Será que, no futuro, a maquiagem será digital?

É o que acreditam artistas como a parisiense Ines Alpha, com quem conversamos sobre esse novo movimento cultural e tecnológico do universo da beleza.

Ines Alpha é uma jovem maquiadora parisiense que já trabalhou com marcas como Dior, Selfridges e Nike. A grande diferença dela para os diversos novos talentos do mercado de beleza? Ela não tem nenhuma experiência com pincéis ou esponjas de maquiagem. No lugar dessas ferramentas, seus companheiros de trabalho são softwares 3D.

Utilizando o termo “e-makeup artist”, ela é um dos principais nomes do movimento da maquiagem digital. “Se maquiagem é qualquer coisa que pode transformar o seu rosto, então por que não usar a tecnologia? Para mim, é simples assim. Elas me permitem criar minha própria realidade e formas e texturas fantásticas que não seriam realizáveis no mundo físico”, explica. Ines é mais conhecida por seus filtros de Instagram e Snapchat, que são livres para qualquer pessoa usar, e propõem uma imagem fantasiosa, surrealista. Com suas criações, as pessoas podem parecer extraterrestres, animais subaquáticos ou personagens de um filme de ficção científica.

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Normalmente, é para desenvolver filtros para essas redes que ela é procurada pelas marcas, que, por sua vez, estão buscando cada vez mais essa facilidade de comunicação com seus clientes. “Faz sentido que as marcas estejam loucas por filtros porque é fácil de usar, é viral, as pessoas se envolvem em um segundo e brincam com eles. Quando você tem a ideia certa, pode ser uma jogada muito inteligente. Todo mundo quer fazer parte desse novo movimento cultural”, diz Ines sobre como a pandemia afetou a área digital de forma que mais e mais projetos surgem a cada dia para profissionais como ela.

“Se maquiagem é qualquer coisa que pode transformar o seu rosto, então por que não usar a tecnologia?”
Ines Alpha, maquiadora digital

Para além dos filtros interativos, Ines também já colaborou em projetos de maquiagem 3D com artistas como a cantora Charli XCX e a atriz Hunter Schaffer. Para a primeira, ela criou em poucos dias a capa do álbum
Charli e, para a segunda, complementou a capa da revista Allure, em que a estrela de Euphoria usou um de seus designs como representação de uma edição sobre o futuro da beleza. “A e-makeup está expandindo e evoluindo muito rapidamente. Por enquanto, é algo que você basicamente experimenta como um filtro ou vê sendo aplicada a um avatar. Mas, em breve, ela será usada em sets de fotos, em passarelas ou mesmo nas ruas. Nós ainda não chegamos lá, mas chegaremos”, afirma Ines, que acredita que, apesar de as roupas digitais estarem ficando populares, é a maquiagem que tem mais potencial de ser adotada em massa – pelo menos em um futuro próximo.

A aposta dela é que, daqui alguns anos, basicamente, as linhas entre digital e real ficarão ainda mais difíceis de serem delineadas. Pense nos experimentos que andam sendo feitos com óculos ou lentes de contato de realidade aumentada. O Projeto Aria, do Facebook, por exemplo, foi revelado há cerca de quatro meses e trata-se de uma área na empresa dedicada a estudar formas para que as tecnologias de realidade aumentada e realidade virtual possam ser comercializadas em grande escala. As maiores empresas de tecnologia do mundo, como Google, Amazon, Apple e Intel, também já anunciaram que estão trabalhando em produtos nesse sentido. Ou seja, talvez esse universo, que a princípio parece distópico, esteja perto de se concretizar.

Se ainda está difícil de imaginar como isso se aplicaria na prática, pense na série britânica
Years and years, da BBC. Nela, uma adolescente usa um discreto acessório na cabeça que vai até seus olhos e a permite aplicar em seu rosto qualquer filtro na vida real. No programa, a personagem usa filtros de animais e emojis, mas pode ser que tenhamos a possibilidade de exibir diversos tipos de maquiagem ou transformação corporal como se aquilo estivesse no mundo físico. Gadgets que usam essas tecnologias parecem muito interessantes e promissores, já que óculos de realidade aumentada poderão ser utilizados, por exemplo, para pessoas com deficiência visual – mas eles podem ter, é claro, diversas consequências negativas. Entre elas, uma dificuldade de aceitação pessoal ainda maior, já que transformar as característica do nosso rosto estará a pouquíssimos cliques.

