O que os seus produtos de beleza escondem?

Todos nós queremos consumir de forma ética, mas como a indústria de cosméticos está nos ajudando de fato nessa missão?

Você se deita no travesseiro, fecha os olhos e deixa aquela nova máscara facial agir e entregar tudo o que prometeu: sossego na pele e na alma. Bem, ao menos é isso o que deveria ser. Se ainda rola uma pulga atrás da orelha em relação à origem de tudo, aos ativos usados e sobre quão sustentável a marca realmente é porque realmente é difícil saber o quanto um produto está sendo sincero com você.

Ler as letras miúdas nas embalagens e vasculhar cada detalhe no site da marca antes de iniciar um tratamento não é nada animador. Mas, quando o assunto é beleza, a ignorância nem sempre é uma bênção. O produto pode ir em uma direção completamente diferente da que você acredita ou da que a sua pele precisa. Algum animal sofreu durante a fabricação? Os insumos são de origem duvidosa? O que a palavra “natural” aqui realmente quer dizer?

Com o gasto anual dos brasileiros em beleza avaliado em US$ 30 bilhões, algo em torno dos R$ 153 bilhões (os dados são do Euromonitor International, de acordo com o ano de 2018), o mínimo que se pode exigir é transparência. As redes sociais ajudam na comunicação e na cobrança das marcas, mas ainda vemos a ameaça terrível de uma emergência climática no horizonte e o papel determinante do consumo exagerado e da pouca transparência nessa engrenagem. Fora isso, a pandemia reajustou os nossos parâmetros morais sobre o que entendemos como uma “boa compra”. Condições para uma mudança são possíveis, mas é preciso compreender certos fatos primeiro.

Com um gasto anual dos brasileiros em beleza avaliado em US$ 30 bilhões, algo em torno dos R$ 153 bilhões, o mínimo que se pode exigir é transparência.

Há um bom tempo, as indústrias alimentícia e da moda são alvo de indagações em relação às suas práticas. O mercado de beleza, no entanto, não. A indústria multibilionária da beleza ainda é considerada menos séria e digna desse debate. Não à toa, é ela muitas vezes que se autorregula. Considerada parte de um “pequeno luxo da vida”, acaba por não ser fiscalizada, como as comidas dos supermercados. Se um pacote “orgânico” de salada está sujeito a uma série de regulamentações e verificações, um óleo de lavanda “orgânico” segue ileso com o mesmo rótulo.

“Não há regulamentação de fato”, afirma Jayn Sterland, diretora administrativa da Weleda, no Reino Unido. “Existe o Reach, por exemplo, que é um órgão de regulamentação que países da União Europeia seguem, com uma lista de produtos químicos proibidos, mas que levam até cinco anos para serem compreendidos como nocivos. Em resumo, nós somos cobaias”, ela diz. De acordo com Sterland, quando o assunto é sustentabilidade, a coisa fica ainda mais complicada. “Não existe uma definição de ‘natural’ ou ‘orgânico’, por exemplo, o que faz da indústria da beleza um campo vasto de ‘greenwashing’ (uso de argumentos sobre sustentabilidade para gerar lucro), em que marqueteiros dão um nome bonito a um ingrediente tóxico.”

Mark Smith, diretor geral da Natrue (Associação Internacional de Cosméticos Naturais e Orgânicos), acrescenta: “as normas gerais de publicidade não permitem muitas coisas, mas há bastante nuance. Isso significa que o greenwashing vai do mais sutil ao completamente enganoso e que existe uma desconexão séria entre as demandas dos consumidores por transparência e o que a lei cobra das marcas”.

Não é preciso ser o maior defensor da beleza verde do universo para querer se certificar de que as promessas de uma marca não são enganação. Mas isso não é tão simples de descobrir, segundo Anna Teal, da companhia farmacêutica Walgreens Boot Alliance. “Todas as marcas precisam passar por normas para venderem algum produto, mas o espectro de testes clínicos é amplo. Existem marcas que testam apenas um ingrediente, enquanto outras gastam milhões para chegar ao produto final. É por isso que encontrar uma marca confiável, por meio da pesquisa, é importante no setor de beleza”, ela afirma.

No entanto, como ninguém quer comprar produtos de beleza como quem cumpre o dever de casa, existem organizações independentes que fazem pesquisas por nós. Os consumidores mais sustentáveis, por exemplo, contam com símbolos da Natrue e da Cosmos. Aqueles que decidem por produtos livres de crueldade animal podem buscar pelo logo da The Leaping Bunny. Já os compradores da Cult Beauty contam com até dez sinalizações nas embalagens certificando que o produto é orgânico, sustentável, vegano, livre de emissões e neutro em carbono.

Mas, até que esses selos de aprovação sejam padronizados, regulamentados e aplicados universalmente, a investigação do consumidor é a que vale. “É difícil fazer tudo com perfeição, contudo, se existe um conselho é o de que você estabeleça com clareza o que procura”, aconselha Teal. “Você quer um produto mais sustentável, um produto vegano ou neutro em carbono? Então procure exatamente por isso no rótulo.” E é com o poder do seu investimento que dá para dialogar (pelo menos por agora), enquanto não existem regulamentações. “Quando você para de comprar um produto, aumentam as chances de ele parar de ser feito.”

