girls on top”.

“SOLO”, da Jennie

Muita gente acredita que o single “SOLO”, estrelado por Jennie do BLACKPINK, fala sobre sua estreia como solista. Mas, na verdade, ela está cantando sobre deixar para trás um relacionamento que não a faz feliz. “A partir de hoje eu estou brilhando sozinha.”

“TWIT”, da HWASA

Em “TWIT”, HWASA não hesita em chamar seu namorado autoritário de idiota na hora de dar um ponto final no relacionamento.

“I don’t need a man”, do Miss A

“Eu pago o meu aluguel com meu dinheiro. Eu compro minha comida, eu compro minhas roupas. Pode não ser muito, mas me satisfaz. E é por isso que eu me amo.” Esse é o recado do Miss A na faixa “I don’t need a man”.