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“Os filtros são um sintoma e nós precisamos nos focar na causa, que são os padrões de beleza”, diz Ines. Afinal, a maquiagem digital pode ser usada tanto para expressar a individualidade quanto para a padronização, assim como a tradicional. A diferença é que, com os filtros, qualquer pessoa pode ter acesso à “perfeição” em um segundo, enquanto um efeito semelhante com maquiagem física pode levar uma hora ou mais, sem contar que é preciso comprar os produtos, conhecer as técnicas. E não é difícil perceber isso ao navegar pelas abas de filtros do Instagram. Os chamados “embelezadores”, que tiram manchas da pele e deixam qualquer pessoa mais simétrica, são de longe os mais populares. “Isso diz muito sobre nossa relação com a beleza. Hoje, muitos de nós nos sentimos estranhos sobre nós mesmos. Temos dificuldade em aceitar nossos corpos e rostos porque ficou muito fácil aplicar um filtro na nossa imagem virtual”, diz ela. E complementa: “As redes sociais, que já foram vistas como um espaço de liberdade de expressão, agora são usadas como ferramenta para manter o antiquado status quo em torno da beleza, sem rugas, pele clara, cabelo perfeito e assim por diante. É por isso que estou mais na tendência oposta, que é expressar seu eu interior, divertir-se com seu rosto e abraçar suas falhas, e acho que a maquiagem digital que eu faço pode ajudar nisso”.

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O avanço da realidade aumentada no mundo da beleza

A pandemia foi um dos catalisadores da realidade aumentada no universo da beleza. De um lado, usuários de redes sociais passaram a se divertir com os filtros de maquiagem (ou ficar dependentes deles para aparecer nos Stories). Do outro, marcas de maquiagem viram na tecnologia uma forma de apresentar seus produtos para clientes que não podiam mais ir às lojas testá-los. “Eu acredito que a maquiagem digital vai ficar cada vez maior. Há nove meses que não podemos sair para provar maquiagens físicas, então acho que há um grande espaço para isso”, diz Mary Greenwell, maquiadora veterena das celebridades, que já maquiou a princesa Diana, e, em maio, foi convidada pelo aplicativo Drest para criar algumas makes online.

Um bom exemplo desse movimento veio da L’Oréal, que lançou a sua primeira coleção 100% virtual em novembro. Chamada Signature Faces, é possível utilizar as sombras e os batons da linha nas redes sociais e também em plataformas de videoconferência, como o Zoom e o Google Chat. No mês passado, o Google também apresentou uma funcionalidade nova na sua ferramenta de busca (similar à que já havia sido implementada no YouTube, em 2019). Quando o usuário digita o nome de algum produto cadastrado no sistema, ele possibilita o teste ao vivo ao abrir a câmera frontal do celular. A empresa vai oferecer testers virtuais de marcas como Estée Lauder, MAC e Charlotte Tilbury. A novidade foi criada em parceria com as empresas
Perfect Corp, desenvolvedora do popular aplicativo YouCam Makeup, e a ModiFace, que já trabalha com grandes marcas de cosméticos. Uma curiosidade sobre a ModiFace é que ela é a pioneira em utilizar esse tipo de tecnologia no universo da beleza. Tudo começou com o fundador e engenheiro elétrico, Parham Aarabi, que estava desenvolvendo uma solução na área militar para que fosse possível ler os lábios das pessoas em situações de muito barulho. Esse sistema de identificação facial logo foi descoberto pela farmacêutica Allergan, que produz o botox e encomendou um programa para simular o resultado da aplicação da toxina em pacientes. A possibilidade de prever o resultado fez com que as vendas de botox subissem. Não demorou para que, em 2007, Aarabi decidisse usar o rastreamento de lábios para traquear rostos de pessoas e testar maquiagem nelas.

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Por enquanto, essas inovações ainda são limitadas e a precisão costuma não ser muito alta, ou seja, quase sempre é possível perceber que se está usando um filtro. O que para projetos que querem imitar maquiagens da vida real pode ser um problema, para maquiadoras imaginativas como Ines, esses glitches fazem parte do jogo. “É muito difícil reproduzir texturas de maquiagem física em 3D, e não é meu objetivo fazer isso de qualquer maneira, caso contrário, por que deveria usar 3D, em vez de produtos físicos? O digital me permite uma liberdade estética completa, o que me ajuda a ter uma abordagem muito criativa da aparência de alguém”, diz ela.

Uma das partes mais divertidas da maquiagem é a autonomia de aprender novas técnicas e testar cores e formatos no próprio rosto. Hoje, os filtros já vêm prontos, o que acaba eliminando essa parte da criatividade. No futuro, no entanto, Ines acredita que será comum pessoas dominarem softwares como o Spark AR (do Facebook/Instagram) e o Lens Studio (do Snapchat), uma vez que esse conhecimento está ficando cada vez mais democratizado por tutoriais dos próprios criadores. Isso significa que nós poderemos ir além e desenvolver as nossas próprias paletas com texturas e formas inimagináveis e até mesmo aplicá-las com nossos dedos tocando na tela. Se ela enxerga a maquiagem digital como uma substituta da física? De jeito nenhum. “A maquiagem física é e sempre será uma grande fonte de inspiração para o digital. Espero que muitos criadores de filtros, inclusive eu, tenham uma visão mais divertida e criativa que possa ajudar as pessoas a se sentirem bem e bonitas enquanto se divertem e se sentem mais confiantes com sua imagem. E tudo bem ser estranho e diferente, afinal todos nós somos”, finaliza ela.