O GUIA DE COMPRA RESPONSÁVEL

De cruelty-free a marcas com maior diversidade, veja como comprar produtos de beleza como um cidadão que deseja mudanças.

1. Cruelty-Free / Livre de crueldade

O produto não pode ter entrado em contato com nenhum animal para que uma marca se afirme cruelty-free (ou livre de crueldade). Um jeito fácil de verificar é procurar pelo símbolo do Leaping Bunny (um coelho pulando), aplicado pela Coalizão de Informação ao Consumidor de Cosmético. A Peta, uma organização de direitos dos animais, também tem um logotipo que segue a mesma referência ao coelho. Existem ainda organizações mais rigorosas, como a australiana Choose Cruelty-Free, que não permite que a marca faça parte de um conglomerado ou companhia que não seja cruelty-free para se intitular dessa forma. Até 2019, por exemplo, a China tinha em sua legislação a obrigatoriedade de testes em animais (o que já foi revisto com a aprovação de outros métodos) o que influenciou bastante as empresas que se interessam no mercado consumidor do país.

2. Vegano e vegetariano

Não entenda um produto cruelty-free como um produto vegano ou vegetariano, porque não há certeza de que não ocorre extrato animal na composição. Alguns produtos de origem animal já são amplamente conhecidos na beleza, como o colágeno, a gelatina, a lanolina, a seda, a pérola, a proteína do leite e a glicerina, mas existem outros, como a cera alba (que é a cera de abelhas) e a guanina (derivada de escamas de peixes). A Peta também concebe esse tipo de rotulagem vegana para produtos, mas ele também pode ser concedido pela organização The Vegan Society.

3. Pegada de carbono

Entender o quanto uma marca emite CO₂ não é uma equação simples de fazer atualmente. A Carbon Trust, por exemplo, capta a pegada de carbono na cadeia total, incluindo as emissões de gases dos recursos, da fabricação, do transporte, da distribuição, da venda, da utilização pelo cliente e do descarte. Gigantes como Coca-Cola e Nestlé têm trabalhado com a organização para desenvolver um sistema de rótulo de carbono que, por sua vez, poderá ser aplicado no setor de beleza no futuro. A Climate Neutral é uma organização independente, sem fins lucrativos, que mede as compensações de carbono de uma empresa, além dos esforços para diminuir a pegada a longo prazo. Nos Estados Unidos, no entanto, apenas seis marcas de beleza foram certificadas. Muitas delas têm feito a promessa de redução na pegada de carbono por meio de ações como a mudança das embalagens e o tipo de transporte nas locomoções, mas, até o dia em que houver um órgão independente regulamentador, só a palavra deles contará.

4. Coral-reef friendly / Não tóxico com recifes de corais

Em 2018, o governo do Havaí assinou um projeto de lei proibindo a venda de filtro solar com oxibenzona e octinoxato, por serem produtos químicos tóxicos para recifes de corais. Na época, estimava-se que esse tipo de agente estava em aproximadamente 80% dos filtros usados. Muitas marcas responderam a essa ação colocando em seus rótulos o termo “reef-safe”, ou seguro para recifes, mas a terminologia não é legal ou universalmente comprovada. Em vez de olhar esse tipo de informação, procure por organizações como a Haereticus Environmental Laboratory, uma fundação sem fins lucrativos que desenvolveu a certificação Proteja a Areia e o Mar. Como regra geral, eles indicam o uso de fórmulas mais simples, porque até mesmo os FPS “naturais” podem conter ingredientes como o eucalipto e a lavanda, comprovadamente prejudiciais à vida marinha. Na praia, a dica é preferir o creme ao spray, porque esse segundo pode deixar produtos químicos no solo, que depois entrarão em contato com o mar. Procure também por filtros de base mineral, feitos com óxido de zinco e dióxido de titânio.

5. Diversidade de verdade

Uma indústria da beleza mais inclusiva é algo esperado há muito tempo, mas há sinais positivos de mudança. O “efeito Fenty” — e o boom dos 40 tons de base disponíveis pela marca, quando lançado por Rihanna — evidenciou a falta de oferta mais diversa nas marcas e obrigou muitas delas a ajustarem suas linhas. Apesar disso, é sabido que grandes mudanças não podem ser apenas externas, mas também envolver toda a cadeia, desde a contratação até a educação da vendedora. Uma marca mais inclusiva deve fazer pela base e é, por isso, que iniciativas como a da #PullUp, criada após os protestos antirracistas de junho de 2020, encorajam empresas a divulgarem os números de diversidade dentro de suas equipes.

