Sobre identidades em construção e roupas de transformação

A figurinista Giulia Piersanti fala sobre como a moda contribui para o enredo de filmes e sobre seu processo criativo na série We Are Who We Are.

Aos 41 anos, Giulia Piersanti gosta de dizer que é uma estilista que se arrisca no figurino. Fiel escudeira do cineasta Luca Guadagnino, já ajudou o diretor a criar a atmosfera de filmes como Call Me By Your Name, Suspiria e A Bigger Splash e, antes disso, trabalhou com as marcas Céline, Lanvin e Balenciaga. Mais recentemente, a italiana foi a responsável pela imagem de moda da série da HBO We Are Who We Are.

A série não poderia ter um nome melhor. Ambientada em uma base militar estadounidense na Itália, é um retrato fiel da fluidez de gênero e da confusão mental de garotes, garotas e garotos da Geração Z passando pela fase mais transformadora de suas vidas (num ambiente de quase total alienação e deslocamento). Apesar de isolados em um cenário atípico para o espectador, fica fácil se identificar com os problemas de Fraser (Jack Dylan Grazer) e Caitlin (Jordan Kristine Seamón), os dois protagonistas, ao tentar descobrir quem são.

2OZa8ay3 image 36 scaled

Parte importante dessa construção de autorrepresentação passa pelas roupas. “Luca tem uma maneira de falar sobre turbulências internas e emoções que eu amo”, diz Piersanti em entrevista à ELLE. Talvez você não conheça um adolescente de 14 anos obcecado por Raf Simons e Vetements, mas, nós garantimos, ele existe – e é fielmente retratado na série.

8tYxAKNW image 38 scaled

FHFImdul image 39 scaled

A construção de toda a identidade e personalidade de Fraser foi feita em cima de peças vintage, que por vezes subvertem elementos militares, como o harness/armadura de Bernhard Willhelm. Vale dizer aqui que a razão da mudança da família para a Itália se deve à profissão da mãe do personagem (interpretada com maestria pela atriz Chloé Sevigny), uma comandante do Exército estadunidense. A relação de ambos se mostra bastante complexa desde as primeiras cenas da série e os reflexos podem ser percebidos em níveis emocionais e materiais (no caso, a escolha de cada item de roupa). “Para ele, as proporções eram muito importantes. Todas as peças que comprei para vesti-lo eram de tamanho adulto e foram reformadas para caber nele sem perder a aparência oversized”, explica a figurinista.

wjQ9Fmvq image 40 scaled

Já para Cate, a descoberta do gênero e da sexualidade foram bem influentes nessa composição estética. Peças amplas e masculinas se combinaram a comprimentos míni para que parte do seu corpo ficasse à mostra – principalmente nos primeiros episódios. “Quis combinar as roupas dela para criar proporções que mostram os lados diferentes de sua personalidade. Queria que a fragilidade da sua idade e da sua natureza feminina transparecessem por trás das escolhas mais masculinas de seus looks”, completa Giulia.

WeoNlJfs image 41 scaled

Aliado à direção e linguagem poética de Guadagnino, o figurino de Piersanti é ao mesmo tempo uma construção imagética elaborada e um registro estético da maneira como toda uma geração usa a moda como plataforma para a construção de identidades. “Para essas pessoas, que ama estilistas, para a qual uma camiseta puída de skate tem o mesmo apelo que uma peça de luxo, o gênero é irrelevante. Os looks são misturados de uma forma mais fresca e moderna”, opina ela.

image 42

No fim das contas, tanto o figurino da série, o exemplo mais recente, quanto as participações da italiana em filmes com estética marcante evidenciam a importância das roupas na criação de um imaginário novo e convincente. “Quis mostrar os traços multifacetados desses personagens com toda a miríade de emoções que eles vivenciam. Acredito não só que é irreal e clichê, mas também bastante preconceituoso, apresentar somente um lado de alguém”, finaliza.