6. Forest friendly / Verde

A Campanha Florestal do Greenpeace foi uma das primeiras a destacar o problema do desmatamento — quando um ecossistema é removido para dar lugar a apenas um tipo de plantação, como o óleo de palma, presente em uma série de cosméticos. Para combater esse tipo de problema, marcas como a Weleda passaram a preferir fornecedores com as certificações Sourcing With Respect, da Union for Ethical Biotrade. Para verificar se a embalagem de produto é ecologicamente correta, verifique os rótulos FSC, do Forest Stewardship Council: FSC 100% significa que a madeira no produto é proveniente de florestas certificadas. FSC Reciclado significa que a embalagem é de materiais reutilizados e FSC Mix afirma que a madeira dentro do produto é de uso controlado ou reciclada.

7. Realmente orgânico?

Para ser orgânico, nenhum ingrediente pode estar envolvido com o uso de fertilizantes artificiais, pesticidas, herbicidas ou modificações genéticas. As certificações mais comuns são da Natrue e da The Soil Association, que verificam as práticas em todo o processo de fabricação.

8. Eficácia real

Como saber se um produto realmente entrega o que promete? Na maioria das vezes, é um acordo de confiança, mas existem reguladores de publicidade que controlam os códigos usados pelas empresas na hora de promover determinado produto. Eles trabalham para verificar se os consumidores são enganados, ofendidos ou prejudicados por anúncios, bem como estabelecem uma maior igualdade entre os discursos das concorrentes. Isso inclui os tratamentos de fotos de antes e depois, por exemplo. Um dos maiores problemas é o fato de que as marcas deveriam testar também os seus produtos em pessoas e, na maioria das vezes, os testes são restritos aos laboratórios, o que faz com que muitas alegações posteriores dos clientes sejam invalidadas.

9. Transparência

Não existe um código único que ateste a transparência ao longo do processo de fabricação de um produto, mas a presença de várias certificações pode falar muito sobre como uma marca trabalha (como as já citadas anteriormente, que certificam um processo livre de crueldade em animais, ou se tem uma pegada de carbono menor). Peguemos a fragrância CK, da Calvin Klein, por exemplo. A fórmula vegana é feita com 79% de ingredientes de origem natural (incluindo o álcool), o frasco é reciclável, enquanto a embalagem externa é feita com 30% de materiais reciclados. A fragrância é certificada pelo Cradle to Cradle Products Innovation Institute, que avalia o desempenho ambiental e social em diversas categorias. Atualmente, existem apenas 19 produtos de beleza em todo o mundo que passaram por sua rigorosa avaliação.

10. Embalagem

Mais marcas têm se comprometido com embalagens totalmente recicláveis. Para diminuir os resíduos, a linha de skincare da REN Clean desenvolveu uma tecnologia de reciclagem infinita, na qual um processo envolvendo calor e pressão transforma o plástico usado em um idêntico ao virgem. O novo serviço de entrega circular da TerraCycle, o Loop, também busca diminuir o desperdício. Quando você pede um produto novo, o vazio é coletado, lavado e recarregado, eliminando a necessidade de uma nova embalagem. Ou seja: o bom e velho refil. Dentre as empresas que já assinaram um desejo de participar do esquema estão Dove e Pantene.

11. Toda a cadeia ou em apenas um produto?

Se um produto tem uma certificação, isso significa que apenas ele foi avaliado e não toda a linha — com exceção dos que passam pela verificação do Cradle to Cradle, não é possível presumir o todo olhando apenas para um. Verifique a embalagem de cada item.

12. Sustentabilidade real

A sustentabilidade não é algo em que se dá um check e em vários tópicos, e tudo bem. Trata-se de uma postura ambientalmente responsável em todos os aspectos, que vão do não-uso de produtos químicos poluentes e tóxicos à garantia de que as embalagens sejam recicladas. Por essência, trata-se de não ter um impacto. A palavra não deveria ser usada de forma tão leviana assim. Um grande tópico de sustentabilidade, por exemplo, é o uso de água. De acordo com o The World Water Development Report, mais de 5 bilhões de pessoas podem ficar sem água até 2050. Este é, no entanto, um dos principais ingredientes da maioria dos produtos de beleza, se não o principal. Para ter uma ideia, são necessários 22 galões de água para fazer menos de 500 g de plástico. Se você quiser checar se há plástico utilizado de maneira desnecessária em um produto, recorra ao aplicativo Beat the Microbead.

13. Insumos de origem ética

Ingredientes com origem ética são obtidos de maneira socialmente responsável. Em resumo, todos os trabalhadores envolvidos tiveram a garantia de segurança e de justiça. A Union for Ethical Biotrade emite certificações para marcas que respeitam a biodiversidade do planeta, assumindo compromissos éticos.

Não se esqueça destes signos e símbolos:

Vegano: não contém ingredientes de origem animal em sua formulação ou processo de produção.

Cruelty-free: o produto e seus ingredientes nunca foram testados em animais.

FSC (Forest Stewardship Council): feito com (ou contém) madeira ou papel de florestas certificadas pelo FSC.

Orgânico: ingredientes gerados sem modificação genética, fertilização sintética ou herbicidas.

Reciclável: a embalagem não é feita de material pós-consumo, mas pode ser reciclada.